História barroca em 8mm
Por Lee Anderson
O festival terminava naquela noite, e na manhã seguinte estaria livre de todas aquelas pessoas vestindo cor-de-rosa e óculos amarelos; estaria livre daqueles roques ingleses e daquelas batidas eletrônicas, livre das metáforas verborrágicas cheias de clichês pós-modernos americanizados e das alucinações pré-programadas à baseados e uns ácidos poucos; de todos eles estaria livre, enfim.
Colocou o rolo de filme no projetor e fê-lo rodar. Sua cabeça parecia estar a ponto de explodir. Na sala de exibição as pessoas começaram a rir de forma histérica. Sentou-se na cadeira ignorando o ferro frio que queimava em suas costas, espalmou a mão sobre a mesa, apanhou o canivete e cortou a ponta do polegar. No filme, uns berros de terror. Movia-se lento, meticuloso - apanhou o isqueiro e fez pender o pedaço de carne sobre a chama levemente azulada. Em meio a platéia, umas citações filosóficas. Depois, como se entendesse que o breve manjar estava suficientemente pronto, absorto aos gozos vindos daquele silêncio interno que se fazia, saboreou lentamente o gosto agudo do sangue e dos nervos que ainda estavam entranhados a pele levemente rósea. Lembrou das hortênsias. Das nuvens baixas. Depois um jazz, como antigamente. E só foi despertado daquele quase-transe quando as pessoas começaram a gritar. Então percebeu que o rolo havia acabado. Movimentou-se rápido, então, habilidoso, e trocou-o. As pessoas riam. Depois voltou a sentar-se na cadeira de ferro e acendeu um cigarro. O sangue escorria por entre as linhas longas da palma da mão - Vida longa, diria alguma cigana. Baixou a cabeça e suspirou. De tudo aquilo, amanhã estaria livre, enfim. Odiava esses filmes modernos – preferia poesia barroca.