Nota da editoria: Marcos Rolim autorizou o Não a publicar seu relatório com o seguinte comentário:
"Talvez fosse interessante vocês tirarem o subtítulo e acrescentarem uma nota explicativa afirmando que o texto foi apresentado, por mim, em uma reunião da bancada federal do PT - o que exlicaria as referências ao partido ao longo do texto. A propósito, hoje entrei com uma representação junto ao Ministério Público de São Paulo solicitando que a medida anunciada pelo governo de SP de proibir a visita dos familiares de presos nesse domingo seja revogada. Trata-se de medida ilegal e temerária. A Lei de Execução Penal proíbe sanções coletivas e a política de "endurecimento" - tão ao gosto da opinião pública - ainda nos fará contar mais cadáveres. Estou muito preocupado com a situação."
 
 
REBELIÕES EM SÃO PAULO

Marcos Rolim
(transcrito de http://www.rolim.com.br/RebemSP.htm)
 

Com esse texto quero apresentar à bancada algumas informações básicas sobre os acontecimentos recentes no sistema penitenciário de São Paulo recolhidas nos dois dias em que estive junto ao complexo do Carandirú e, ao mesmo tempo, agregar algumas posições políticas que julgo importantes para uma intervenção pública a mais unificada possível. Assinalo, ainda, que outros companheiros do PT, destacadamente Luis Eduardo Grenhalgh e Eduardo Suplicy - pela presença constante no local, desde os primeiros momentos, até agora -  poderão oferecer subsídios mais valiosos.

Os fatos:

Na última sexta feira, as autoridades penitenciárias de SP efetuaram a transferência de 4 apenados para a Penitenciária de Segurança Máxima de Taubaté e de 1 apenado para o Rio Grande do Sul. Esse grupo de presos integrariam a cúpula do “Primeiro Comando da Capital” (PCC) , a mais significativa facção organizada no interior dos presídios paulistas. (as facções rivais mais conhecidas em SP são o CDL -“Comando Democracia e Liberdade”- o CRBC - “Comando Revolucionário  Brasileiro do Crime” e a “Seita Satânica”) Essa transferência foi o elemento catalisador de um extraordinário movimento de protesto - sem qualquer precedente no Brasil - que envolveu 29 instituições prisionais em rebeliões simultâneas e sincronizadas no último domingo, dia de visitas de familiares. O movimento foi planejado e decidido com muita rapidez a partir de contatos telefônicos (via celular) das lideranças do PCC e, por sua extensão e grau de organização, surpreendeu a todos. As rebeliões se deram com a tomada integral dos presídios, com dezenas de reféns (funcionários do sistema) e com milhares de familiares dentro das instituições (basicamente, mulheres e crianças). O governo de São Paulo, por decisão direta do governador em exercício e do secretário de segurança, determinou a imediata ocupação dos presídios pelo choque da Polícia Militar. A intervenção da Polícia Militar implicou em uma série de atos abusivos e inaceitáveis - como o fuzilamento de, pelo menos, 3 presos desarmados na Casa de Detenção (cenas mostradas pelo SBT ainda no domingo) e por muitas ocorrências de espancamentos e violência em várias outras instituições que vitimaram não apenas internos, mas também familiares. (uma menina de 3 anos, por exemplo, foi atingida por uma bomba de gás e encontrava-se, até terça, na UTI) As rebeliões, de qualquer maneira, foram contidas e dominadas até a tarde de segunda. O número de mortos - ainda sem uma conta definitiva - foi de 19 presos. Não se sabe, exatamente, o número de feridos. Pelos atendimentos na rede hospitalar, pode-se afirmar que dezenas de familiares foram atingidos. Não se tem qualquer estimativa sobre o número de presos feridos. Pelo menos um PM foi ferido à bala.

Uma comissão de parlamentares (Suplicy, Luis Eduardo, Ivan, Rolim, Gabeira) mais representantes de ONGs (Pastoral Carcerária, Justiça Global, OAB, etc.) tentou durante a segunda e a terça, acompanhar os procedimentos de revista (pente fino) da Polícia Militar na Casa de Detenção. Até o final da tarde de terça, entretanto, não se havia sequer logrado o objetivo de entrar na instituição e contatar qualquer preso. O governo do estado de São Paulo, criou - esta é a verdade - todas as dificuldades possíveis para que se exercesse uma fiscalização mínima sobre os procedimentos posteriores à rebelião tratando os parlamentares com desprezo e impedindo o exercício de suas prerrogativas.

O estado de São Paulo possui, hoje, 94 mil presos, o que significa quase 50% do total de presos no país. (estima-se que tenhamos, hoje, 220 mil presos no Brasil) Uma boa parte deles - já condenados- ainda em carceragens sub-humanas de delegacias de polícia. A cada mês, mais de mil novos presos são encaminhados ao sistema apenas em São Paulo. 23% das verbas orçamentárias previstas para o Sistema Penitenciário no ano 2000 foram contigenciados pelo Governo Federal. Ao final do ano passado, o presidente Fernando Henrique assinou o tradicional “Indulto de Natal” - mecanismo pelo qual se oferece o perdão a presos que se enquadrem em determinados pré-requisitos definidos objetivamente pelos termos do decreto - fazendo, dessa vez, o decreto mais restritivo da história da República. (apenas 1% dos presos brasileiros foram beneficiados, contra uma média histórica de 8% de beneficiados)

A versão do governo de São Paulo e sua resposta:

As autoridades governamentais sustentaram a versão de que o movimento de domingo tornou-se possível graças à extraordinária organização e ousadia do PCC. Afirmaram reconhecer que haviam menosprezado o poder dessa facção criminosa e que, portanto, não imaginavam que sua reação às transferências pudesse ser tão grande. Disseram, também, que a mega rebelião possuía um “caráter político” uma vez que os amotinados não apresentaram qualquer tipo de reivindicação relativa à execução das penas. Que, pelo contrário, pretendiam simplesmente fazer o governo recuar na decisão das transferências - o que, por óbvio, seria inaceitável. Essa versão terminou sendo reproduzida integralmente pela maior parte dos órgãos de imprensa.

Ainda na segunda feira, em coletiva à imprensa, as autoridades governamentais anunciaram as primeiras medidas que tomariam. Basicamente, trabalham com a decisão de “endurecer o jogo”. Pretendem reforçar mecanismos de segurança e repressão, processar os presos que haviam sido transferidos como co-autores das mortes resultantes do movimento, restringir o acesso de visitantes, etc. Pretendem, ainda, construir unidades de segurança máxima - aos moldes de Taubaté - e concentrar nessas instituições as principais lideranças das facções organizadas, de forma a isolá-las da massa carcerária. Nessa perspectiva, o governo federal - através do Ministério da Justiça, já anunciou a liberação de 24 milhões de reais para que o projeto tenha início. O tom geral das declarações governamentais é o de “retomar o controle” , “combater o crime organizado dentro dos presídios”, “afirmar a autoridade do Estado sobre os delinquentes” , etc.

A versão do PCC e sua resposta:

Na manhã de terça feira, acompanhado do Dr. Carlos Cardoso - Promotor de Justiça e Assessor de Direitos Humanos do MP/SP - me dirigi à Penitenciária Estadual, onde também houve motim. Eu havia estado lá em agosto quando da Caravana que fizemos pela Comissão de Direitos Humanos, havia conversado com muitos presos e conhecia o seu diretor - que na época era o chefe da segurança. Sem qualquer dificuldade, entramos na instituição, a inspecionamos, conversamos com presos, com funcionários e com a direção. Foi possível, então, contatar, reservadamente, com 6 dirigentes do PCC que concordaram em conversar conosco sob o compromisso de não revelarmos os seus nomes. As informações a seguir são aquelas que eles nos passaram:

O PCC teria planejado o movimento na sexta feira, tão logo souberam da transferência dos seus companheiros. Foram informados dessa transferência por um funcionário de Taubaté, via telefone celular. Taubaté é dirigida pelo Sr. Ismael Pedrosa, que era o diretor do Carandirú quando do massacre em 1992. Segundo o PCC, ele é diretamente responsável por um regime prisional alicerçado na prática constante de espancamentos. Afirmaram que um dos seus assessores diretos - conhecido como “Rambinho” - diverte-se espancando presos com golpes de cano. Que esse mesmo funcionário matou um apenado em uma sessão de golpes e que nada lhe aconteceu. Informam, ainda, que o regime imposto aos condenados em Taubaté lhes assegura 30 minutos diários de pátio e proíbe os presos de manterem relações sexuais com suas companheiras.  Agregam, ainda, que são humilhados diariamente e que a alimentação oferecida é uma “lavagem”. Por conta dessas condições, não aceitam transferências para aquela unidade e preferem morrer do que serem “embalados” para lá.

Afirmaram que o movimento foi decidido para o dia de visitas porque essa seria a única garantia que eles teriam contra uma provável invasão do Choque. Imaginavam que com os familiares dentro das instituições, o governo não teria alternativa a não ser estabelecer uma negociação com eles.  Afirmaram que a ordem dada aos “irmãos” era a de tomar as cadeias, não fugir e impedir qualquer morte. Queriam demonstrar força e serem ouvidos. Nas palavras de um deles: “queríamos demonstrar que nós não estamos enterrados vivos como eles pensam”; ou, como o disse outro: “O único jeito deles nos ouvirem é fazendo baderna”. Ninguém do Estado,  entretanto, estabeleceu com o comando do PCC qualquer contato; que o Choque invadiu as penitenciárias atirando contra presos, familiares e reféns. Que, antes disso, poderiam ter fugido e não o fizeram; que poderiam ter decidido pela morte dos reféns e não o fizeram. Que as mortes de alguns apenados pelas mãos de outros caracterizaram “acerto de contas”, entre indivíduos e grupos, e que isto escapa totalmente do controle deles, especialmente em cadeias maiores com milhares de presos.

Afirmaram que possuíam uma “pauta de reivindicações” onde o problema das tranferências para Taubaté era apenas um ponto; importante, por certo, mas um ponto. Que, por essa pauta, exigem o fim dos espancamentos no sistema; a maior agilidade na tramitação dos seus processos e na concessão dos benefícios de progressão de regime; o contato com a Corregedoria do sistema; providências quanto a alguns diretores de presídios que estariam, propositalmente, misturando presos de facções rivais - o que equivale a uma sentença de morte (citam os presídios de Guarulhos, Franco da Rocha, Sorocaba, Pirajuí, Pacaembú e o Anexo da Detenção como casos típicos) ; e o fim da humilhação das visitas - submetidas à praxe do desnudamento, exibição dos órgãos sexuais, etc. quando das revistas.
Relataram possuir uma organização que pode repetir movimentos como o de domingo a qualquer momento e que, da próxima vez, “a coisa será bem mais séria porque estaremos preparados para receber a tropa de choque”. Relataram que seu “partido” - a forma como se referem ao PCC - possui um Estatuto e que, por esse documento, se obrigam a recolher, mensalmente, 30 reais ao “caixa 1” da organização. Com esses recursos, montaram uma rede de assistência aos “irmãos” (filiados ao PCC) e aos “primos” (presos amigos da organização). Pagam despesas com advogados, compram remédios, ajudam familiares mais necessitados. Na penitenciária Estadual, ofereceram à administração a possibilidade de compra de uma ambulância para o transporte dos doentes (!) Possuem, ainda, um “caixa 2” com recursos de ações externas - notadamente assaltos, sequestros e tráfico - com os quais financiam operações externas como resgate de presos e execuções.

Relataram que possuem vários funcionários do sistema na “folha de pagamento” do PCC e que, por conta disso, podem contar com armas, celulares e drogas a qualquer momento e na quantidade que puderem pagar.
Afirmaram que não irão mais tolerar casos de tortura e que “para cada irmão espancado, um carrasco será morto”. Que não possuem qualquer contrariedade às punições contra presos feitas “na caneta” - isolamento, corte de benefícios, etc. que consideram que “preso que erra tem de pagar, mas só paga quieto quando sabe que a punição é justa” .

Uma avaliação política sob a égide dos Direitos Humanos:

O movimento dirigido pelo PCC em São Paulo se diferencia no histórico de rebeliões em presídios brasileiros basicamente por três características marcantes:

1) Sincronia da ações em âmbito estadual - nunca se logrou uma rebelião que envolvesse, simultaneamente, tantas unidades prisionais e, muito menos, em área geográfica tão significativa.

2) Nível de organização - O PCC promove uma relação hierárquica fundada por um pacto de sangue. Dissensões e traições são punidas com a morte. A disciplina da organização parece ser muito consolidada e a estrutura organizacional - ainda que pouco complexa - é operante e mobilizável em curto espaço de tempo.

3) A exposição de familiares - Uma das regras mais preservadas pelos presos brasileiros sempre foi o respeito aos familiares. O PCC não renega essa tradição, mas introduziu uma importante mudança quando decidiu-se por expor mulheres e crianças aos riscos de uma rebelião, valendo-se deles como escudos humanos.

Uma perspectiva política comprometida com os Direitos Humanos não pode ser conivente com a postura do PCC pela decisão de expor familiares e, notadamente, centenas de crianças, aos riscos inerentes a uma rebelião.  Trata-se de uma postura instrumental que reduziu milhares de pessoas indefesas e fragilizadas aos riscos de um massacre. Na mesma linha, é absolutamente inaceitável que presos tenham sido assassinados - alguns deles com requintes de selvageria - em “acertos de contas” produzidos por facções rivais. Devemos exigir que as investigações em curso identifiquem a autoria e as responsabilidades envolvidas nesses casos de execução que nos remetem à barbárie. Pelos mesmos motivos, não podemos ser coniventes com a decisão de tomada de reféns. Nenhuma circunstância prisional, sequer a mais grave e humilhante entre as vividas pelos internos, pode justificar a ameaça de morte que pressupõe a tomada de um refém. Procedimentos dessa natureza são inaceitáveis.

Por outro lado, avalio que não se deve superestimar a organização do PCC; ou de qualquer outra facção atuante em presídios brasileiros. Suas lideranças, com raras exceções, são integradas por presos com formação rudimentar, desprovidos de qualquer capacidade de planejamento a médio ou longo prazo, incapazes de realizar movimentos táticos, de reconhecer com clareza o papel dos agentes sociais, etc. São lideranças que agregam, em sua ousadia, frieza ou despreendimento, os termos de uma situação sem saída em que se descobriram. São jovens, semi- alfabetizados, com longas condenações a cumprir e absolutamente desprovidos de perspectiva. Essa condição os impulsiona mais do que qualquer outra e, nela, o que se verifica é o desespero. Em verdade, penso que sempre que se superestima o potencial desses grupos clandestinos, o que se procura obscurecer é a fragilidade e a incompetência do Estado. Assim, por exemplo, boa parte das matérias da imprensa destacou que os presos do PCC são tão organizados que comandam as ações com o uso de telefones celulares. Ora, ninguém registrou que os presídios de São Paulo não dispõem de detetores de metal - equipamento elementar de segurança prisional. Se não há detetores de metal, então haverá armas e celulares com os presos. O que aparece como uma força do PCC é, então, apenas uma expressão da incompetência dos agentes públicos e do tradicional descaso dos governos.

O espaço para a organização de comandos clandestinos dentro de estruturas prisionais é, de outro lado, diretamente proporcional à ausência de mecanismos institucionais de interlocução do próprio sistema com os presos.  Parece incrível, mas a maioria dos presídios brasileiros não dispõe de qualquer instituto de recolhimento de queixas e demandas de internos. Como regra, as direções das casas prisionais não estabelecem acordos, pactos, combinações com a massa carcerária em torno de procedimentos administrativos que envolvem a execução penal para além daquilo que dispõe a Lei de Execução Penal (LEP). Agem, então, de forma absolutamente arbitrária impondo aos presos uma sucessão de novas sentenças - agora extra-judiciais - que vão desde a postura exigida ao deslocar-se no interior das unidades (braços cruzados, mãos na cabeça, contenção em área delimitada por faixas, etc) até a privação do exercício da sexualidade. O sistema reproduz as características que definem as chamadas “instituições totais” e funda o cárcere como uma instância de sujeição e disciplina, voltados para o amesquinhamento e a aniquilação dos indivíduos. O próprio sistema prisional brasileiro é, sabidamente, um sistema fora da lei que promove, institucionalmente, a violação de correspondência dos internos - prática que viola a Constituição - , o desnudamento dos familiares, incluindo crianças, quando das revistas; que viola a determinação legal de prisão em cela individual; que sonega o direito ao trabalho, à saúde e à educação dos internos, que mantém presos em isolamento por meses a fio, quando não por anos inteiros como flagramos em Piraquara - PR - na Caravana; que abriga e protege torturadores, que é conivente com a corrupção, que encarcera pessoas, como em Fortaleza, sem conceder-lhes sequer alimentação, etc. Por conta dessas marcas, o sistema necessita da obscuridade e é concebido a partir de imposições ditas “de segurança” - todas elas também ilegais - pelas quais se veda a luz pública no interior das instituições. A sociedade civil, por definição, está excluída de qualquer possibilidade de acompanhamento da execução penal pelo que relega-se os presos ao mais completo abandono. De fato, pretende-se que eles sejam “enterrados vivos” ; quem há de se importar?

A postura tomada pelo governo de São Paulo nos ofereceu um exemplo de irresponsabilidade no trato de conflitos agudos no sistema prisional. Por determinados constrangimentos casuais - como, por exemplo, a presença dos órgãos de imprensa no Carandirú e o sobrevôo de helicópteros das emissoras ; as cenas exibidas na tarde de domingo pelo SBT que flagraram o fuzilamento de três presos ou a decisão do PCC de realizar um protesto que não envolvia uma possível resistência à invasão do choque - impediu-se um massacre que parecia ser o desdobramento mais lógico da decisão de atribuir à PM a solução do conflito. Ora, precisamente essa decisão foi saudada pela opinião pública, submetida, aqui, aos limites erguidos pelo preconceito e à hegemonia ideológica das opiniões mais reacionárias. Cabe a nós, do PT, criticar radicalmente o governo de São Paulo por essa primeira decisão que é, em si mesma, inaceitável. Não se autoriza a invasão de uma casa prisional pelo choque quando há dezenas de reféns e milhares de familiares junto aos internos. Aceitar isso equivale a saudar a barbárie.

Nessa mesma linha, devemos criticar radicalmente a PM pela postura covarde de alguns dos seus integrantes que dispararam seus fuzis contra presos desarmados pelas costas como as cenas do SBT revelaram. Mais, devemos criticá-la pelo emprego de bombas de gás e pelos disparos com balas de borracha que expuseram e feriram familiares de presos, incluindo crianças, e que colocaram em risco absolutamente desnecessário a vida dos funcionários que haviam sido tomados como reféns. O procedimento não tem fundamentação técnica e viola todas os princípios da convenção 169 da ONU sobre o emprego da força e uso de armas de fogo por parte dos agentes encarregados de fazer cumprir a lei - da qual o Brasil é signatário.

Devemos criticar o governo de São Paulo pela ausência de transparência e pelo desrespeito com que tratou os parlamentares e as entidades que tentaram contatar com os presos da Casa de Detenção. Não é admissível que um Senador da República e vários deputados federais e estaduais sejam obrigados a permanecer por 48 horas esperando autorização para realizar uma inspeção que integra suas prerrogativas mais elementares. O que se desconsidera, aqui, é a própria democracia e delegação conferida pelos cidadãos aos seus representantes.

Devemos criticar o governo de São Paulo pela absoluta desconsideração com que tratou os familiares dos presos em todo o episódio e nos dias que sucederam o motim. Em nenhum momento, um único representante do governo dirigiu-se aos familiares dos internos fornecendo-lhes qualquer informação.  Sequer o nome dos mortos foi apresentado àquelas mulheres - mães, esposas, filhas - que se aglomeraram às centenas em torno das casas prisionais à procura de informações; na maior parte das vezes apenas para saber se o seu familiar estava vivo. A esposa de Marco Willian Camacho, um dos dirigentes do PCC, transferido para o Rio Grande do Sul, sequer foi informada da transferência, não sabia - ainda na terça feira - em que presídio ou em que cidade do RS seu marido se encontrava. Quando me encontrei com ela, me contou que havia descoberto no final de semana que estava grávida e que não podia sequer dar a notícia ao marido. Certamente, o governo do Sr. Geraldo Alkmin não trataria dessa forma os familiares do senhor Nicolau dos Santos.  Gente fina, como se sabe, é outra coisa.

Esse governo de gente fina de São Paulo, gente que nunca colocou os pés dentro de um presídio, que nunca manteve uma conversa com um interno, mas que - mesmo assim - dirige-se à imprensa para oferecer receitas de como se deve tratar com “essa escumalha” não pode merecer de nossa parte qualquer palavra de apreço e, muito menos, elogio. Nesse momento, o governo de São Paulo age em sintonia com as vozes professorais das eminentes autoridades da República sempre dispostas a clamar em favor da “ordem”; a mesma ordem que industrializa miseráveis, que empurra milhares de jovens à delinquência e que lhes reserva seu lixo e suas prisões.

Desafios de curto e médio prazo:

O primeiro problema a enfrentar, particularmente no caso de São Paulo, é o da disputa sobre qual o caminho a seguir no enfrentamento à crise do sistema prisional. Se o caminho a ser seguido for, como tudo indica, um incremento das restrições impostas aos presos, novas supressões de direitos, enfim, o endurecimento, estou convencido que estaremos, em breve, novamente contando cadáveres. Se, pelo contrário, o caminho a ser seguido envolver um processo de escuta das demandas dos internos e um diálogo produtivo com compromissos estabelecidos de parte a parte, nos termos da LEP, temos uma boa chance de distensionar o sistema e evitar a eclosão de movimentos como o do último domingo.

Sustento que devemos propor a redefinição da política de administração prisional nos marcos das “Garantias e Regras Mínimas” que apresentei ao governo do Estado do RS em 1999. Nesse documento, ofereço um regramento global para o sistema penitenciário redefinindo praxes administrativas, abrindo as unidades prisionais à sociedade civil através de uma nova composição dos Conselhos de Disciplina, criando o devido processo legal para as punições por transgressão disciplinar e, portanto, reduzindo radicalmente a discricionariedade do agente público, etc. A proposta incluiu um mecanismo institucional de interlocução com os presos com a criação da representação prisional.

A médio prazo, o desafio maior será o de demonstrar à opinião pública que o modelo prisional brasileiro - condicionado largamente pelo Código Penal de 1940 - é, ele  mesmo, incapaz de ser reformado ou saneado. Uma estimativa bastante conservadora nos apresenta, hoje, o déficit de 90 mil vagas no sistema prisional brasileiro. Temos cerca de 220 mil presos e algo em torno de 300 mil mandados de prisão para serem cumpridos no país. Apenas esses números são suficientes para demonstrar à exaustão a insanidade pressuposta na idéia de que seja possível enfrentar a crise do sistema penitenciário construindo novas prisões. Ora, ou bem se diminui radicalmente a demanda por encarceramento no país, ou não haverá qualquer solução possível. Ao contrário do que o senso comum costuma imaginar, quanto maior o número de pessoas que mandarmos para a prisão, mais inseguros estaremos. Sim porque o encarceramento é, sabidamente, um dos fatores mais importantes da criminogênese. Ao invés de erguer prisões, nosso desafio consiste, precisamente, em esvaziá-las. As penas privativas de liberdade devem ser reservadas, basicamente, àqueles cuja presença na sociedade ofereça ameaça concreta à vida ou à integridade dos demais. As prisões não devem ser concebidas como espaços para a vingança social, mas como instrumentos de uma apartação necessária à preservação da vida. Nosso caminho deve propugnar , na linha do Direito Penal Mínimo, o alargamento das possibilidades de aplicação de penas alternativas à prisão. No Brasil, de cada 100 condenações por ilícito penal, 98 recebem como pena a prisão e apenas 2 recebem sentenças de penas alternativas. Na Inglaterra, como de resto na grande maioria dos países europeus ocidentais, de cada 100 condenações por ilícito penal, 80 recebem penas alternativas à prisão e apenas 20 recebem sentenças privativas de liberdade. Ao invés de seguirmos o modelo americano de encarceramento em massa e de leis penais cada vez mais demagogicamente “duras”, faríamos melhor se olhássemos para a experiência européia e sua política criminal. Nós do PT devemos ter um especial cuidado com esse tema para que não reforcemos, por desaviso ou ingenuidade, a hipótese repressiva que caracteriza a face oculta da figura ideológica do Estado Mínimo, a que costumo chamar de “Estado Penal Máximo”.

Obs - Informações úteis sobre o tema podem ser encontradas nos documentos:

1) “Relatório da II Caravana Nacional de Direitos Humanos - uma amostra da realidade prisional brasileira” - Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, 2000

2) “O Labirinto, o Minotauro e o Fio de Ariadne - Garantias e Regras Mínimas para a Vida Prisional”, Marcos Rolim, 1999.

Ambos acessíveis em www.rolim.com.br