CHEIRO DE POVO

por Marcelo Benvenutti

caos@cpovo.net

A comitiva vem rápida. Os batedores na frente. Um carro cheio de seguranças na frente. Outro atrás. Mais batedores atrás. Todos afastando e limpando o caminho para o carro do presidente que, junto com o governador, vem observando o movimento na rua.

- Podíamos ter vindo de helicóptero, Fernando.

- Não. Quero ficar mais perto do povo. Tirar essa pécha de intelectual que me deram. Meu governo tem que ser mais popular.

- Tudo bem, eu entendo, mas aqui não precisa isso.

- Precisa sim. Precisa sim.

Um dos batedores volta e conversa com os seguranças do carro da frente. Do carro da frente, por rádio, avisam os seguranças do carro do presidente.

- Presidente. Tem um carroça aí na frente, com um papeleiro e a família dele, que não quer sair do caminho.

- O carro não passa do lado? Dá um jeito!

- Não dá, governador. Sabe que pra chegar de carro no Palácio tem que passar por essa rua estreita.

- Então vamos ter que ser mais firmes.

- Não. Espera aí. Uma família numa carroça, não é?

- É, senhor Presidente.

- Pára o carro quando chegarmos neles.

- Mas, senhor Presidente, a segurança ...

- Não me interessa. É essa a oportunidade que eu precisava.

Chegando a comitiva no local onde a carroça está trancando o caminho, o Presidente, sem antes ser cercado por meia dúzia de gorilas engravatados, desce do carro e se dirige até a carroça. Os policiais militares, que acompanham tudo à distância fazem um cordão de isolamento em torno da cena e os passantes observam tudo de longe.

- Bom dia. Posso ajudá-lo?

- Ah, bom dia. Quem é o senhor?

- Eu sou o Presidente.

- Presidente? Do Brasil?

- É, mas pode me chamar de Fernando.

O Governador cochichou para o Presidente:

- Que é isso, Fernando?

- É a minha nova estratégia. Eles não dizem que não tenho cheiro de povo? Agora eu vou ter.

- Ai, tá brincando? O Presidente? Olha, mulher, o presidente!

A mulher não responde nada. Os três filhos, entre dois e cinco anos, observam tudo, lambuzados de ranho.

- Vocês não querem almoçar conosco, no Palácio?

- Será que pode, Presidente?

- Pode sim. O que aconteceu com o cavalo?

- Tá cansado, o coitado. Tem que descansar um pouco pra continuar.

- Tudo bem, deixa aí. Alguém consegue um veterinário pra cuidar do cavalo do senhor ...

- Lucas, como o apóstolo. Assim disse meu pai.

- Senhor Lucas. Vamos lá, Lucas. Sua esposa ...

- Maria. Maria das Dores.

- Todos. Isso. Venham todos.

O murmurinho continua atrás do cordão de isolamento.

A imprensa pulando e gritando como nunca. Lucas e sua família sobem as escadarias do Palácio na frente, enquanto o Governador puxa o Presidente pelo braço:

- Fernando, o que você acha que está fazendo?

- Vamos almoçar com ele. Vamos mostrar que aqui no Brasil o povo também tem direito de conversar com os governantes de frente. Olhando no olho.

Passam-se um trinta minutos até o cerimonial convidar a família de Lucas, que espera num saguão enorme. Maria nunca fala nada. Vez ou outra limpa o nariz de um ou outro filho. Lucas, boné de casa de ferragens dobrado na mão, observa meio assustado aquele movimento todo, pensando se pode acender um cigarro de rolo de fumo que traz no bolso da camisa. A mesa do almoço é enorme. Lucas e a família sentam em um lado da mesa. Do outro, algumas autoridades secundárias e o Governador. Na cabeceira da mesa o Presidente, sentado ao lado de Lucas, sorrindo, exclama:

- Lucas, coma!

- Presidente. Passa essa carne aí

- Essa aqui? Sirva-se.

- O senhor é um bom presidente. Eu votei no senhor.

- Votou? O que o levou a votar em mim.

- Não sei. Lá na vila o pessoal quase todo votou no senhor. No dia do comício teve um chou do Chitãozinho. O pessoal ficou feliz.

- Ah, sim. Como é nome dos seus filhos?

- Antônio, Carlos e Roseane.

- Mas que coisa. Que coincidência. Você já conhecia o Governador?

- O Governador? Sim, senhor. Já vi ele saindo daquele carro e entrando aqui. Nós votamos nele também.

- Lucas, o que você faria se fosse presidente?

- E porque eu seria presidente?

- Não sei. Quero saber o que você pensa sobre isso.

- Eu não sei o que eu faria. Eu não quero ser presidente.

- Mas se você fosse, Lucas? Pense!

- Não sei, não. O que é isso? É bom.

- Fricassê.

- É, isso aí. É bom. Me dá mais aí.

- Você investiria em educação? Em saúde?

- Em saúde, sim. Meu filho mais novo respira mal. Mas eu nunca consigo levar ele no posto.

- Governador! Como está a situação dos postos de saúde? A situação não pode continuar assim.

- Mas as verbas ...

- Não interessam as verbas. Aumente os impostos.

- Já aumentei ano passado. Esse ano tem eleição.

- Esquece. Lucas, e a educação? Dos seus filhos?

- Bom, meus filhos são pequenos. Eu tenho trinta e dois anos e só sei escrever o nome. Minha mulher não sabe ler.

- Quanto anos você tem, Maria?

- Ela tem vinte e um.

- Temos que investir mais em educação. Um homem não pode chegar nessa situação. está certo, alguém tem que juntar os papéis e reciclar. Isto é ecológico. É moderno. Este homem, caros senhores, é uma bandeira da modernidade.

- Mas eu gosto do meu trabalho. Sou feliz com ele.Queria poder ter outro cavalo. Pro Manhoso descansar de vez em quando.

- Viram? A capacidade do povo em transformar adversidades e arranjar soluções nas mais diversas situações? Este povo brasileiro tão sofrido, espoliado, que luta, que briga, na luta, no dia-a-dia, e nós aqui, temos o dever de colaborar para que pessoas como Lucas tenham oportunidade de crescer.

Palmas generalizadas. Os filhos de Lucas correm de um lado pro outro. O Secretário de Obras, constrangido, segura a menor no colo e ela vomita na manga de seu terno.

- Fernando. Temos aquela reunião com os japoneses. Eles vão trazer uma montadora pro meu estado.

- Está tudo bem. Tudo bem.

Uma das mulheres do cerimonial traz doces e brinquedos para as crianças, outra traz um vestido novinho para Maria das Dores e Lucas ouve do Secretário da Fazenda que receberá um financiamento para comprar mais um cavalo e, quem sabe, abrir uma empresa e aumentar o negócio.

Lucas agradece com a cabeça e sorri, sem entender muito porque fazem tudo aquilo com ele. Ele e a família são acompanhados pelo Presidente até a porta do Palácio, onde a imprensa espera avidamente uma declaração do Presidente. Este, com o mais novo dos filhos no colo, a Roseane, fala alto para os repórteres.

- Mais tarde! Mais tarde! Na coletiva eu falo mais.

E Lucas desce as escadarias intimidado por tantos microfones e câmeras. Lhe oferecem carona. Pedem uma reportagem exclusiva.

- O que o Presidente lhe falou?

- Ele lhe prometeu alguma coisa?

- Como é almoçar com o Presidente?

Lucas não responde nada. Sobe na carroça, dá uma olhada no Manhoso, já está bem descansado, faz um barulho com a boca fechada, sugando os beiços, e sai, dando meia volta.

- Gente boa, esse Presidente, não é Maria?

- Se é, Lucas. Mas ele não era mais novo.

- Quem? Ele?

- É. O Collor?

- Deve ser a tevê, mulher. Deve ser a tevê.