Vie En Rose

Aryza
 
 
 

Nas tardes de sábado, ele chega, larga os presentes sobre a mesa da sala, lava as mãos, sempre lava as mãos quando chega da rua, servem-se de vinho, geralmente tinto, e conversam sobre amenidades, botam em dia o assunto pela falta de tempo, oportunidade, coisa e tal.

Ficam no sofá, de mãos dadas, cabeça no ombro, olhos nos olhos, mãos impacientes, corpo reteso de tantas vontades subtraídas. E a vida , nas tardes de sábado, parece cor-de-rosa, tudo parece estar no seu lugar, todos os ânimos acalmados, todos cedês enfileirados, a vida ordenada ao lado dele.
Há 23 anos, eles estavam num quarto de criança, se beijavam, o silêncio imperava na casa. A criança de alguns meses dormitava tranqüila... Eram dois corações disparados, dois corpos sedentos por estarem juntos, por ficarem assim por toda uma vida.

Hoje, ano 2000, eles estão numa sala, o silêncio impera novamente, na tevê o som de Billie Holiday, a criança de 23 anos dormita no sofá da sala, e eles se beijam. Como naquela noite, são dois corações disparados e separados pelos mesmo elos, dois corpos sedentos; uma sede talvez mais intensificada pela maturidade, mas eles estão ali; a cena se repete. Quantas vezes se repetiu por trocentos anos? Não se sabe. Mas tem-se uma idéia.
Mas ambos sabem, que por baixo de toda essa calmaria, um vulcão pode entrar em erupção a qualquer momento. Basta chegar o dia certo numa hora determinada. Basta o amor dele se expressar para a vie en rose se transformar na mais rubra paixão manchando o sofá, escorrendo até o tapete, chegando à porta, alagando o jardim e tingindo a calçada, os parlelepípedos da Glória, maculando tudo do carmim mais intenso. E depois...só muito depois, saciados e exauridos, a vie en rose fazer morada novamente...

Às vezes, nem falar é preciso; basta olhar pros cabelos que começam a pratear, a ficarem escassos, aquele rosto adorado por tanto tempo, tornando-se, a cada ano que passa, cada vez mais envelhecido, com algumas rugas, marcas e vincos que se acentuam. Decididamente, não é esta a beleza que ela ama neste homem.

Há 23 anos, ele saiu e antes de cruzar a porta do quarto, ele olhou a criança amoroso, intrigado, afinal, ele nunca tinha tido filhos.

Hoje, ao cruzar a porta da frente, ele apagou a luz da mesinha da sala, beijou a testa da criança de 23 anos, e saiu, mais uma vez... sem ter a mínima idéia sobre o futuro... Um gesto doce, assim como foram todos os gestos dele por estas duas décadas.

A propósito, ele odeia Piaf e suas “la vie en rose”...