A última noite
Leonardo
Ele seguia torto e sem direção por aquela rua mal iluminada. Parece que tinham quebrado um poste, só suspeitava. Tinha acabado de sair de uma festa. Festa adolescente. Sexo, drogas e rock’n’roll. É até engraçado falar assim, parece tão antiquado. Ter 17 anos em qualquer época é só ter 17 anos.
Caminhava consciente mas não totalmente certo para onde rumava. Fumava. Suas mãos amareladas mostravam um antigo conhecedor do vício. Sempre odiou cigarro, quando criança, seus pais fumavam muito e o cheiro impregnava em toda sua roupa. Mas cresceu e vocês sabem, um trago ali pra aparecer outro aqui pra impressionar uma garota e acaba viciado. É sempre assim.
O cabelo em desalinho, fato que o deixava até certo ponto elegante, sentiu uma mão fria e nervosa puxando-o para dentro de uma casa que pensava não existir, por tão escondida. Tocava música clássica. Claire de Lune. O lugar era estranho, parecia um sonho feio. Meio zonzo, sentiu a mão o puxar para dançar e deixou-se levar. Agora encarava bem a pessoa. Lembrava sua avó. Era feia, enrugada, mas tinha um ótimo odor. E não era perfume, algumas pessoas cheiram bem e só isso.
A distinta senhora repousou-o numa poltrona antiga e gasta e saiu do cômodo. Ele sentiu-se bem, com dor de estômago, mas bem. Não sabia o que estava fazendo ali, mas gostou do lugar. Pegou um bombom de licor de menta na bombonière. Havia alguns quadros na parede, muito mal pintados. Apenas uma reprodução mal feita de um Picasso menor o interessou. Ele conhecia um pouco de arte, sua mãe o levava quase sempre a museus e exposições. Gostava de ver, mas achava as pessoas que freqüentavam esses lugares umas chatas e arrogantes. Apenas querendo mostrar aos outros o quanto eram inteligentes e superiores. Preferia ter uma boa conversa no bar da esquina, bebendo com aquele dono legal e bigodudo a estar numa rodinha de intelectuais homossexuais e babacas. Sim, era preconceituoso e não ligava pra isso. Quem quer ser politicamente correto que vá para os estados unidos.
Enquanto pensava e observava todos os detalhes da sala, a senhora voltou com uma xícara de café. Uma enorme xícara de café. Ele veio afavelmente e entregou-lhe a xícara e tomou um gole tímido, como se tivesse medo que ela tivesse posto algo no café.
por que a senhora me puxou pra cá?
eu preciso lhe falar uma coisa, garoto.
garoto? eu? ô, minha senhora, eu já tô com quase dezoito anos.
que bom... eu lembro quando eu tinha dezoito anos. Eu era feliz.
aaaaa, por favor. desculpe-me mas eu não tô afim de ouvir histórias da senhora. já sei, a senhora me chamou aqui pra ficar ouvindo as suas histórias e suas lembranças porque ninguém mais a ouve, seus quatro filhos e dez netos nunca vieram ver a senhora e me pegou na rua porque pareço com alguém que a senhora se apaixonou mas não casou com ele porque ele era filho de fazendeiro e estava de casamento marcado e a pessoa com quem ele iria se casar era sua amiga, daí a senhora foi no casamento e tentou roubá-lo como o Dustin Hoffman fez com aquela moça, filha da mulher que ele comeu na Primeira Noite de um homem. Eu até gosto daquele filme, aquela música do simon e garfunkel é relaxante e me lembra uma garota de olhos cor-de-mel.
como os homens dessa idade são babacas.
Disse isso, levantou-se e seguiu para outro canto escuro da casa. Ele sentiu-se mal e seu estômago ajudou-o a deprimir-se. Tomou a xícara de café inteira e ficou observando os desenhinhos da xícara. Levantou-se e procurou pela mulher, ela estava de costas para a porta vendo uns recortes de jornal e algumas fotos. Procurou não olhar, não ser intrometido. Observou-a melhor. Ela tinha um belo corpo pra idade, com certeza quando era jovem era muito bonita. Percebia isso pelos traços e parecia também ser uma mulher muito fina, uma dama. Tipo aquelas mulheres cheias de graça que aparecem nas colunas sociais todo domingo nos jornais. Viu a gaveta da cômoda entreaberta e percebeu várias jóias, que só aumentaram a sua ‘suspeita’ daquela mulher pelo menos ter sido ‘alguém importante’.
eu tenho uma doença rara e posso morrer a qualquer momento.
Nisso caiu uma lágrima dos olhos tristes da senhora. O coração dele apertou e sentiu um calafrio estranho. Sentia-se, agora, tão íntimo dela. Era estranho. Tentou apenas não ser indiferente.
meus pêsames.
isso é tudo que as pessoas me dizem.viu... me desculpe pelo o que eu disse na sala.
udo bem, tô acostumada com meninos de 17 anos.
Não entendeu, mas prosseguiu.
minha senhora...
meu nome é maria, pode me chamar pelo nome. nome de santa.
Nisso, sorriu amargamente e olhou pra cima, como todos fazem, pedindo ajuda divina pra algum problema ou apenas querendo explicações lógicas para todas as coisas ilógicas que acontecem na sua vida.
dona maria...
não sou dona de nada nesse mundo.
tá bom, maria, não quero ser indelicado mas o que a senhora quer de mim?
bem, por toda a minha vida eu fui prostituta...
Os olhos arregalaram-se.
...e quando te vi passando, é você estava certo numa coisa: você é idêntico a uma pessoa com a qual eu me apaixonei. ele era lindo, o homem mais lindo que já conheci. a gente namorava, eu era completamente apaixonada por ele, mas ele não sabia que eu era prostituta. uma vez um amigo dele me viu e contou pra ele. nunca mais o vi. soube que casou com uma mulher bonita, filha de um gerente de banco. continuei vivendo assim até alguns anos atrás, quando larguei da ‘profissão’. só fiquei com um cliente, um político aí que me sustenta. a maioria dessas jóias foi ele quem me deu e aqueles quadros na parede da sala foi a mulher dele que pintou e deu pra ele pôr no escritório dele.
nossa, que história, dá um livro.
um livro não sei, mas deve ser legal escrever uma história assim. se você quiser...
é pra isso que a senhora me pegou?
não, eu falei pra você da doença, né? então, eu posso morrer a qualquer momento e como você me apareceu de repente e lembrou-me dele eu queria...
Nesse instante ela esperou um pouco, pensou. Talvez tenha pensado em não dizer o que realmente queria dizer. Levantou-se e foi até ele, pegou na mão dele e disse com uma voz doce, de quem realmente já foi prostituta um dia.
queria que você fosse meu último homem.
Sua primeira reação foi de espanto. Tirou a mão dela da sua e afastou-se. Ela percebeu o espanto e tentou pedir desculpas. Enquanto ela ensaiava as primeiras palavras ele deu-lhe um beijo. Ela foi a sala e pôs música clássica de novo. Agora Chopin. Fez todo o ritual de sexo que fazia com seus clientes. Ele sentia-se estranho, mas não incomodado. O corpo dela, claro, era diferente. Velho, usado, quase morto. Não chupou os peitos dela nem a xoxota. Não teve coragem, mas não disse nada. Ficou por baixo e ela fez o serviço sozinha. Foi o sexomais mecânico que fez. Gozou. Ela chupou-o e limpou-o. Dormiram o dia inteiro. No dia seguinte, acordou quase de madrugada. Ela dormia. Pôs sua roupa amarrotada e suja, deu um singelo beijo na testa dela e passou a mão sobre os cabelos pintados de negro. Antes de sair, colocou música clássica bem baixinho pra ela ouvir. Saiu pela porta sentindo-se homem. Não sabia porque. Só sentia.
Prometeu a si nunca mais passar naquela rua. E realmente nunca mais passou (ou fez o possível para não passar). No entanto, procurou durante o resto da sua vida o nome dela nos óbitos nos jornais.