"querida,

(...) Se estes meus delírios parecerem muito delirantes, ignore-os, afinal, não é isso que mantém a gente junto, apesar da distância, e sim a perspectiva de uma tarde de janeiro (ou manhã, ou noite) em que seu ônibus chegue no Terminal Rodoviário Tietê (mas é sempre à tarde que se imaginam as chegadas) e eu veja através da grade verde um rosto cauteloso e sorridente descendo as escadinhas, olhando ao redor, as colunas de concreto que sempre parecem tão incrivelmente paulistanas para quem chega de viagem, como sucedeu comigo, em maio, nessa mesma plataforma, e como creio que acontecia agora com você, tão incrivelmente não-paulistana, procurando, procurando (sorrindo) um espectro de rosto que havia se refugiado no plano das idéias por longos nove meses (pois não havia lhe mandado foto minha) e que, como um feto ao contrário, decompunha-se lentamente em seu íntimo: em junho meu cabelo virando uma mancha escura e míope sobre a cabeça, o relevo das sobrancelhas e olhos adquirindo traços de retrato falado por volta de agosto, a boca, uma lembrança mera e congeladamente verbal (“uns lábios carnudos que eram bons de beijar”, talvez) e em seu nono mês, internada num ônibus, é como se você visse meu rosto sob uma luz de lua crescente, a uns dez metros de distância; e agora seu olhar quase cruzaria com o meu não fosse essa matrona que se atira à minha frente, berrando e acenando histericamente para que seu pobre sobrinho, que naquele momento descia amedrontado do mesmo ônibus, não tivesse a chance de se perder.

Então o céu se abre e durante um segundo o parto, cegante, chocante embora já esperado: meu rosto é dado à luz do sol (se não for noite): a alegria (evidente) de nós dois, sob os sorrisos um híbrido de Lázaro com Tomé, como se no fundo não acreditássemos ser possível que o outro ainda existisse depois de tanto tempo sem constatar isso visualmente, e eu lhe sorriria como um simulacro de cachorro contente, panaca paranóico, antes de me dar conta de que isso não era necessário com você, não com você. Nós nos beijamos, querida, o melhor beijo, como me veio à memória quando li o capítulo sete do Jogo da Amarelinha na plataforma de desembarque (e mais tarde eu o leria pra você).

Nós nos abraçamos, e eu poderia descrever minha sensação para alguém, nesse momento, por “lamentando cada segundo desses nove meses em que não nos tocamos” ou “arrependendo-me de cada respiração minha que não tivesse sorvido o cheiro de tua pele”, tamanha a alegria e o descaso com ridículos e medidas que fossem de qualquer natureza externa a nós dois. Depois eu ajudaria a carregar suas malas, não fosse uma súbita e inoportuna certeza me cair na cabeça como cocô de pombo, naquele instante: essa seria a coisa a ser feita, acompanhar-lhe com as malas, finalmente a falta de escolha se escancarando, bem no momento em que a escolha é óbvia; e como você toma o absurdo por grosseria, eu teria apenas um segundo de impasse antes de tudo se estragar; e é por isso que acabo de me convencer a inventar qualquer pretexto para não ter que a esperar na rodoviária, limitando-me a aguardar uma ligação sua depois que, carregando suas próprias malas, você se instalasse em algum hotel do centro.”
 

Marcos T.

Os belos eslovos da carta acima são um patrocínio de Moloko
 

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