Larica Man Versus supersafra Gustavo "Mini" Bittencourt
Larica Man, o herói da rapaziada, estava confortavelmente jogado nos almofadões de seu QG, um JK no centro da cidade, esmurrugando uma mãozada de fumo australiano que ele recém tinha recebido. Um de seus contatos havia competido em Sidney e aproveitou a imunidade olímpica para trazer quilos de maconha no casco de seu veleiro.
"Aê, Larica Man. Por você ter me salvo daquela vez que os peixes quase afundaram meu barco."
"Tudo bem. Foi um prazer, velho. Eu gosto de peixe. Frito, assado, cru…"Com a habilidade nata de alguém que nunca deixou de praticar mesmo dotado de superpoderes, Larica Man fechou um baseado de quatro sedas e o acendeu em segundos enquanto colocava um disco de dub par a tocar. Vinil, porque esse troço de CD sempre foi muito complicado.
Quando a curtição começava a bater, o telefone tocou. Recém na segunda música (ou seria a sexta?). Era mais uma missão.
"Alô, Larica Man?"
"Ahnnnnn?"
"Larica Man, você precisa nos salvar!" "Arrãaaan…"
"Somos um grupos de agricultores de Encruzilhada de Baixo e estamos sob a sombra de uma grave ameça."
"Hmmmmmmmmmmm… onde fica… Enzica.. Enzu… Encruzilhada de Baixo?"
"Sabe o barranco em que termina Encruzilhada de Cima?"
"Noooooooooooouuuu…"
"Pois é, fica embaixo. Estamos lhe esperando!"E TLUC, desligou o telefone.
Larica Man coçou a barriga e pensou durante vinte minutos.
Antes de qualquer decisão, iria terminar seu baseado australiano. Então estaria pronto para qualquer missão. Virou o disco de dub e pensou consigo mesmo: "Agricultores… devem ser pequenos produtores ameaçados por latifundiários sanguinários… gente do bem… tenho que fazer esse pessoal se entender… levar a paz até eles…"Horas mais tarde, colocou-se de pé e foi atrás de seu uniforme: uma calça de brim com um furo em um dos joelhos, um All Star cano alto rasgado e uma camiseta Hering branca toda manchada de comida. Sem seu uniforme, Larica Man não era nada.
Já vestido, pegou as chaves do seu Uno Mille batido e partiu para Encruzilhada de Baixo, a 70 quilômetros dali.
***
Quatro dias depois, um Uno Mille batido estacionou em frente a um boteco em Encruzilhada de Baixo. Precedido por uma nuvem de fumaça de erva da boa, Larica Man entrou no boteco causando comoção. Velhos agricultores tossiam sem parar, alguns segurando tacos de bilhar, outros cartas e o restante cigarros de palheiro e martelinhos.
"Cof cof cof cof!"
"Cof cof cof cof!"
Aos poucos o ventilador lento do teto foi dissipando a fumaça e revelando a figura triunfal de Larica Man. Um dos agricultores logo reconheceu o uniforme e foi em direção ao nosso herói espantando o que restava da fumaça com os braços. As moscas zumbiam mais calmamente."Cof cof cof… Larica Man, meu nome é Adão… cof… você precisa… cof… nos ajudar…"
"Claaaro Adão Cof… meu negócio é ajudar a rapaziaaaada… qual é o stress?"
"Cof… a colheita de milho, Larica Man. Tivemos uma supersafra… o milho está todo lá, estocado… em breve vai estragar…não há o que fazer… cof… se ele apodrecer, muitas pessoas irão adoecer…"
"Hmmm… um caso clássico para Larica Man…""Você tem que nos ajudar, Larica Man. Nossa vida depende do nosso milho."
Dito isso, o velho apontou para trás, englobando os companheiros que vestiam camisa social, boné de pesticida e havaianas clássicas."Pobre gente… Adão Cof, você pode me levar até o local onde aconteceu a supersafra?"
"Claro, Larica Man. A cidade é pequena. Logo chegamos lá."
"Vamos no meu carro. É mais seguro."
"Você não quer comer nada?"
"Calma. Uma coisa por vez."***
"D-d-d-o-o-o-ob-b-b-b-br-r-r-r-ra-a-à-a-dd-d-d-d-i-i-i-i-ir-r-r-r-e-e-e-e-eii-i-i-t-t-a-a-a."
"A-a-a-a-a-aq-q-q-q—u-u-u-i-i-i?"
"I-s-s-s-s-o-o-o-o."
O Uno Mille de Larica Man só não se desfez na estrada esburacada por que já não havia muito o que se desmontar. Foram 15 quilômetros de estrada batida. Mais de uma hora de viagem. Larica Man se perguntou por que chamam a estrada de batida se o que batia era o carro. Mas tudo bem. Era divertido.
Suas fitas de dub ficavam ainda mais viajantes com o efeito."Q-q-q-q-uu-u-u-u-ee-e-e p-p-p-p-a-a-a-a-a-l-l-l-lh-e-e-e-e-e-I-I-I-I-I-I-r-r-r-r-ro m-m-m-m-m-a-a-a-ii-I-I-I-I-s e-e-e-e-e-s-s-s-s-s-t-t-t-t-t-t-r-r-r-r-r-aa-a-a-a-n-n-n-n-n-h-o-o-o-o-o, f-f-f-f-f-ii-I-I-I-I-I-l-l-l-l-ll-h-o-o-o-o-o-o!", disse o agricultor quando Larica Man acendeu o charro no caminho.
Assim que estacionou o carro próximo ao galpão principal da fazenda, Larica Man viu que havia milho saindo pelas janelas e portas. Calculou que teria um longo trabalho pela frente.
Suspirou pesadamente."O que houve? Você não pode nos ajudar?"
"Posso sim. Mas vou precisar de algumas coisinhas, Adão Cof."
"O quê?"
"Um panelão. Lenha. Fósforo. Sal. E manteiga."
"Eu… vou providenciar."
Enquanto Adão ia até a casa, Larica Man concentrou-se na enorme larica que vinha alimentando há 4 dias. Até então ela era um pequeno incômodo em algum recôndito do estômago. Aos poucos, a habilidade de Larica Man foi libertando a larica concentrada até que ela se tranformasse em uma enorme onda que fez a pequena Encruzilhada de Baixo estremecer. Conta-se que até algumas ruas de Encruzilhada de Cima sentiram o pequeno terremoto. Mas muita gente de Encruzilhada de Baixo achou que era inveja porque Encruzilhada de Cima era maior e nunca tinha recebido um super-herói."Larica Man, aqui está o que você pediu."
"Ok, Adão Cof. A partir daqui é comigo."
Larica Man pegou o carrinho de mão com a lenha, o panelão, o sal e a manteiga e se dirigiu até o galpão onde estava estocado o milho excedente. Encheu o panelão de água, colocou- o sobre a lenha e acendeu o fogo. Foi até o galpão e pegou uma braçada de milho. Seu estômago roncava enlouquecido.Quando os primeiros milhos ficaram prontos, devorou em poucos segundos, esquecendo até mesmo do sal e da manteiga.
Seu Adão assistia ao galpão ser esvaziado com um misto de surpresa e aprovação. Ninguém podia comer tanto e tão rápido assim. Mas, diabos, quem se preocupava com isso? O importante era que a economia de Encruzilhada de Baixo estava sendo salva.***
O galo já tinha cantado há algumas horas. Seu Adão dormia no alpendre da casa enrolado em um cobertor. Tinha pegado no sono durante o trabalho de Larica Man.
"Adão Cof?"
Se assustou com o bafo de milho. Larica Man o encarava com o rosto a alguns centímetros do seu.
"Não se assute. Sou eu, Larica Man. Terminei o serviço.
Encruzilhada de Baixo está salva."Seu Adão desviou os olhos para o galpão. Estava vazio. Ele não podia acreditar. Se desvencilhou do cobertor, empurrou Larica Man para o lado e correu até lá. Era inacreditável. Larica Man tinha dado cabo de quase duas toneladas de milho. O filho da puta era realmente bom.
Quando seu Adão voltou para a frente da casa, Larica Man já preparava seu Uno Mille para voltar à capital. Seu Adão aproximou –se por trás agradecendo.
"Obrigado, Larica Man. A economia de Encruzilhada de Baixo não está mais ameaçada."
Larica Man, que procurava na sua mochila uma outra Hering menos manchada, parou instantaneamente. Sem se virar, perguntou intrigado.
"Economia? Mas eu pensei que era um problema de saúde pública…"
"Que saúde pública o quê, Larica Man? O problema da supersafra é que o preço do milho cairia vertiginosamente e teríamos que vender nossas propriedades, nossas picapes, nossos home-theaters, nossas parabólicas…"Percebendo que fora enganado, Larica Man desistiu de trocar de camisa. Virou-se e foi caminhado em direção a seu Adão, mostrando os ombros largos e a barriga avantajada.
"Adão Cof… você está me dizendo que eu, Larica Man, fui usado, deixando de atender casos mais importantes para salvar a fortuna de latifundiários?"
"Exatamente, Larica Man. Mas não fique assim. Nós também somos filhos de Deus. Ha ha ha ha ha ha ha ha ha ha ha!"
"Não entendo… latifundiários? Mas e aquele bar sujo? Esse bonezinho de pesticida? Essa havaiana velha?"
"Hoje em dia é perigoso ostentar a riqueza, Larica Man. O seqüestro já chegou a Encruzilhada de Baixo. Quem sabe você não fica aqui para combater o crime também? Ha ha ha ha ha ha ha!"O riso debochado de seu Adão ecoava na cabeça eternamente chapada de Larica Man. Ele era um cara extremamente pacífico. Nunca brigava por nada. Mas ser usado por latifundiários burgueses era algo que estava bem além do limite de sua paciência.
"Ha ha ha ha ha ha… que tal uma paçoquinha, Larica Man?"
Arrasado, nosso herói entrou no Uno Mille maquinando uma maneira de dar o troco nos latifundiários de Encruzilhada de Baixo. Sua cabeça girava, ele não conseguia pensar em nada. Nem mesmo o dub, que sempre lhe dava boas idéias, ajudava. Até que, numa curva, ele viu um pequeno riacho que aparecia entre as árvores. Freou o Uno Mille, deu uma ré e parou para admirar a beleza do córrego. Desceu para respirar um pouco do ar puro, sentir a natureza, fumar um, clarear as idéias. Trancou o carro e caminhou mata adentro, acompanhando o riachinho.
Enquanto fumava, percebeu que o riachinho se tranformava em rio a continuava aumentando até dar em uma lagoa pouco mais de cem metros adiante. Resolveu seguir até lá e descansar um pouco. Apoiou-se em uma placa e ficou lembrando o acontecido. Pensando bem, talvez nem fosse o caso de se vingar. Azar. Aqueles latifundiários ainda iam se dar mal. Aqui se faz, aqui se paga.
O baseado terminou e Larica Man sentiu vontade de ir ao banheiro. Era coisa pesada, resultado dos milhos. Não via nenhuma casa por perto. Teria que resolver aquilo por ali mesmo. Abaixou-se para apagar o baseado na placa. Foi aí que leu o que havia nela.
REPRESA DE ENCRUZILHADA DE BAIXO.
Ficou com o baseado na mão ainda alguns segundos.
Sorriu.
Tinha acabado de achar uma maneira de se vingar de Encruzilhada de Baixo.***
Dias depois, quando Larica Man já estava no seu JK, pegou o jornal do vizinho para ver o que estava acontecendo no mundo. Fechou a porta, e procurou na pia sua caneca de chá que tinha trazido de Amsterdam. Serviu-se e começou a folhear o jornal ainda sonolento. Quando chegou na página 45, viu que o mundo tinha jeito.
"Coliformes poluem represa e comprometem colheita em Encruzilhada de Baixo."
Justiça foi feita, pensou Larica Man. E fechou o jornal. Pronto para acender o primeiro baseado do dia.
Um milharal nem sempre é apenas um milharal