UM OLHAR MELANCÓLICO,

ou A ESTÉTICA DO FRIO,

ou NÃO ME VENHAS COM MILONGAS...

entrevista de Vitor Ramil a Paulo César Teixeira
(editada especialmente para o Não)


Vitor Ramil subiu os três lances de escada esbaforido. Tinha passado a noite em claro e só cochilara uma hora e pouco, pela manhã, durante o vôo de Belo Horizonte (onde lançara o CD Tambong) para o Rio. O cansaço, às vezes, solta o verbo. A conversa rolou por quase quatro horas, numa tarde abafada de março de 2001, no apartamento da rua Barão de Jaguaripe, em Ipanema, regada a chimarrão e suor. O cenário não podia ser mais apropriado - o calor do Rio, a saudade do frio, o exílio dentro do próprio país. Para mim, soou como despedida. Eu estava de partida, decidido a voltar para Porto Alegre, depois de viver quase dez anos em Rio e São Paulo. A entrevista serviu de base para um artigo publicado no site no.com, em 22 de março, mas o diálogo ficou inédito. Só poderia sair no Não, preservando o tom espontâneo e prolixo, incompatível com os padrões do jornalismo industrial pós-USA Today. No final do texto, há duas notas explicativas - uma pesquisa do próprio V. a cerca das origens da milonga e uma referência a Albert Schweitzer, prêmio Nobel da Paz, parente célebre dos Ramil, em pesquisa de Álvaro Luiz Teixeira. Boa leitura.

- Que bicho é esse? O que é estética do frio?

Em primeiro lugar, não é um movimento. Não tem por trás a pretensão de estabelecer uma teoria que vá solucionar a questão de identidade ou estética de uma região do Brasil. Na verdade, é uma reflexão individual a cerca do meu próprio trabalho. Eu tenho o hábito desde pequeno de refletir em relação ao que faço. Me acostumei a conceituar o tempo todo. Isso tem sido a minha maneira de produzir. Sou muito intuitivo para compor, mas estou sempre refletindo sobre o que faço.

- Tu morou no Rio um tempo, não é?

Morei em Copacabana uns cinco ou seis anos, por aí. De 1985 a 91. Morava em Copa e, um dia, eu estava em casa, era um dia como hoje, só que era junho e estava calor, e eu estava só de calção, na sala de casa - uma casa bem parecida com essa, uma sala bem maior só, mas um chão parecido -, eu estava de calção, um puta calor, tomando meu mate sozinho e aí estava passando o Jornal Nacional na tevê. E o cara dando uma notícia mostrando um carnaval fora de época, eu acho que era na Bahia, não lembro mais. Então, apareceu um caminhão com trio elétrico e todo o mundo pulando atrás. E eu tomando o mate, ali de calção, pensei: jamais eu estaria atrás desse trio elétrico. Logo em seguida, veio uma matéria sobre a chegada do frio no sul. Aí apareceram aquelas imagens que aparecem todo o ano, os caras escrevendo nos vidros dos carros, ou andando de bicicleta de pala, os campos com geadas, todas as imagens tradicionais da chegada do inverno. Eles usaram uma expressão, falaram em "frio europeu", ou "clima europeu", e eu tive duas sensações. Primeiro, claro, de vontade de estar lá. Não gosto de calor. Tive saudade de meu lugar, aquela paisagem me deixou saudoso. Ao mesmo tempo, tive uma sensação de exílio.
 

- Exílio dentro do teu próprio país?

Havia um estranhamento para o jornalista naquilo, ele tratava aquele monte de gente seminua atrás do trio elétrico como uma coisa muito mais natural de acontecer do que aqueles caras andando de bicicleta de pala ou aquelas pessoas escrevendo nos vidros dos carros. Aquilo era uma imagem muito mais remota para ele. Logo me dei conta daquelesentimento de sermos ou não brasileiros, que o gaúcho tem. A gente se cria desde pequeno cultuando a revolução farroupilha, a nossa bandeira é a bandeira farroupilha. No fundo, todos nós temos a sensação de sermos diferentes do resto do Brasil, de que a gente poderia ser um país. Seria melhor se estivéssemos separados? Esse questionamento está sempre por trás e volta e meia ele ressurge.

- É como se o gaúcho tivesse a necessidade de marcar essa diferença.

Isso vira uma afirmação e, ao mesmo tempo, sugere um sentimento até de inferioridade, porque, na verdade, a gente não conseguiu ser um país. Não conseguimos nos separar e não nos integramos tanto assim ao Brasil, não compartilhamos. Me sinto super duro nas regiões mais tropicais. Estive em há pouco em São Luís do Maranhão, antes do Tambong - e foi muito importante, eu comecei a pensar depois sobre essas coisas - e lá tem muito reggae, dançam muito na praia, tem uns tablados, botam o som a mil e fica todo o mundo dançando. Mas é um reggae dançado de um jeito diferente, é super sensual, as mulheres se agarram em ti e tu dança agarrado nas mulheres. Cara, eu me senti um inglês ali. Mais uma vez, me senti muito estranho. Eu disse: não sou desse lugar. E, no entanto, é o meu país. Era uma coisa de rua, de festa, todo o mundo feliz e tal, e eu não me considero um cara formal, mas me senti o cara mais duro do lugar, entendeu?

- Um sentimento de pudor?

Sim, tudo isso, a nossa formação mais rígida, essa dureza de corpo, de tudo, enfim, e quando eu estava nesse dia vendo esse carnaval me veio toda essa sensação, aqueles flashes que tu tem rapidamente, de estar no Rio e olhar para fora, as plantas que tu não vê lá, e tu está dentro de um outro ambiente, um ambiente tropical. Aí eu pensei rapidamente que estava no Rio, artista, tentando me colocar dentro da música brasileira, produzir no Rio, que é um centro produtor de música brasileira, historicamente é, sempre foi, vai ser, tem essa tradição muito forte enraizada aqui. E eu, como muitos outros gaúchos, estava aqui, a princípio, levando a minha carreira. Mas aí me dei conta que estava bastante perdido.

- Perdido na selva...

Vi aquele trio elétrico, aquelas pessoas pulando, e pensei que havia uma estética que unificava as regiões quentes do Brasil, esse Brasil tropical, esse Brasil litorâneo, essa imagem de Brasil que é o estereótipo do Brasil. É sempre uma música que é um convite à rua, à festa, à alegria, é sempre uma coisa coletiva, enfim, e eu pensei imediatamente que nós, gaúchos, não compartilhamos muito isso. A nossa música não é assim e a música do Brasil tropical, embora ela fale de nós, não diz tudo. Não nos define completamente. Se tu pensa no samba, na história do samba, ele quase define o tipo do carioca, por exemplo. Se pensa em quem faz o samba, de onde vem o samba, isso é quase um estereótipo do carioca. É bastante definidor do carioca.

- E nós lá no sul, o que nos define, qual é a nossa música?

Parei e pensei: a nossa expressão regional é polêmica. Até que ponto ela nos representa? Para muitos jovens, é um símbolo de caretice, de velhice, de conservadorismo. Porque a nossa tradição tem estado na mão de tradicionalistas, como o próprio nome diz, os caras que definiram algumas bases do que é gaúcho e do que não é - o gaúcho não usa esse tipo de calçado, não toca esse instrumento, não usa essa calça. Uma coisa muito normatizada e difícil de se misturar.

- Ainda é assim?

Hoje em dia já mudou bastante, mas, na época, eu percebi que o músico urbano gaúcho não transitava pelo seu próprio imaginário regional com a mesma facilidade do nordestino, por exemplo. Há muito tempo o nordestino transita por seu imaginário trazendo toda a bagagem de música do mundo todo. Vem para o Rio de Janeiro e traz a transação nordestina ou nortista, e isso já se soma à experiência do centro do país, e vira um caldeirão. Para nós, a tendência é ser mais estanque.

Se parar para examinar a produção musical dos anos 70 e 80 do sul, e de um pouco antes, tu vai ver como é assim. Talvez quem tenha conseguido essa química mais naturalmente tenha sido o grupo Almôndegas, só no primeiro disco, depois ele ficou mais segmentado. Kleiton e Kledir fizeram mais tarde incursões pelo regionalismo, mas tu via bem claro que tinha um viés mais pop, um viés mais roqueiro, e aí tinha um momento regionalista, que sempre recebia um tratamento separado, diferente. Entrava a gaita, entrava não sei o quê, quando ia para o outro lado, aí eram guitarras, entendeu?

Aí pensei no meu próprio trabalho. Eu me permito fazer uma balada como Loucos de cara, tocar Joke, isso é bastante natural. Mas não era natural para mim, na época, tocar uma música como Não é céu, uma bossa, aquilo para mim era uma coisa muito brasileira, como se eu não tivesse o direito de fazer aquele tipo de coisa, ou como se eu não pudesse fazer aquilo ali. Não, isso eu não faço, entendeu? Mas por quê eu posso fazer uma balada que está mais próxima da canção norte-americana do que da canção brasileira? Quer dizer que eu estou mais próximo da realidade dos Estados Unidos que da realidade do Rio de Janeiro?

- Mais próximo de Bob Dylan que de João Gilberto?

Por quê? Pensei também que eu tinha o meu viés regional, mas não misturava as duas coisas. E quando eu misturava, como no disco A paixão de V, eram coisas separadas, uma milonga bem milonga de voz e violão, Borges... A história daquele disco é exatamente isso: eu separei de propósito as várias vertentes. Pensei, então, que nunca ia ficar claro para quem me ouvisse, me visse, quem fosse fruir a minha produção, se não houvesse uma unidade. Eu sou ISSO. Eu não sou tudo isso aqui e escolha o que você quer de mim. Não, eu sou ISSO aqui, óh! Pá! Depois a pessoa pode perceber uma série de nuanças. Então, comecei a perguntar: será que eu não posso ter essa unidade?

Foi quando me veio essa expressão: nós precisamos de uma estética do frio. Eu me dei conta de que o frio era um elemento bastante simbólico nosso, diferenciador. Percebi a diferença de estar ali de calção, suando, e tomando mate. Eu estava preservando um hábito do frio. Eu acho que o frio nos predispõe, o frio, a nossa paisagem, o nosso lugar. Não quero dizer que haja um determinismo geográfico da nossa formação psicológica, embora eu ache que haja... Hoje em dia, teorias muito fortes estão provando isso, a própria teoria dos genes, estão descobrindo que o meio ambiente influi muito mais na formação do homem do que se imaginava. Na época não arriscava dizer esse tipo de coisa, mas hoje já acho que sim. A presença do frio até transcende a questão do frio como metáfora, ou como símbolo, e talvez o frio como frio. Até o frio valor estético e o frio frio se juntam numa coisa só.

- É um perfil de comportamento.

Exatamente, um perfil de comportamento, que gera uma cultura, uma produção musical e tudo. Aí eu pensei: nós temos que ter uma estética do frio. Falando nós, mas pensando em mim na realidade. Não estou pensando no trabalho dos outros e não vou sair por aí ditando regras. Olha, gente, para fazer música no Rio Grande do Sul tem que ser assim. Essa é que é a postura. Ninguém faz um movimento sozinho. Por isso eu nunca digo que é um movimento. Não, não é. São reflexões minhas que eu nem deveria estar exteriorizando. Mas é que eu não consigo. O fato de estar conversando contigo agora é bom. Tem coisas que eu estou inventando neste momento. Eu tenho apostado muito nisso. Exatamente até na reflexão pública dessas coisas, porque as idéias vão vindo, tu vai falando, vai formulando...

- É como a frase do Caetano Veloso: "As perguntas que eu me faço, eu as faço publicamente."

(Rindo) É muito bom isso aí. É muito bom falar. Quando converso com as pessoas eu aproveito muito, todo o tempo. Depois de todas as minhas elocubrações, um amigo lá do sul me falou: tem uma frase do Alejo Carpentier que é mortal para essa tua estética do frio. É: "O frio geometriza as coisas." Eu nunca tinha lido essa frase, ele que me disse. Um dia ele me pegou e disse: tu precisa conhecer essa frase. As pessoas acabam contribuindo com essas reflexões, aí a coisa começa a escapar um pouco do teu controle. Isso é que é o bacana. Alguém pode até elaborar mais a partir disso. Assim que as coisas funcionam.

Essa frase do Alejo Carpentier é interessante. Quando eu me disse, temos que ter uma estética do frio, me perguntei assim: como seria essa estética do frio? Pensei que havia uma distância entre nós, Rio Grande do Sul, e o Brasil, e que essa distância precisava ser rompida. Esse sentimento de exílio eu não podia sentir. Tinha que chegar no Brasil numa boa, normal, sou brasileiro, não tinha que ter dúvida da minha brasilidade. E, no entanto,quando eu pensei: se eu fosse definir essa estética do frio em termos formais, que palavras definiriam essa estética do frio?

A minha imaginação é muito visual. Tudo comigo é visual, tudo eu associo com imagens. Por isso, a pintura sempre foi muito importante para mim, mais até do que a música, talvez até mesmo mais do que a literatura. Os pintores e as reflexões dos pintores sempre foram muito importantes para a minha produção de texto e música. E quando eu pensei em como seria essa estética, eu pensei em termos de imagem: pensei num pampa muito liso, muito aberto, muito claro, pensei em paisagem, entendeu? Pensei naquele pampa que tu já sabe que tem uma figueira aqui, o pampa ideal, vamos idealizar o pampa. Um lugar plano, liso, com alguns elementos, aí eu disse: bom, o que é isso? Isso aí é rigor, concisão, clareza, melancolia, profundidade...

Alguns valores começaram a surgir na minha cabeça. Eu me imaginei inserido naquela cena. O que faria um gaúcho naquela cena? Qual é a música que uma pessoa faria naquelas condições? Não estaria todo o mundo sambando atrás de um trio elétrico num campo. Tu não vai encontrar isso aí dentro dessa imagem ideal. O que me veio foi a imagem de um gaúcho sozinho, o lugar me sugeriu solidão, intimidade, reflexão, e um cara tocando o seu violão. É a imagem de um milongueiro.

Aí me ocorreu que a milonga é uma música também plana, linear, reflexiva, rigorosa, que se repete, aí eu disse: espera aí, não é à toa que é uma música tão popular no sul. Se tu vai analisar os festivais, o gênero mais inscrito, 80% das músicas são milongas. É sinal de que é um gênero fácil de as pessoas lidarem com ele. É natural o cara pegar o violão e compor uma milonga, mais do que outro gênero. Aí pensei que eu compunha milongas já há muitos anos, mas não me permitia gravá-las porque eu via a milonga como algo puro, eu estava sempre atrás da pureza da milonga, não queria misturar com meu lado pop e baladeiro.

Naquele disco Tango, ao lado de Joke e Loucos de cara, não queria colocar a música Ramilonga, que já estava composta. Seria um repertório muito forte para o disco - Ramilonga, Joquim, Loucos de cara, Sapatos de Copabacana, um petardo. Mas qual o sentido de ter uma milonga falando em Porto Alegre no meio daquele outro tipo de contexto de letra e imagem? Me parecia que era uma coisa específica. Parei para pensar naquela música. Parei para pensar que, quando eu vim me embora de Porto Alegre para o Rio, a minha despedida foi aquilo.

Eu, morador da cidade, cara com vivência nenhuma de campo, nunca montei num cavalo... Quer dizer, estou exagerando, montei uma vez quando guri e devo ter caído. Não sei montar, não sei nada de campo, mas me emociono quando viajo de carro e vou ao campo. Entro numas, literalmente viajo. Me emociono no imaginário. Quando eu coloquei música em Deixando o pago, eu chorei copiosamente, chorei como uma pessoa louca, sozinho dentro de casa, sabe? E quando eu compus Ramilonga, eu chorei, e quando eu compus Milonga de sete cidades, eu chorei... Eu toco para a minha mulher e choro. E quando eu compus Indo ao pampa e toquei para a minha mulher, nós choramos juntos, entendeu? Eu comecei a perceber que a milonga era uma coisa extremamente profunda para mim, que era uma matriz minha.

Então, quando eu pensei em estética do frio, vieram essas palavras. Depois, acabei compondo Milonga de sete cidades, onde eu mais ou menos falo a respeito disso: "Fiz a milonga de sete cidades, rigor, profundidade, clareza, concisão, pureza, leveza e melancolia..." Eu posso ter outras definições, mas não cabe tudo numa canção. Elegi Milonga de sete cidades até porque eu tenho uma fixação no número sete, tenho uma história supersticiosa com o número, tudo é sete para mim. Até porque a canção favorecia ter sete palavras, enfim...

- A canção Ramilonga é de que ano?

É bem antiga, cara, é de quando eu vim para o Rio, é de 85, 84, por aí. Tu vê que é da época da Paixão de V. Bem antiga. Só que ela foi gerando outras milongas, eu comecei a compor em torno dela. Me deu um mote para uma história maior. Na verdade, eu queria fazer, um dia, uma inserção no regional, mas eu queria estar preparado para isso. Queria ser capaz de fazer uma abordagem nova. Tinha que dar um passo adiante. Acabei fazendo só no disco Ramilonga, quando eu assumi essas coisas todas.

No encarte do disco, eu cito João Gilberto cantando Prenda minha num quarto ventilado do hotel Majestic, lancei um monte de imagens para sugerir o que está rolando ali. Até no canto suave do Lupicínio Rodrigues eu pensei. Você sabe o que é ter um amor, meu senhor... Eu ouvia muito os caras dizerem no Rio Grande do Sul que o Lupicínio não seria um compositor gaúcho, era brasileiro, não fazia música gaúcha. Isso é um absurdo. Por quê não? Enfim, o Ramilonga tinha esse eixo central, vou trabalhar em cima da milonga, mas a minha visão da milonga. Tive a sorte de meu nome terminar com o começo da palavra milonga: ramilonga... Veio naturalmente, intuitivamente, como tudo o que eu faço, eu não fico pensando sobre as coisas. Veio cantando. Primeiro, eu pensei ah, milonga...

- Como se fosse a interjeição ah.

Mas me saiu ramilonga, eu disse: opa, ramil, milonga, fechou, eu transformado em milonga voando sobre Porto Alegre, aí entendi do que a música estava falando. Escrever letra é isso. Sou totalmente a favor da idéia de que a poesia antecede o pensamento. Tu começa a refletir sobre a letra no meio do processo. Ela já está fazendo sentido há muito tempo, muito antes de tu pensar racionalmente sobre ela. O disco traz tudo isso. Eu falo Satolep fields forever, no encarte, uma brincadeira que é uma referência a Beatles, toda a coisa orientalista que tem na milonga. Eu, garoto, gostava muito do orientalismo beatle.

- Qual é a relação da milonga com o Oriente? Não falo de uma postura zen, mas em termos musicais propriamente...

Bom, guitarra, a palavra, vem de cítara, ou ambas têm a mesma origem grega, eu acho, eu li em Jorge Luis Borges. Tem essa matriz. Existe um orientalismo na milonga. Como também no repente nordestino. E na raiz repentista do payador está o poeta árabe. O nordeste tem essa coisa espanholada, tem essa coisa moura, claro. A origem do payador e do repentista nordestino, nos dois extremos do Brasil, está na poesia árabe.

Enfim, no Ramilonga eu cantei suave, fiz uma coisa brasileira, usei tablas indianas, instrumentos mais delicados, um par de tambores, usei o harmonium (combinação de teclado e fole que soa como um acordeão) e a cítara. Para tirar do contexto, do tratamento convencional, para mostrar que aquilo, acima de tudo, era uma sensibilidade, uma forma de expressão que tu podia vestir de qualquer maneira, com qualquer roupagem, e para reforçar esse orientalismo, tirar essa coisa truculenta e passar para a coisa espiritual. Tirar aquela presença física, corporal do gaúcho, e associar ao mantra indiano, que é uma forma musical repetitiva, que serve à meditação. Eu acho que a milonga é muito mântrica. Percebo nos shows só de milonga que, chega num certo momento, parece uma missa. Mas uma missa numa boa...

- Um ritual...

As pessoas dizem que viajam, choram, se emocionam, eu também.

- Todo o ritmo primitivo é repetitivo, como no caso dos índios, parece que é para a pessoa sair do corpo mesmo.

Exatamente. E eu procuro reforçar isso no Ramilonga. Evito muito a variedade. Não, o meu violão eu toco sempre igual. É meio seqüenciado, como eu digo. Eu me repito, é cíclico. O meu violão é como se fosse um desenho. Tem um sentido que é sempre o mesmo, eu sempre toco igual as minhas músicas. Claro, tem nuanças de expressão, não sou uma máquina. Mas existe um rigor. E aí as palavras começam a aparecer. Rigor, clareza, concisão, pureza, leveza, melancolia, profundidade, isso tudo está presente nas várias instâncias dessa música...

- E qual foi a reação dos tradicionalistas à Ramilonga?O pessoal não falou assim: ah, isso é coisa de guri da cidade?

Claro, ninguém me diz diretamente nada, mas depois eu pego por outros os comentários. Sabe como é artista, cada um tem sua vaidade e cada um defende o seu território. No momento em que eu digo que não quero fazer o canto gritado, estou ofendendo muita gente que canta gritado. Se eu digo que o meu violão é definido, é claro, é limpo, eu toco com precisão, estou atacando o cara que toca aquele violão sujo. E se eu digo que eu não usei acordeão e gaita, o cara que toca esses instrumentos pode se sentir ofendido. As pessoas se protegem muito na coisa da criação, cada um defende o seu cadinho. Mas eu recebi coisas como: ah, é uma bicha cantando regionalismo. E aí tem gente que me arremeda: Alcei a perna no pingo... (afinando a voz) Ah, esse cara imita o Caetano. Isso tudo se dilui quando a obra se impõe.

- Mas, olha, tu tem um timbre de voz parecido com o do Caetano.

Tenho, sim. Quando cantei suave no Ramilonga, eu tive que, de certa forma, aceitar isso. Comecei a cantar no estúdio e eu mesmo me dei conta: as pessoas vão dizer que parece o Caetano cantando. Quando eu me propus a cantar mais joãogilbertianamente, quando eu assumi isso, aceitei esse legado, pensei, claro, o meu timbre vai bater com o do Caetano, mas é uma história que eu vou ter que enfrentar. Ainda existem grandes doses de estereótipo dentro do que eu faço. Tanto dentro da minha milonga quanto dentro da minha bossa. Existe a presença de tudo o que me antecedeu.

- Te incomoda?

Quanto mais tu trabalha, mais isso vai se diluindo. Eu acredito que essa sombra de Caetano Veloso vai desaparecer, as pessoas não vão nem associar mais. Isso fica claro nas novas canções que compus, depois de Tambong. Mas, voltando à reação dos tradicionalistas, pode alguém ter dito que eu era um cara que estava me aventurando, mas, por outro lado, eu musiquei João da Cunha Vargas. Ninguém levava esse cara a sério, ele se tornou conhecido por causa do Ramilonga, esse crédito tem que ser dado, um poeta maravilhoso que passou a ser respeitado. Era do Alegrete, já faleceu. O próprio filho dele me falou: "O pai não era muito considerado pelos grandes da poesia." Era um homem do campo que sequer escrevia seus versos, tinha na memória, era um tipo payador, isso é muito louco.

- Uma coisa de tradição oral...

Musiquei quase toda a obra dele, faltam dois ou três poemas, só não musiquei esses para não ficar sem nada. Quero lançar mais algumas canções dele, que são divinas, cara. Bom, deixa eu voltar ao Ramilonga, como eu estava te falando. Tu lida com uma diversidade de coisas, tu tem uma confluência de linguagem, informações platinas, tropicais, tudo isso, mas qual é o filtro para isso? Como colocar unidade? A milonga foi o meu filtro, a minha leitura fria do mundo. Eu elegi ela. Não para virar um milongueiro, mas para que a milonga fosse como uma matriz. Em tudo que eu compusesse a partir daí ficaria muito claro que eu levaria em consideração o que a milonga representava para mim. Percebi que era algo que eu fazia bem, que eu mexia tanto com a minha sensibilidade quanto com a sensibilidade das pessoas, que eu emocionava. Era uma transa central nos meus devaneios poéticos e musicais.

- De onde vem a milonga?

Ela tem uma origem polêmica. Tem uma tese que diz que ela vem de uma melodia medieval portuguesa chamada melos-longa, ou melodia longa, que veio para o Rio Grande do Sul e daí foi para a Argentina e o Uruguai. É uma tese para nós muito favorável. Mas, na verdade, parece que esta é a mais fantasiosa. Outra teoria diz que nasceu em Montevidéu, num ambiente urbano, e que o milongueiro é um descendente do payador, aquele poeta improvisador, que desafiava com versos, e o milongueiro seria uma degeneração do payador, uma coisa até pejorativa no início. Enfim, parece que a teoria atualmente mais aceita é que a milonga seria, a exemplo do tango, uma filha da habanera, e que a palavra teria origem africana, viria do quimbundo, um dialeto falado por escravos que vieram para o Brasil e o Uruguai. Significa o plural de mulonga, ou palavra. Então, milonga significa palavras. Um dia eu ainda vou entrar nesse estudo. Quero ir a Portugal fazer uma pesquisa de campo. Um dia eu vou de cabeça nessa história. Depois eu posso te mandar algum material teórico, para dar uma idéia bem exata.

*** Pausa: V. especula durante alguns minutos sobre a origem da milonga, ressalvando que não tem certeza do que está falando; alguns dias depois, de Pelotas, manda um e-mail relatando o resultado de uma rápida pesquisa a respeito do assunto (nota *1)

De volta ao apartamento em Ipanema...

- Milonga, então, pode ter origem negra, como o samba? Não brinca...

É muito interessante. Se eu parar para pensar num outro lado da estética do frio, do apartamento do gaúcho em relação ao Brasil, constato a pouca evidência da cultura negra, sempre muito escamoteada em nossa cultura oficial.

- Existe uma idéia, no centro do país, de que não há negros no Rio Grande do Sul.

Exatamente. E na nossa música faz falta a presença do negro. Quando eu fiz Ramilonga, procurei buscar uma raiz negra, procurei enfatizar a percussão. Ainda mais eu sendo pelotense, uma cidade com um passado negro importante. Falta dizer que a milonga pampeira é mais lenta, arrastada, e tem a milonga mais urbana, bailável, feita para dançar. Eu acho, comecei a descobrir ou inventei isso, a milonga nossa deve muito aos portugueses, é mais melancólica, talvez mais feminina.

- É menos trágica em relação à milonga argentina?

Menos épica e menos trágica que a milonga argentina e uruguaia. Eu acho que isso se deve ao português. Digo isso porque, nesses tempos, eu compus um fado e me dei conta. Comecei a ouvir música portuguesa e percebi que havia proximidade com a milonga que a gente faz no Rio Grande do Sul, que tem uma delicadeza, uma tristeza, um olhar melancólico, um pouquinho distinto da coisa mais do interior da Argentina, que é uma coisa de força, diferente.

- É curioso como os cariocas, e talvez os brasileiros de São Paulo para cima, têm dificuldades de compreender as sutilezas do que é ser gaúcho, viver lá embaixo, em tais circunstâncias... É como se fosse uma informação estranha e excêntrica, da qual eles só assimilam os traços mais grosseiros. Somos incompreendidos! Não será também porque a gente mesmo assume um estereótipo?

Uma das dificuldades de nós assumirmos a nossa brasilidade e de o Brasil tropical nos compreender é exatamente isso: quando a gente vai se manifestar como gaúcho, sempre tem uma tendência de assumir o estereótipo. Cansei de ver, quando morava em Copacabana, músicos do sul que vinham se apresentar aqui, eu cruzava com os caras de bombacha e de chapéu, num sol de 40 graus, passeando no calçadão da praia. E tomando mate. Com o maior orgulho. E é um mico, entendeu? Não que seja um mico a imagem do gaúcho, mas com 40 graus tu não vai botar uma bota de couro.

Tem uma casa que vende erva-mate em Copacabana, a Casa do Gaúcho, num shopping-center, na Siqueira Campos com Nossa Senhora de Copacabana. Eu morava ali perto. Um dia cheguei lá para comprar erva. Tinha um cara que me perguntou: "Tu é gaúcho?" Sou. "Bah, da onde?" Já veio aquele galo pavão. Eu disse: eu sou de Pelotas. Ele ficou esperando que eu perguntasse: e tu, da onde tu é? Ele queria aquela confraternização, me senti quase compelido a perguntar para ele de onde ele era. O cara me disse: "Sou da capital do planalto." Falou assim forçando bem o "l", e eu não sabia qual era a capital do planalto, não me vinha. Aí ele percebeu que eu não sabia. Ele disse assim: "A capital do mundo, tchê!" Quase fiz uma brincadeira: vem cá, tu é de Nova York? Fiquei desconsertado. Ainda falei para o cara: bem coisa de passo-fundense. Cometi uma gafe, o cara se indignou e foi embora.

É o que eu estava te falando. O estereótipo mata a expressão genuína das coisas. Estereotipar pode expressar uma parte, mas nunca a completude de algo. Acho que essa necessidade de estereotipar para viver o personagem do gaúcho afasta as novas gerações até do que existe de real nessa nossa história, do gauchismo, do que é verdadeiro nisso. Tudo que é estereotipado vira aquela coisa daquele tio chato que fala grosso, que te aperta e te abraça, te dá beijo com a barba espinhenta. O jovem é traumatizado.

Pensei: eu tenho que quebrar isso aí. Se eu faço milonga com naturalidade, é porque existe uma força nisso. O Egberto Gismonti é que me disse, quando eu tinha 18 anos, e acho que ele tinha razão: "As coisas que a gente faz bem são aquelas coisas que a gente tem facilidade para fazer." Tu tem facilidade para escrever de um certo jeito, outro para pintar assim, é o que tu faz bem, e não tem que negar o que faz bem. E eu percebi que eu negava o que fazia bem, porque o que eu fazia bem tinha toda aquela carga negativa, rançosa do regionalismo do sul. Eu disse, bom, eu vou encarar a minha produção de milongas, por algum motivo eu me identifico com ela e me expresso por ela.

- Como fundir a milonga com o que se considera música brasileira?

Era o que eu me perguntava: como o Rio pode contribuir na minha formação, para a minha coisa musical de gaúcho, como é que eu posso fundir as coisas na essência? O Rio de Janeiro me deu o quê? Eu sempre digo que o Rio me fez muito bem, o Rio me afrouxou as juntas, me trouxe leveza. As relações com as pessoas, até a atitude de parar o carro numa calçada, ter um diálogo com um guarda, mesmo tendo que subornar esse guarda. No sul, já me aconteceu de parar o carro num lugar e o guarda já vir botando a mão na arma. Existe uma dureza. Aqui, não. E até vira o transtorno do Rio, o incômodo. Para nós, gaúchos, essa coisa largada do Rio nos ensina muito. A gente tem que ganhar uma flexibilidade. Essa porção negra que está sumida no nosso sangue de alemão, italiano, espanhol, sabe? O nosso português tem que olhar mais para as mulatas. Tem que se deliciar mais com as mulatas. No Rio tem o folclore de que português gosta de mulata, não é?

- Temos que descobrir nossa porção tropical...

Porque nós também temos clima quente. Quando eu falo em estética do frio, não é que a gente viva a neve o ano todo. Pelo contrário, a gente tem as estações muito definidas, não é como aqui, que é sempre a mesma coisa. Eu sentia falta disso, desse contraste. Quando termina o inverno, tu já está sedento pelo fim do inverno. Tu já quer a mudança. Mas quando tu está no calor, fica ansioso para que comece aquele friozinho, quando tu começa a usar um blusão, isso é bom. O frio é estimulante para tu escrever, mas quando ele começa a te doer, já vem um calorzinho, isso é muito bom. Eu considero um privilégio climático ter sido criado num meio ambiente assim.

Agora, não é um privilégio, é muito ruim tu viver num lugar que não tem estrutura para suportar o frio. Eu gostaria de não precisar usar três blusões e não precisar estar com três calças de abrigo e três pares de meia, tremendo de frio dentro de casa no inverno. Eu que moro numa casa super antiga, que escorre água pelas paredes. Pelotas é um lugar muito úmido. Eu queria chegar em casa no inverno, olhar lá fora aquele frio de rachar e estar numa boa. Nós somos um lugar frio que não se assume como lugar frio. Foi para lá uma gente que levou toda uma cultura tropical, mas se instalou numa região fria do país. No Uruguai, qualquer hotelzinho de estrada tem calefação.

Tu não passa frio em Buenos Aires. Tu bota um blusão e um casaco e anda de um lugar para outro sem problema. Quando chega num lugar, já está sentindo calor dentro de casa. Tem calefação. Tu tira o casaco e pronto. Existe lá uma cultura do frio sem sofrimento. Em Buenos Aires tu desfruta o inverno com prazer. Nós sofremos no inverno no Rio Grande do Sul. No futuro, se o Estado deslanchar economicamente, as pessoas vão ter que começar a exigir calefação em todas as casas, como se exige esgoto nas vilas. Um dia vai acontecer isso em Porto Alegre. Mas é parte da nossa divisão, de não se assumir. Então, a gente morre de calor no verão e morre de frio no inverno.

Tu vê que é uma história com muitos caminhos, são muitas pontas para juntar. Bom, aí comecei a mexer com regionalismo, mas achei que eu tinha direito à tradição brasileira, eu tinha que me permitir cantar uma canção como Não é céu, que é uma bossa. Tinha que ser capaz de achar algo que juntasse isso tudo. Por quê ficar tudo separado, segmentado, como tem no Rio Grande do Sul, onde tu tem uma cena rock muito boa, uma cena pop muito boa, tem os caras que fazem MPB, tem os caras que fazem música regional... Por quê não pode haver algo onde tudo isso esteja um pouco presente? Então, comecei a produzir sempre pensando nisso. Se tu ouve no Ramilonga a canção Indo ao pampa, eu acho uma milonga forte, acho aquilo ali super Rio Grande do Sul urbano... Tem Beatles naquilo, tem muito Porto Alegre ali. E tem passado farroupilha, tem um negócio brasileiro com aqueles tambores, tem história e tem futuro também, ela é propositadamente uma música bem emblemática.

Já o Tambong eu parti para viver o outro lado da experiência. Eu, felizmente, tive a possibilidade de gravar esse disco em Buenos Aires, ou seja, eu, brasileiro, fui trabalhar lá com um músico argentino, muito conhecedor das coisas do Brasil, da harmonia, da música brasileira, um cara muito versátil, fui trabalhar com grandes músicos argentinos com uma formação parecida com a minha, no folclore, da coisa regional, também na formação de música pop, jazz, música brasileira. Então, eu vivi dentro do Tambong a experiência da fusão de pessoas, lidei com argentinos e tive a felicidade de lidar com caras como Egberto Gismonti, Lenine, Chico César, João Barone, que são caras que representam muito da sonoridade da música brasileira, trazem coisas do nordeste, o Chico traz uma coisa de negritude, muito forte. Deixei a coisa fluir. Mas trabalhei a partir das canções que compus depois da minha série de reflexões a cerca da milonga. São canções compostas num período em que eu já tinha definido a milonga como matriz musical. Todas devem muito à milonga como estrutura, forma e sentimento.

- Tem milonga no Tambong?

Tem. Mas é muito subversiva, que é O velho Leon e Natalia em Coyoacan, tem uma harmonia toda aberta, totalmente fora da milonga, mas ela tem o andamento, uma cadência de milonga, invertendo o bordoneio. Ela é feita em cima de um poema do Leminski. E foi muito interessante, eu fui falar sobre a estética do frio em Curitiba, encontrei uma platéia muito interessada no assunto, porque eles sentem frio como nós, e o tema desceu como um bloco de gelo neles, porque eles têm uma crise de identidade muito forte, especialmente em Curitiba, por causa do vínculo com São Paulo, por não saber quem são. Tem uma coisa de polonês. É uma crise de identidade muito mais complicada que a nossa. Nós estamos lá na ponta, as coisas estão mais definidas para nós, é mais fácil a gente visualizar isso e decidir que nós somos esse somatório de coisas. Eles estão absolutamente perdidos.

- Tu considera "Não é céu" uma bossa nova?

Tem tudo de uma bossa, tem essa levada... Está tocando bastante no rádio aqui no Rio. E eu estou achando legal, sabe por quê? As pessoas estão ouvindo como algo novo. Quando entra no rádio parece algo novo. Me soa muito legal, porque é o resumo de toda essa busca. Não é uma levadinha de bossa convencional que tu ouvia em 1950 e tantos, em 60, ou as bossas que algumas pessoas fazem hoje em dia que é um revival, que é uma coisa antiga...

- O que ela tem especificamente de bossa nova?

Tem suavidade, leveza, essa coisa rítmica básica essencial que é de bossa nova. Embora uma bossa nova de Jobim tenha muitos acordes, um tipo de construção de acordes, de harmonia... Isso é uma coisa mais técnica. Por exemplo, no meu violão, eu uso muita corda solta. Tu deve ter percebido no show. Tem um momento em que o violão parece um piano, parece uma onda, é um violão que não pára. E na bossa nova não é assim. Tu vai ouvir o João Gilberto e o modo como ele toca é diferente. Ele toca em cachos, como a gente diz, então, tu ouve todas as notas, tudo o que soa, o dedo dele está prendendo a corda. Eu prendo uma nota, o resto está tudo solto, vou passando de um acorde para o outro, é uma idéia minha que eu trago da milonga, que é uma coisa cíclica.

Eu quis que essa bossa tivesse a coisa cíclica, repetitiva, circular da milonga, e não a variedade rítmica da bossa nova. Não é céu tem três acordes, na verdade. Um acorde principal e dois de passagem. E tu vê que a milonga, se tu for radicalizar, é uma música de dois acordes. Um si menor e um si maior, por exemplo. Ou um lá menor e um mi maior. É uma coisa básica. E eu penso que a milonga ideal é isso, dois acordes, uma melodia que vai se repetindo e uma letra que vai andando. Então, a letra do Não é céu é longa, diferente da bossa nova, em que a maioria das letras é curtinha, que tu repete. João Gilberto chega a repetir cinco, seis vezes. Ele é a essência da bossa nova mesmo, vai fundo.

- Aquela coisa minimalista...

A minha bossa também tem um elemento de minimalismo, mas a letra não pára, ela vai embora, e vai, vai, vai indo e vai se desenvolvendo que nem as cordas são soltas, a minha harmonia é mais aberta, vamos dizer assim, em comparação a uma bossa mais convencional. Minha sonoridade não é um padrão de acordes muito bossa-novista. E essa harmonia aberta eu penso que é o nosso pampa aberto. A minha milonga também não tem aquela harmonia mais fechada da milonga tradicional, é mais aberta, deve muito à harmonia da bossa, e a minha bossa deve muito à estrutura melódica e de letra da milonga. Então, eu acho que Não é céu funde muito essas coisas. A brasilidade que tem em Não é céu está presente nas milongas, e vice-versa, como eu te falei antes. E Deixando o pago e Ramilonga devem muito à tradição brasileira de canção. Não só da bossa nova. Milonga de sete cidades, por sua vez, lembra umas músicas que minha mãe cantava. Voa, minha linda borboleta, é uma coisa antiga, não lembro quem cantava.

Então, não se tratava de juntar acordeão e berimbau para fundir Rio Grande do Sul e Bahia. Isso é um estereótipo. Eu queria encontrar uma maneira de fundir as coisas na essência. Mas volto a te dizer, é uma coisa pessoal, porque eu sou assim, tenho essa formação brasileira forte, me interesso desde pequeno pela coisa regional, por tango, por Beatles, desde pequeno me interesso por tudo. Eu gosto de Sex Pistols, de Ataulpa Yupanqui, de Mercedes Sosa, de João Gilberto, de Tom Jobim, de Astor Piazolla, das coisas mais díspares que tu possa imaginar. Eu me pergunto: por quê não posso fundir isso tudo?

Se eu fosse pegar uma herança tropicalista, seguiria uma coisa de ecletismo simplesmente. O tropicalismo era uma mistura de coisas, mas não fundia em essência, não transformava numa coisa una, não tinha unidade. Era uma coisa meio de catarse, de socar um mundaréu de coisas dentro de uma idéia. Era o Sargent Peppers elevado ao máximo. Para mim, o Sargent Peppers é a base de todo o tropicalismo, mas isso nunca veio à tona muito claramente, nenhum dos tropicalistas falou nisso assumidamente, mas para mim tudo veio dali. É a mistura de Glauber Rocha com Sargent Peppers. Mas, enfim, não vamos passar para o trabalho dos outros.

Quando eu voltei para o sul e passei a fazer coisas na Argentina, e transitar, percebi que a gente, na verdade, não devia se sentir à margem do centro do Brasil, e que a gente era o centro de uma outra história. Nós somos um centro. Não somos o centro do Brasil, mas somos um centro, onde há uma confluência de linguagens, de Argentina, de Uruguai e de Brasil. A gente sente essa presença e isso nos atrapalha no sentido de pensar: somos ou não somos brasileiros? Somos mais portenhos que brasileiros?

Nós somos muito mais brasileiros do que portenhos, evidentemente, mas nós temos uma carga muito forte da coisa portenha. A gente vai a Buenos Aires e se sente em casa. Vai a Montevidéu e se sente em casa. E se emociona com isso. Passei a pensar não só nesse encontro do nosso regional com a coisa brasileira, mas a querer que essa confluência de linguagem fosse um fator não de diluição da nossa criação, mas de fortalecimento. A nossa produção deveria nascer dessa variedade, desse nosso centro, que hoje em dia a gente chama de Mercosul. Porto Alegre, capital cultural do Mercosul. Faz sentido esse título pomposo. Dá uma paradinha para eu tomar esse mate aqui...

*** (Pausa)

- Deixa eu te contar uma coisa que me incomoda há tempos. Na tua versão de "Joey", de Bob Dylan ("Joquim"), tem um verso que fala: Haviam seis irmãos... O correto é havia, verbo haver no sentido de existir, e aí eu volto para as minhas aulas no Julinho.

Está certo, claro. Digamos que... fui no popular. Esse haviam coloquial vai acabar sobrepujando o havia culto. A verdade é que eu devia ter encontrado outra saída, mais radical. Optando pelo haviam, o músico não abriu mão do m líquido. Mas o letrista hoje se arrepende. Há também um erro mais no final da letra que, cantando certo, fica careta, sei lá. Coisas da imaturidade.

- Tu está fazendo um songbook?

Agora vai sair um songbook dos discos Ramilonga e Tambong só. E vai ser super completo com a presença de todos os arranjos, todos os instrumentos, uma coisa nunca feita no Brasil, vai ser um negócio inédito.

- Quando sai?

Quando ficar pronto.

- Terá um disco de acompanhamento?

Pode até que a gente faça uma versão com as duas coisas juntas. De repente, podem vir junto o Ramilonga, o Tambong e o livro, vai ser um produto caro. Mas eu posso fazer, quem sabe, por quê não, um disco de voz e violão, escolher algumas canções e tocar.

 - E tu vai continuar morando em Pelotas?

A princípio, sim. Porque se eu for entrar num ritmo de mudança, vai bagunçar a minha vida. Agora eu não quero me mexer. Eu moro numa casa para onde eu fui com quatro anos de idade. Tenho uma fissura pela casa, adoro lugares antigos. Estou restaurando e tal. É um lugar bom para produzir. Minha mulher e meus dois filhos ficam lá. Agora, estavam aqui comigo no Rio, voltaram anteontem. Estou indo para lá amanhã. Minha mulher é professora da universidade, concluiu doutorado agora. Não estamos livres de voltar para o Rio, se começar a ficar muito pesado o esquema de viagens. Meu filho é louco pelo Rio, se criou aqui, o desejo dele é voltar. Não estamos livres disso, ou de ir para Porto Alegre, sei lá.

Mas eu já estou compondo muito para o meu próximo trabalho, estou com uma série de canções prontas, com uma cara muito mais minha do que nunca, com uma construção harmônica extremamente pessoal. Está quase tudo sem letra, tem uma letra só, aquela música que abre o show e é uma paródia da Banda, do Chico Buarque. O resto são canções virgens, sem letras. São como as canções do Tambong, como Não é céu, como Quiet music, só que mais radicalizadas harmonicamente, mais sofisticadas.

- Quiet music é tua? Tu domina legal o inglês, pelo jeito.

Hum hum (sorvendo o mate). Domino mal o inglês, mas para fazer letra não precisa saber muito do idioma. Não sei bem o espanhol também, me viro só. Chamo alguém que entenda da gramática, arrumo uma coisa aqui, outra ali. Fazer uma canção tem um aspecto lúdico, é como uma criança que junta uns cubinhos e faz um castelo. É um pouco isso. Com um universo restrito de palavras, pode fazer horrores de coisas. As combinações são inacreditáveis.

- Tu é filho de uruguaio e brasileira?

Meu pai é filho de espanhol, minha família é da Galicia, temos, inclusive, terras lá. Meu avô era português, Alves, padeiro. Minha avó materna tinha ascendência alemã. E tem uma coisa meio belga na família. A gente tem um parentesco com o Albert Schweitezer (leia abaixo nota *2), que foi prêmio Nobel da Paz em 1950 e poucos, eu acho. Era um escritor e era médico, foi para a África, um cara célebre. Tinha um hospital na África, se doou. Era o maior intérprete de Bach tocando órgão em sua época. E abandonou a carreira para ser voluntário na África. E ele, por sua vez, era tio-avô do Sartre.

*** (Pausa de espanto, popular queixo caído.)

Quer dizer, também temos um parentesco com Jean-Paul Sartre. (Risos) Mas não sei se a gente chega a ter um vínculo real com Sartre. Disse o Kledir que sim, que fizeram lá a árvore genealógica e diz que tem. O pai do Sartre era primo-irmão do Shwatzer, uma coisa assim. Temos alguns antepassados célebres. E os meus filhos têm o Mário Quintana no passado deles. É engraçada essa mistura. Esses tempos a gente veio a descobrir que o pai da minha mulher é aparentado do Mário Quintana. É de Miranda também, como o Quintana. Lá do Alegrete. Essas coisas loucas que a gente vai descobrindo. Está tudo em casa. A minha família é coisa bem variada, mas tem essa coisa européia mais viva, através da Espanha, porque a gente tem passaporte espanhol. Meu pai foi registrado na embaixada espanhola em Montevidéu. Estava gravando ainda? Deu, né?

FIM

Paulo César Teixeira

Nota (*1) O e-mail que refaz a origem da milonga:
 
Paulo, a questão da origem da milonga é uma... milonga! Um palavreado, uma confusão. Mais ou menos aquilo que eu já te havia dito. E o que complica é que os historiadores se fixam mais na milonga porteña e não na campeira, que é a que nos interessa e que é mais popular no RS. Mas, vou tentar te fazer um resuminho e, a partir disso, boa sorte.
 
O único ponto a respeito do qual todos os historiadores parecem estar de acordo é o que diz respeito à etimologia da palavra milonga (com exceção de Josué Teófilo Wilkes, que defende que a palavra vem de melos-longa, melodia longa. Ele diz que milonga derivaria da melolonga humorísticagitana, canto criado pelos gitanos malagueños ao redor de 1860, mas que só chega a Buenos Aires em 1880-90, onde tem duração efêmera. Acontece que muito antes disso a palavra já era de uso corrente às margens do Prata...). Pois bem, esses historiadores concordam que milonga é palavra de origem africana, mais especificamente, quimbundo (falado pelos negros banguelas, malembos e mozambiques, dos quais havia muitos entre os escravos do Uruguai e Brasil). Seu significado: plural de "mulonga", palavra. Ou seja: "milonga" significa palavras. Em Montevidéu milonga passou a significar a "payada pueblera", e aí começa a se misturar com a história musical.
 
(pausa para uma boa massa e um bom vinho)

Pois bem: é forte a influência andaluza sobre o folclore de Buenos Aires. (Atenção: cada autor puxa a brasa pra sua sardinha nacional, pois um outro autor, como já te disse, defende a naturalidade montevideana para a milonga. A seu favor, aquela presença do negro, aquela palavra africana...) A milonga pertence a um gênero de canções muito bem determinado, antiquíssimo na Espanha. Ela está ligada a uma antiquíssima corrente musical espanhola e portuguesa intacta, muito cedo introduzida na iberoamérica onde alimentou numerosas espécies líricas e coreográficas. As milongas se parecem com as guajiras cubanas. A milonga pampeana tem as mesmas medidas copleras da guajira. Ou seja, a milonga é, em sua origem, uma adaptação da guajira flamenca que, por sua vez, é uma adaptação da guajira cubana. A milonga primitiva era em compasso de 6/8, certamente uma simplificação da guajira flamenca, de dificultosa execução. Na mão dos guitarristas dos países do Prata o ritmo difícil de reproduzir da guajira andaluza ganhou uma simplificação e depois uma transformação ao ser influenciada pela habanera, muito popular então, passando a ser tocada em 2/4. A milonga nasce por volta de 1860, aquire coreografia (a milonga dançável...) antes de 70 e modifica seu compasso ternário de origem pelo 2/4. Na década de 80 e princípio da seguinte ganha o novo nome de "tango", devido à grande popularidade que o teatro vinha dando ao... tango andaluz. Desde então a milonga perde seu nome mas só no que diz respeito à modalidade para dançar, conservando-se "milonga" a canção.

Como indica seu nome (palavras), a milonga não foi em seus primórdios outra coisa se não um canto. Esse canto podia ser a repetição de estrofas decoradas ou seu improviso, fruto de inspiração repentina. Esta última modalidade veio suplantar a antiga Cifra, originada em uma antiga forma de canto comum na Espanha. Os improvisadores eram os payadores, continuadores dos fandangueiros andaluzes que por sua vez continuavam os trovadores medievais. Com o passar dos anos a milonga passou a ter preocupações metafísicas, tendência que se consolidou no campo, na milonga campeira, mas não na milonga feita no subúrbio (onde os temas eram mais urbanos, peleias e etc).
 

A milonga-dança é que deve diretamente à habanera sua origem, pois este ritmo entra facilmente nos bailes das classes baixas, depois de haver adquirido em Cuba a coreografia da dança junta, em par, que antes era solta e se chamava simplesmente Danza.
 
Ah, em Buenos Aires, os lugares para dançar se chamam "Las Milongas".
Bem, acho que já chega. Estou ficando tri a fim de sair atrás de um trio elétrico e terminar meu vinho na praia do Laranjal. Fico no aguardo. Boa sorte com as tuas milongas. Ahora sos una autoridad!

Abraço satoleptico, V

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* Nota 2

Quem foi Albert Schweitzer e qual era a relação de parentesco com Sartre (pesquisa de Álvaro Luiz Teixeira):

ALBERT SCHWEITZER (1875-1965) - Prêmio Nobel da Paz de 1952. Médico-cirurgião missionário. Fundador do Lambaréné Hospital (República do Gabão). Nascido em Kaysersberg, Alsácia, então Alemanha, hoje França.

O endereço da página é www.almaz.com/nobel. Tem também um site mais completo: www.schweitzer.org em várias línguas, inclusive espanhol.

Em relação ao parentesco com Sartre. Jean-Paul Sartre era filho de Jean-Baptiste Sartre e Anne Marie Schweitzer, filha de Charles Schweitzer (tio do missionário Albert Schweitzer). Na entrevista, Vitor Ramil fala que o pai de Sartre era primo de Albert S. Na verdade, a mãe de Sartre é que era prima. O pai de Albert S. (Louis Schweitzer, um pastor) era tio de Anne Marie e tio-avô de Jean-Paul Sartre.

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