Sansão e os ovos
Péricles Ponte Preta
 
Então Dalila fez dormir Sansão nos joelhos dela, e,
tendo chamado a um homem, mandou rapar-lhe as sete tranças
da cabeça; passou a subjugá-lo; e retirou-se dele a sua força

Então os filisteus pegaram nele, e lhe vazaram os olhos,
e o fizeram descer a Gaza; amarram-no com duas cadeias de bronze, e virava um moinho no cárcere.

(Livro dos Juízes 16:20-21 -
A opressão Filistéia e a carreira de Sansão)
 

Justamente Antenor que tinha uma predileção por seu ovo esquerdo.

Cara lisa, vasta cabeleira negra emplastada de gumex e um bigode ralo estilo latino. Adorava massagear compulsivamente seus ovos. Cultivava esse curioso cacoete desde a adolescência, e com os anos passou a meticulosamente coçar apenas o ovo esquerdo, e ensinava: - “Uma arte!”, costumava apregoar. Acreditava ser especial por saber distinguir um ovo de outro ao lançar mão seu vício exibicionista.

Indisposto, acordara naquela manhã de 4 de agosto com um gosto de cabo de guarda-chuva na língua: -“Deve ter sido o salaminho!”. Na véspera, estivera no buteco de Dona Efigênia, ao lado da repartição. Viúva, D. Efigênia, que herdara o buteco do falecido, nunca foi dada aos negócios, mas com a morte do velho portuga teve de colocar os seios fartos à frente dos negócios. Não era dada a intimidades, por isso detestava Antenor, que sempre ao entrar no bar se escorava justo em frente do balcão e começava seu exibicionismo escrotal para irritar a velha. Se divertia como um moleque.

Tomou um Sonrisal, lavou o rosto e como já estava atrasado nem banho tomou, apenas molhou os cabelos na medida para aplicar-lhes o tal do gel fixador. Dirigiu-se ao elevador.

- Bom dia D. Yolanda.

D. Yolanda, vizinha do 404, senhora gorda e fétida que todas as manhãs se dirigia à portaria do edifício na Rua da Passagem, em Botafogo, onde permanecia até o final da tarde, cuidando da vida de quem entrasse ou saísse. Era daquelas senhoras fofoqueiras cuja única realização na vida é justamente semear a discórdia e o fuxico.

Se encontravam todas as manhãs no elevador. Ele gostava de provocar a gorda. Era ver a velha e Antenor não pestanejava em ajustar a cueca e começar a bendita fricção. Desceria os quatro andares provocando a “gorda de oito barrigas”, como apelidara a velha. Era um ritual diário. D. Yolanda nunca se esquivara de fitá-lo nos olhos e acompanhar sem pudor todos os movimentos de Antenor. Ele acreditava piamente que ela gostava daquilo. - Bom dia Seu Antenor.

Era a senha. Levou a mão ao fundo da calça de gabardine, futucou. Algo estava errado, não achara seu ovo esquerdo, aliás não achara nem o direito. Sacudiu-se, trocou de mão, ajeitou-se ... e nada. Sentiu um frio na barriga, uma sensação esquisita percorria todo seu corpo. Aquilo não poderia estar acontecendo. Não fazia sentido algum. O pior de tudo era ter aquela gorda voyer a fitá-lo sem disfarçar: "– Bolas!", exclamava. Era justamente isso, estava sem suas bolas. O que faria? Parecia que as horas corriam e o andar térreo não chegaria nunca. Passariam semanas, anos, eras ... Era mais fácil àquele elevador atingir o centro da terra de Júlio Verne do que concluir uma simples viagem a portaria do Edifício Picânçio da Costa. Não conseguiria se livrar dos olhos da velha.

Vivia um pesadelo. E suava. Começava a se sentir desafiado por D. Yolanda. Não adiantaria fingir. Ela perceberia cedo ou tarde, e já o desafiava com os olhos fixos nas suas partes de baixo. Era mister agir com naturalidade: - "-Mas como agir com naturalidade?"
Perdera juntamente com as bolas toda a sua autoconfiança, seu vigor, seu mojo. Sentia-se menos humano agora. Nenhuma dignidade: suas bolas autofagicamente desapareceram, se autodestruíram, cresceram para dentro. Pensou em simular, mas não suportaria passar a mão de novo e perceber o vazio escrotal a que estava fadado. Estaria marcado para toda a sua existência. Ninguém deveria jamais saber de seu segredo: "– Se pelo menos alguém entrasse no elevador!". Poderia assim disfarçar, mas nada. Nenhuma alma cristã entrara no elevador, e estava ainda no terceiro andar. Sofria calado no canto do equipamento.

Resolveu olhar para chão, acuado pela velha, não arriscaria encará-la. Perdera a coragem. - “Fui descoberto!”, podia sentir a velha celebrando da mesma forma como os Filisteus (inimigos mortais dos hebreus) celebraram o momento em que descobriram que toda a força de Sansão vinha de suas madeixas. Na história de Sansão, auxiliados pela sedutora Dalila, os Filisteus cortaram os cabelos do juiz Hebreu e o escravizaram. Tal como Sansão, que perdera todas as suas forças, Antenor estava refém da “filistéia obesa”. Ela descobrira seu segredo e já o subjugava com seu vingativo olhar. Ironicamente, em sua história, não havia nenhuma bela e sedutora Dalila, mas dividia aquele segredo com ninguém menos que a voyer mais fofoqueira da vizinhança:

-Estou arruinado!

Lembrou-se que segundo as escrituras, Sansão fora acorrentado nas colunas do templo Filisteu no dia em que eles celebrariam a sua captura (e com isso o jugo a que seriam sujeitos os hebreus). Cego e preso às colunas do templo, Sansão, já tendo perdido suas forças juntamente com seus cabelos, implorou ao Deus por uma última chance de vingar os seus. Deus, então, concede ao hebreu um último suspiro de força descomunal suficiente para pôr abaixo todo o templo. Na sua morte ele mata mais filisteus que em toda sua vida de guerreiro o fizera.
Antenor respirou fundo buscando algum resquício de autoconfiança. Buscava pela mesma força que levou Sansão a derrotar seus algozes em seus últimos momentos de vida. Aquilo o tinha inspirado. Estavam entre o segundo andar e o primeiro, algo magicamente movia no interior. Sua respiração ficara ofegante. Era a força que necessitava para encarar D. Yolanda. Olhar fundo dentro dos olhos da velha voyeur de oito barrigas: “Ela já sabe de tudo, estou certo, e vai pagar caro por isso!”. Percebera ainda que a velha já ostentava um sorriso malévolo no canto da boca, como que o desafiando. A filistéia não imaginava que Sansão recuperara a sua força para mostrar aos seus algozes o caminho para um inusitado e drástico final. Ainda entre o primeiro andar e o térreo, Antenor se movimenta ninjamente ao painel do elevador, deslocando as carnes da gorda de sua frente, pressiona, com a força de um herói, o botão vermelho de emergência. O elevador pára: “– O que está fazendo, Seu Antenor? Ficou desmiolado?” A gorda nem terminara de falar e ele avança para ela, pulando em seu pescoço na certeza que teria de esganá-la a qualquer custo.

Sentia-se um Sansão pondo abaixo o templo filisteu, enquando as carnes do pescoço da velha confortavelmente afagavam suas mãos trêmulas e vigorosas. Os olhos da voyeur se esbugalhavam. Rubra, já não respirava. Agonizava nas mãos de Antenor, que se vingava da infeliz que lutava ainda pela vida em suas mãos. Ele apertava mais forte, sabia que não tinha muito tempo.

"Tum!". O emergência do elevador desarma. E começa a descer lentamente. Desarma também a Antenor, que num lampejo de lucidez percebe toda a loucura daqueles momentos: “Como poderia D. Yolanda saber?”, ele se questiona. Teria esganando aquela pobre senhora em vão? Percebendo sua insanidade temporária afrouxa o pescoço da senhora. Estaria variando? "Meu Deus, o que a D. Yolanda iria pensar?”, estava de novo aterrorizado. Larga de vez o pescoço da senhora e emenda um pedido de desculpas, gaguejando.

O elevador alcança o térreo, se abre. A velha ainda no chão cospe sangue. Ela fita seguramente Antenor - que gaguejando ainda tenta se explicar com desculpas esfarrapadas - e naquele canto do elevador grunhe num gemido quase ininteligível.

- Seu castrado !
 
 

O poeta brasileiro Gregorio de Mattos teceu odes ao pênis e outros órgãos. Por causa da ousadia de seus versos, para a época (por volta de 1680), foi extraditado para Angola.


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