Obsessões
por Ariela Boaventura

O mar se vai
o mar do sono se esvai
Como se diz: o caso está enterrado
a canoa do amor se quebrou no quotidiano
Estamos quites
Inútil o apanhado
da mútua dor mútua quota de dano.
(Vladimir Maiakóvski, “Fragmentos”)
 
A primeira coisa que Ana vê ao acordar é a luz do sol que penetra em fios pela persiana de junco do quarto e pinga bem em cima de seus olhos.
 
Olho em volta, nada faz sentido, não reconheço aquele lugar, mas logo a memória me acode: Fernando, estou na casa dele. Meu corpo inteiro dói, a pele do rosto arde. Ele jaz nu ao meu lado, todo preguiça, todo imenso. Um belo exemplar da raça humana, penso.

Fernando Gonzales é um fotógrafo de 28 anos, signo de peixes e coração amarrotado pela ex. Engordou sensivelmente desde que o conheci, ainda na época da faculdade de Artes. É uma moça, no sentido sensível da expressão, o tipo de homem que gosta de arte, usa sandálias, sonha casar, ter muitos filhos e fazer uma mulher feliz.

Não há como me desvencilhar desta preguiça. Mesmo acordada, permaneço com os olhos fechados e o mesmo ritmo da respiração. Fernando dá sinal de vida, emitindo um som de quem se espreme; ele está expelindo de si o sono, por isso tem de fazer essa força, como quem faz um cocô difícil. Num instante ele se liberta, como para ele é fácil!, e pula da cama; pensa que estou dormindo. Consigo fingir que durmo de uma maneira excelente. Fico adivinhando o que Fernando está fazendo. Veste alguma coisa, sinto que sai do quarto e escuto o fechar da porta. Ele foi ao banheiro, ouço que escova os dentes. Abro os olhos, me desconcentrando, observo a organização impecável do quarto, as paredes repletas de fotos de mulheres nuas à anos 20. Mas logo volto a prestar atenção à movimentação de Fernando pela casa: o plin de uma louça denuncia que ele está na cozinha.

Silêncio. Fico sem saber o que fazer. Devo me vestir e dizer que, bem, Fernando, já vou indo, me liga. Ou: Olha, Fernando, já vou indo, sabe como é, domingão, fiquei de passar na casa de uma amiga. O “day after” é sempre assim, a gente se sente meio esquisita, ôca por dentro, eu sempre achei que o melhor é não dar chance da outra pessoa sentir o teu bafão de sono e ir embora, deixando antes um bilhetinho: “Adorei. Depois te ligo” ou “Vê se me liga. Telefone taltaltal. Beijo”. O engraçado é que daí o que acontece é simplesmente o vácuo: nunca mais a gente se fala.
 

Que demora, o que ele estará fazendo?
 
Cheiro de pão torrado. Não pode ser, não acredito que o Fernando esteja preparando um café da manhã, nem em Marte seria possível, homens assim só existem em propaganda de margarina. Meu estômago acordou com o cheiro de torrada. É tentador acreditar que... não, o ego adora nos pregar peças. Plin plin, a louça de novo, parecem xicrinhas. Sim, tenho certeza de que ouvi o barulho de mais de uma xícara. E agora... café! cheiro de café passado, ui, que delícia! Que vontade de sair correndo da cama e ir lá comer! Não, vou ficar aqui, ele deve achar que estou dormindo: defesa.

Poderia colocar uma música, ele tem tantos discos interessantes! Por que esse medo todo? É isso, quero prolongar a existência dessa bolha de encanto, sinto como se qualquer movimento fosse estourá-la e estragar tudo. Mas tudo o quê? Não há absolutamente nada a perder, não sou apaixonada por ele, e mesmo assim continuo aqui, petrificada. De qualquer maneira não seria educado mexer nas coisas dele, isso aqui é o quarto da criatura, sua intimidade, não tenho esse direito. Eu, por exemplo, não gosto que mexam em meus discos. Me sinto como uma criança que não toca nos objetos da casa de outras pessoas por que senão mamãe fica triste.

Ah, que cheiro maravilhoso de queijo derretido! Mas é claro, é tão evidente! Maldito! Ele foi tomar café sozinho. Como sou boba. Mas o que... Fernando!

Fernando entra no quarto segurando uma bandeja com café da manhã completo. Como ele abriu a porta é um mistério. Ana senta-se na cama, ainda nua; Fernando usa uma camiseta amarela, o que lhe torna ainda mais gordo.

– Vê se tá bom de açúcar, pede o artista.

Mesmo que fosse uma taça de fel talvez Ana dissesse “tá ótimo, tá ótimo!”, tão comovida está.

Se atiram a devorar o desjejum: torradas de pão integral recheadas com queijo roquefort, requeijão e algo tipo presunto cru; café. O quarto apresenta o cenário de uma guerra: roupas destroçadas pelo chão, como pessoas mortas, e papel higiênico por tudo, sangue no lençol – Ana menstruada.

Mastigam em silêncio. Depois do café, pequenos comentários. Fernando retira as roupas de cama para lavar. É bom não deixar muito tempo, as manchas de sangue podem não sair depois, diz, mas de uma maneira tão delicada que parece estar recitando um poema de Camões. Ele coloca na cama lençóis novos: amarelos. Ana aninha-se novamente no leito; a máquina de lavar na labuta.

E pensar que eu ia embora quando acordei, lembra, para si. Dormem; acordam no final da tarde. Fernando sai do quarto, volta da cozinha com uma lata de doce de leite, emborcada sobre um pratinho amarelo; duas colheres.

Ele trouxe duas colheres, Ana pensa. São dois corpos, dois seres separados. Se estivesse envolvido ele usaria apenas uma colher. É tudo momento, me iludo... E os pratinhos, meu Deus, são amarelos, a camiseta dele, o doce, até a iluminação desse quarto, os lençóis, tudo aqui é amarelo!

Ela belisca o doce, só um tequinho para adoçar a língua. Essas coisas engordam. Ana deita sua colher no canto do pratinho: abandono.

Ele sai, vai até a máquina, retira a roupa lavada, estende as peças. Volta.

Beijam. Beijo, beijo, beijo. Ninho.

– Que horas são?, pergunta Ana. Tem medo. De ser tarde, de estar sendo fisgada. Peixão.

– Sete e meia, responde Fernando.

Então, o pager toca. É um amigo de Fernando que brigou com a namorada. Quer sair, conversar.

Ana calada. Olha as prateleiras de Fernando, mostram tudo, as roupas penduradas em cabides, armários sem portas: sinceridade; sapatos e tênis meticulosamente alinhados. Um homem sincero e prendado, conclui. Fernando levou todos os papéis ensangüentados para o lixo e dobrou as roupas espalhadas.

– Tu tá com fome?, ele pergunta.

– Nadinha.

Não crê, não crê que Fernando quer comer mais.

– Vou sair com o Guga, ele diz.

Inevitavelmente, Ana pensa nas colheres.

As colherinhas não mentiam, pensa.

– Quê que a gente poderia comer?, Fernando insiste, já indo para a cozinha.

Ana nem responde, fica no quarto, tenta entender. Nada faz sentido. Vácuo. Jantam massa ao molho de queijo roquefort. Dois garfos, pratos amarelos. Obsessão. Só pode ser obsessão, conclui Ana.

Depois do jantar, os dois tomam banho, um de cada vez, se arrumam e saem; na rua, se despedem, ela vai para um lado, ele para outro. Coincidência, semiótica ou obsessão, dá tudo na mesma, porque Ana e Fernando nunca mais se falaram. Ela foi morar em São Paulo; ele se casou, engordou ainda mais e adotou um gatinho – por sinal, amarelo.
 

Ariela Boaventura

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