CELACANTO PROVOCA MAREMOTO
(resposta a um texto do COL)
 

André, meu caro Cardoso:

Celacanto, você sabe, é um peixe esquisitíssimo que só existe no sudeste da África (embora dois exemplares tenham sido encontrados na Indonésia em 1998). É enorme (pode chegar a 1 metro e meio de comprimento), tem dentes muito fortes, se alimenta de outros peixes e suas nadadeiras são semelhantes a patas. Foi descoberto em 1938, e classificado como única espécie de um grupo (os crossopterígios) extinto há mais de 80 milhões de anos. É o único peixe sobrevivente do período devoniano (400 milhões de anos atrás) e é por isso considerado o "fóssil vivo", ou o "peixe fora do tempo". A caça ao celacanto (do primeiro peixe empalhado exposto num museu de Londres em 1939 até o encontro de espécimes vivos em 1952) tornou-se "a maior história de pescador do planeta". Mais informações em http://www.dinofish.com

Maremoto, você sabe melhor que eu, é uma grande agitação das águas do mar, provocada por abalos sísmicos submarinos. Ou seja: por maiores e mais esquisitos que sejam nossos amigos celacantos, não tem como eles provocarem um maremotinho que seja.

"Celacanto provoca maremoto", apesar disso, foi uma pichação bastante popular nos anos 70, primeiro no Rio de Janeiro e depois (como de costume) no resto do país. Algum jornalista achou intrigante aquela frase aparentemente sem sentido e achou que daria uma matéria de comportamento (a ausência de valores da juventude, os novos códigos e as novas mídias, o discurso vazio de uma geração alienada do debate político, etc.). Enfim, virou assunto, e com isso a frase (e suas implicações, em termos de possibilidade de linguagem nos muros da ditadura) se espalhou mais rapidamente pelo país.

Os mais rasos viram na frase uma previsão cabalística, "o mundo vai acabar e eu não vou nem ficar sabendo que porra é essa!" Matérias de jornal revelaram que os muros marcados com a pichação do celacanto indicavam pontos de venda de drogas. (Agora todos em coro: Oooooh!) Em 1979, o cineasta Pedro Camargo fez um curta-metragem chamado "Celacanto provoca lerfá-mu", que eu nunca consegui ver, mas cujo título misturava o celacanto com outra pichação muito popular da época (LERFÁ-MU), esta (segundo me contou o Christian Lesage) um excerto da "gíria do gomenfla" (Flamengo, o bairro, não o time), em que, por exemplo, "Aí, dicumpá, lerfá-mu um lhubagu" significava, é claro, "Aí, cumpadi, vamo fumá um bagulho?"

Mas a verdadeira chave do celacanto era bem mais simples, e só quem assisitiu à série de ficção científica bagaceira National Kid (estreada em 1960 na TV japonesa e chegada ao Brasil em 1964, juntinho com os milicos) poderia decifrar o mistério. Num dos 39 episódios (qual seria, meu deus?), o professor Massao Hata lê uma notícia de jornal ligando a descoberta de fósseis vivos a distúrbios em alguma praia do Japão (adivinha qual era a manchete?) e logo assume sua capa esvoaçante, seu capacete com uma antena na testa e sua identidade secreta de defensor do planeta terra, National Kid (pronuncia-se "nationaro kido"). Ou será que não? Segundo outra fonte que eu consultei (não menos inconfiável que a minha memória, ver http://membro.intermega.globo.com/tvtheme/nationalkid.html), é um ser abissal disfarçado de oceanógrafo que alerta os alunos do professor Hata para os perigos de investigar os tais peixes estranhos (querendo, evidentemente, mantê-los afastados do reino subterrâneo dos seres abissais).

Seja como for, a partir daí a frase "celacanto provoca maremoto", numa voz cavernosa certamente dublada nos estúdios da Cine Castro ou da A.I.C.São Paulo, ecoa pelo episódio inteiro, como um OFF premonitório, sublinhando as peripécias do Professor Massao Hata e seus pupilos Goro, Yukio, Kura, Mari e Tomohiro para salvar a terra da ameaça dos seres abissais. Não preciso dizer que ela ecoou na minha cabeça por muitos anos. Infância é coisa séria.
 

Giba Assis Brasil
giba@portoweb.com.br
 

02/07/2005: Mais informações sobre o CELACANTO (e a verdadeira origem da pichação) em http://www.iis.com.br/~cat/goldenlist/celacanto.htm