O VELHO ARGENTINO

Marcelo Benvenutti
 

Deus me perdoe ser tão malévolo.

Sei eu se Deus sabe o que estou pensando agora? Sabe ele que vago meu pensamento sozinho e que clamo por alguma ajuda dele nesses momentos de inconstância verbal? Nesses momentos em que não encontro o resguardo de uma alma amiga?

Não. Não se trata de um pobre e infame caso juvenil de egoísta paixão idiota, justo que todas as paixões são idiotas. Uma alma amiga.  Compreensível e sagaz. Dessas que não se encontram em conversas de doutor. Em que mestres andou te inspirando, caro?

Não. Não é uma dessas. Dê-me uma alma para compartilhar esses sublimes momentos de felicidade solitária em que encontro as soluções para todos os problemas e santifico meus dias com minha própria auto-estima e placidez moral. Sou um santo que salva o mundo. Não diziam os profetas de outrora? Ou dizem os filósofos de hoje? Dizem! Mas não recordo o que? E nem tenho vontade de recordar. Não por falta de respeito aos ditos sábios detentores da palavra. Sim, isso sim, pela minha extravagante sensatez e falta de sentimentos vulgares.

Quando os tenho, tenho sob a mais repugnante consciência lógica. O pior de todos os pecadores. Aquele que sabe o que faz no momento que está fazendo. E, hipocritamente, perdoa-se por ser tão verdadeiro e sincero, consigo mesmo. Pois não há pecado maior que de ser sincero consigo mesmo? Toda a contradição, e não sou eu que o digo, são os filósofos, doutos sabedores da verdade, que dizem, em seus profundos estudos, encerra a sua própria lógica. E, antes que um deles me corrija, essa lógica contém outra contradição.

Assim como o maldito bem, e isso consome horas e horas de minha vida, contém todo o mal que o rodeia. Não seria o caso, então, de eliminarmos todo o bem que existe no mundo e, conseqüentemente, eliminarmos o mal? Mas e dentro desse mal absoluto não existiria outro bem para contrapô-lo?

Mas, Deus, e falo contigo pois não tenho ninguém com quem falar agora, sei que me torno pedante com essa conversa, porque questionar? Sei bem que os que questionam pagam com a pior de todas as moedas: a solidão.
Mas, olhe bem, Velho, não é com esta que estou pagando agora? Pois pago, e pago bem, pois! Poderia me contentar com os aplausos falsos e os abraços vis dos sem coração. Mas, quê! Não poderia. Fui feito dessa maldita conjunção de teimosia e sinceridade. Se odeio-te em algum momento é quando permites que eu seja idiota e cumpra as ordens formais não-escritas da sociedade.

Essas ordens não escritas que me fazem ouvir calado as mais horrendas bobagens, pois que o tolo fala, e fala aos borbotões, e não entende nada do que a a sua boca cospe. Submeto-me a mediocridade constante, pois não é sociável ser sábio e generoso, devemos ser fúteis e mesquinhos, humanos, pois, e não quero para mim a cruz dos heróis, pois, desgraçados como são, só existem em função da desgraça alheia.  Renego a minha própria graça seja ela transportada por toda ordem de títulos e tapetes de flores coloridos. Prefiro a vilania. A crueldade dos silenciosos.
Compraz-me assistir insolente a ignorância alheia. Não me penitencio por isso. Nem sinto prazer. Aquele estado momentâneo de perda do próprio ser. Isso não me interessa. Apenas a solidão e a bem-aventurança de perder-me em meus próprios sonhos.

Pois que, como o bem prescinde do mal, os sonhos prescindem da realidade. Quanto mais triste for a realidade, mais felizes serão meus sonhos. Não te diz nada isso, caro leitor? Que choras pouco? E que teu parco choro ou teus sonhos fúteis são simplesmente os reflexos da tua realidade insossa e banal? E levanto-me da mesa novamente. Com a colher pego mais feijão e arroz pra terminar de comer a carne de frango seca do bifê do Alemão. Passo de novo pela mesa do velho argentino que todos os dias da semana senta-se sozinho numa mesa para quatro pessoas, fecha os ouvidos para aqueles que lhe pedem licença para sentar-se junto e demora quase uma hora almoçando.

Com seu terno marrom amarrotado, suas costas curvadas, seus cabelos grudados na cabeça a la Gardel e suas sete ou oito saídas da mesa para comer uma hora um abacaxi e outra, somente, uma batata-doce, esse velho argentino é muito mais verdadeiro em sua insociabilidade que vós em suas boas maneiras hipócritas de sociedade. Mas não serei aqui, tampouco, defensor da verdade, pois que, esta, também é contraponto da mentira. A sinceridade, da hipocrisia. Resta-me o cinismo. Ou na falta de ponto, ser contra.
 

Marcelo Benvenutti
caos@cpovo.net