Olhos de vidro
ou O espelho de Radamés


Tomás Creus


(N. do E.: O primeiro parágrafo é do escritor de contos fantásticos E.T.A. Hoffmann.)

 O espelhinho de bolso, que tão enganadoramente refletira o gracioso retrato, eu o destinei a um prosaico uso doméstico. Postava-me diante dele para dar nó à gravata. Aconteceu que, quando pela primeira vez eu quis dele me valer para resolver tão momentoso problema, ele pareceu-me embaçado, pelo que, recorrendo ao conhecido método, bafejei-o para dar polimento. Minha pulsação parou de todo, correu-me pelas entranhas um delicioso arrepio de pavor! Sim, é como devo chamar a sensação que me dominou quando, tão logo meu sopro se difundiu pelo espelho, distingui na névoa azulada o amável semblante a fitar-me com aquela expressão tristonha, que me penetrava até o coração! Sorrides? Já tendes juízo formado a meu respeito; considerais-me um sonhador incurável, mas pensai e dizei o que quiserdes, a bela me olhava de dentro do espelho; entretanto, assim que se desvaneceu a névoa do sopro também desapareceu o rosto dela do vidro cintilante.

 Como haveis de supor, fui tomado por um espanto que não poderia descrever aqui, e, em busca de alguma resposta para tão inexplicável fato, corri para o consultório de meu amigo Xenofontes. Contei-lhe o problema e ele, calmo como sempre, receitou-me um Lexotan.

– O que dizes? - perguntei-lhe, exasperado. - Crês então que tudo não passa de mera alucinação?
– Não exatamente - disse ele. E, pacientemente, como era seu costume, começou a explicar. – Na realidade, ao embaçarmos um espelho, as imagens que este reflete ficam difusas, amorfas. O que vemos, então, tem muito de subjetivo, de coisas que estão apenas na nossa cabeça. Damos à imagem nublada que vemos a forma que mais queremos ver. Assim como reconhecemos nas nuvens do céu imagens ora de um camelo, ora de um dromedário, assim também no espelho embaçado tu pensaste ver o rosto de tua amada.
– Mentes, maldita criatura! - gritei-lhe. E, para comprovar sua vilania, bafejei longamente sobre o espelho do seu consultório de modo a que ficasse completamente embaçado. - Vês? O teu espelho está totalmente bafejado, e no entanto não vejo aqui mais do que o meu próprio rosto, oculto atrás de uma névoa. Ou me dirás então que cada espelho tem as suas particularidades?
– Efetivamente, - continuou ele, com uma calma que chegava a irritar, - cada espelho é diferente de outro, já que não existe superfície totalmente lisa. Entretanto, acredito que a tua ilusão se deve mais ao tamanho diminuto do teu espelho, aliado ao momento em que tiveste a aluci... a impressão. Era de manhã, tinhas acabado de acordar, ainda não estavas num estado totalmente consciente...
– Como? Com que me julgas um cretino? Um mentecapto? Um anormal...?
– Calma, Radamés... Olha, toma o teu Lexotan e... Mas, que fazes, anta?!?

 O espanto do doutor se devia ao fato de que agora eu estilhaçava o seu espelho a chutes e pontapés, num ímpeto de quase-loucura. É que a sua explicação me enchera de raiva: ainda que sem tal intenção, ele me fizera parecer um completo idiota.

– Mas, queres parar, Radamés! Pára ou vou chamar a polícia! Deus do céu, e eu que julguei que já tinhas superado essas crises nervosas, e essa obsessão maníaca com a literatura romântica!
– Como? – perguntei, já parando de quebrar o espelho. A última observação do doutor me parecera algo maldosa, quem sabe até sarcástica. - Que dizes?
– O que ouviste. Que tens uma obsessão maníaca com a literatura romântica do século passado e que precisas te tratar.

 Olhei então diretamente para o seu rosto e vi os olhos flamejando. Não, aqueles não eram os olhos do meu amigo Xenofontes que eu tanto prezava: eram olhos de um demônio, os olhos de Satanás! Sem dúvida tratava-se de uma criatura maligna disposta a me torturar!

– Me tratar, eu? – gritei-lhe, impávido. – És tu quem delira! Jamais precisei de tratamento algum! Foste tu que me forçaste a tomar aqueles remédios malditos depois do acidente, quem sabe com que vil intuito! Agora percebo, desde o início pretendias drogar-me, transformar-me num zumbi para que eu não visse o que em verdade és! Um demônio, um terrível demônio!
– Cala a boca, Radamés. Como dizes bobagens! Sim, és um maníaco, sim. E digo mais: detesto esse jeito que tens de falar, como se fosses um maldito escritor romântico alemão de outro século! Pois te digo, o que leste são meras traduções, e traduções canhestras! Ninguém fala assim! Ninguém diz "vil intuito" ou conjuga os verbos na segunda pessoa do plural! Estamos quase no século vinte e um, porra!

 Como dois exércitos que declaram o cessar-fogo apenas para conseguir mais munição, ficamos alguns segundos em silêncio, simplesmente nos olhando, estudando os movimentos um do outro. Vi que ele avançava lentamente em direção à porta. Ah, não, ele não escaparia assim tão facilmente de minha ira...

– Gótico! – gritei-lhe eu de repente, tomado de fúria.
– O quê? – respondeu ele, sem entender.
– Hoffmann era gótico, não romântico! Não sabes nada!
– Dane-se se era gótico ou não! O fato é que era um bom escritor, e tu, apenas um medíocre imitador. E digo mais, nem as tuas alucinações tem nada de original, são cópias! Cópias como os contos babacas que escreves e que nunca publicaste, nem jamais publicarás! És um escritor de merda, Radamés! Jamais serás nada na vida!

 Aquela última infâmia foi demais para meus ouvidos. Ele poderia ter-me chamado de obsessivo, de maníaco, até mesmo de louco. Mas insultar assim os meus evidentes dotes para a escrita era ultrapassar a linha. Presa de uma fúria animalesca, senti que minhas mãos eram tomadas por um impulso incontrolável e se dirigiam ao pescoço de Xenofontes, apertando-o mais e mais. Não sei o que aconteceu nos minutos seguintes, não sei por quanto tempo minhas mãos permaneceram estrangulando aquele pescoço como se torcessem o corpo de um réptil venenoso. Sei que, de repente, me senti como quem acorda de um sonho ou de um transe, e vi, estendido no chão, o corpo lívido de meu amigo, seu rosto púrpura contorcido numa expressão atroz.

 Horrorizado, tentei constatar se ele ainda estava vivo, colocando o meu espelhinho sobre os seus lábios, para ver se a sua respiração se condensava embaçando o vidro. Nada: o espelho continuava límpido como antes, não refletindo mais do que o meu próprio rosto espantado. Então eu mesmo bafejei o espelho inúmeras vezes, numa repetição obsessiva, como que fazendo respiração boca-a-boca com a minha própria imagem - como se quisesse, enfim, trazer alguma coisa novamente à vida. Mas Xenofontes continuava morto, e nada o traria de volta, assim como nada traria de volta a minha amada, morta num acidente de carro há dois anos atrás, no qual eu também sofrera graves lesões cerebrais.

 Olhei por uma última vez para a imagem embaçada no espelhinho. Mas o rosto de meu amor já não estava lá.

tomtom4now@yahoo.com



Maníacos têm ganas por quebrar objetos, especialmente espelhos e toda a espécie de vidrinhos.



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