11 DE SETEMBRO, 9H30MIN:

PORTO ALEGRE, BRASIL

Ariela Boaventura

mozarela@hotmail.com



Um ano após, as imagens do dia 11 de setembro ainda chocam por seu hiper-realismo. É uma data que, como uma cicatriz, vai marcar para sempre a história da civilização, por sua brutalidade e sedução. Digo que seduzem porque são imagens que, por mais feias e violentas que sejam, atraem por sua incredibilidade, pela sua inverossimilhança. Ninguém poderia imaginar que isso pudesse acontecer. E agora, fica difícil não crer que qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento.

Lembro que naquela manhã de 11 de setembro eu estava dormindo, como sempre faço, por preguiça vã, todas as manhãs. Mas a pessoa com quem partilho minha vida e minha cama me acordou, só para mostrar a cena da primeira torre em chamas. Naquele dia eu aprendi o que significava World Trade Center. Parece um absurdo, coisa de gente alienada, mas nunca me chamou a atenção a nomenclatura das obras de engenharia, ainda mais de prédios que se localizam em Nova York. E olhei para a tevê e disse:

- Ah, me deixa dormir, é só um prédio em chamas. Aonde é isso, em Porto Alegre?

A criatura com quem partilho minha vida e minha cama é gente de cultura, de história. Vive dizendo que jornalista é gente burra e chã. Eu nem ligo, sei que somos só o que não presta mesmo. Virei para um lado e dormi de novo. A pessoa com quem etc me cutucou.

- Tu não vai dormir, tu não pode dormir [oh que inferno pode ser pior que não poder dormir de manhã?], isso é a história acontecendo!

- Que história é essa? Deixa acontecer, que se foda, que exploda o mundo, me deixa dormir, pô!

Esse mau humor matutino é típico, não posso evitar.

- São as torres do World Trade Center imbecil, olha lá!

E nesse momento se aproximou o segundo avião. Justo quando pus os óculos [senão não teria visto nada], o avião se espatifou contra a outra torre. Era inacreditável. Podia ser o prédio ao lado, pra mim o valor da coisa tava somente no fato de um Boeing se chocar, assim, lindamente de frente, entrar de cara dentro dum edifício. A primeira coisa que disse foi:

- Uau, que show! que beleza! onde é isso?

- Que beleza? o mundo tá acabando e tu diz que beleza? meu deus, quanta ignorância. Isso é nos Estados Unidos, no World Trade Center, aquelas duas torres enormes, em Manhattan.

- Ah, é? Pô, mas foi bonito. Que será que o piloto tomou para fazer isso?

- Aí é que tá, tão achando que é atentado.

- Atentado? De quem?

Na minha cabeça chã todos devem ser amigos dos Estados Unidos, nem sabia que existia Afeganistão, muito menos extremistas malucos e camicases. Quem poderia ser assim, tão louco? Futriquei meus arquivos, ainda sonolentos, da memória e nada encontrei. Alemães? Japas? Algum Argentino safado?

- Meu Deus, aquilo era um Boeing, tinha gente dentro?

- Claro que tinha. Foi uma merda sem tamanho. E tu dormindo.

Nesse momento, resolvi agir. Fui na cozinha e fiz uma xícará de café com leite. Quando voltei, já sem sono, vi que a cobertura era da CNN e que a coisa estava em cadeia, só se falava disso, em todos os canais. Fiquei sabendo também que um primeiro avião tinha se chocado contra uma torre antes de eu acordar, o que me irritou.

- Por que tu não me chamou? perdi o primeiro acidente!

- Eu te chamei, tu grunhiu que queria dormir, me deu um cotovelaço no braço e virou pro outro lado.

- Mas tem que insistir, tu sabe que isso é só uma reação animal. Agora nunca mais vou ver o primeiro avião entrando no prédio esse.

- Vai ver sim, tu vai cansar de ver. Isso aí vai mudar a história do mundo. Tu vai ver só. - Por que?

- Por que sim, tu não consegue ver isso agora, mas eu consigo. É um nó na história, o que aconteceu.

- Nó? Por que nó?

- A gente diz isso quando acontece alguma coisa que faz com que os rumos da civilização mudem. Essa coisa é o nó.

- Ah.

Então o show só melhorou. Começaram as notícias sobre um outro avião que teria caído sobre o Pentágono.

- Bah, essa seria ótimo, bem no coco daqueles imbecis, imagina só. Os caras tudo empertigado, com aquelas bocas pedantes, se achando os caras mais importantes do mundo e bum! cai um avião bem na cabeça deles, um Boeing, boing!

- Não fala assim, criatura, que horror. Sabe quanta gente morreu só nas torres?

- Não. Tinha gente lá a essa hora da manhã?

- Claro, que hora tu acha que era lá?

- Sei lá, não sei nada de fuso horário, diferença de quatro horas, é isso?

- Por aí. Tão dizendo que morreram umas mil pessoas.

- Ah, eles sempre aumentam essas cifras, depois isso vai baixando. É só pra fazer manchete e dar audiência.

Daí confirmaram a notícia do avião que tinha caído sobre o Pentágono. As imagens apareceram, o prédio dos militares vagabundos fumegando.

- Caralho, que beleza. Ah, quem será hein? quem será que tá fazendo isso? Vão destruir os Estados Unidos.

- Tão dizendo que é coisa de extremista islãmico.

- Islãmico? Por que eles iriam fazer isso? pra mim é americano que fez isso. Lembra do Oklahoma? A primeira coisa que fizeram foi acusar gente de fora. Inimigo pra eles é sempre de fora, é o soviético, o comunismo, o negro, o chicano, o índio. Americano é sempre bonzinho.

Daí me foi dada uma explicação de mais ou menos uma hora sobre toda a história do Islã, os costumes, a cultura, como começou a briga com o Ocidente, quem era Bin Laden, etc. Por volta do meio-dia resolvi fazer uma pausa para o café da manhã de verdade, com pão, queijo, presunto, requeijão e geléia. Foi daí que se cogitou que havia mais quatro aviões suspeitos que estavam voando, um deles rumava para o Capitólio, outro cairia sobre a Casa Branca. A essa altura, Bush já se mandara de helicóptero para algum lugar secreto.

- Cagão. O povo se fodendo e ele só pensa em salvar a própria pele.

- Ah, é. Ele vai ficar, morre e o povo fica sem presidente!

- Elege-se outro. Ele é um merda mesmo. Não vai fazer falta.

- Não é assim. Ele tem que se proteger porque ele representa o governo.

- Tu tá defendendo os Estados Unidos ou é impressão minha?

- Não tô defendendo, só que eu não sou ignorante.

- Eu não sou ignorante.

- Mas parece.

- Tá, agora a gente vai brigar por causa do Bush, era só o que faltava.

- Encerra, pssssxxô! Caiu outro avião.

- Aonde?

- Não sei, tu não cala a boca.

A mulher da tevê dizia que também não sabia, mas que era certo que o avião tinha caído e estavam todos os passageiros mortos. Em minutos, sabia-se que a aeronave caíra em Pittsburgh.

- Caiu, nada. Derrubaram. Esse eles derrubaram e agora é tudo acidente.

- Quem derrubou?

- O governo americano, hora.

- Tu acha que iam derrubar um avião cheio de gente?

- Claro. Se o troço ia cair em cima de algo importante, mandam abater.

- Claro que não, imagina.

- Tá, então tá.

Daqui a pouco disseram que o avião tinha caído, assim, no mais. E que os outros aviões eram engano. Mas que todas as linhas telefônicas e internet estavam congestionadas, que as ruas de Nova York estavam que era o próprio Apocalipse e que o número de mortos era muito, muito maior.

- Quem fez isso deveria se pronunciar. Se é atentado, sempre tem alguém que quer aparecer, dizer "fui eu!" - eu disse.

- É, mas nesse caso eu acho que é diferente. Quem fez isso não vai falar, porque isso não vai ficar barato.

- Como assim?

- Ah, vão querer guerra, ora!

- Mas se não foi um país, se foi uma organização ou algo assim?

- A mesma coisa. Tu acha que vão deixar passar em branco? Isso vai dar muito pano pra manga. E eu acho que a gente só vai entender isso tudo daqui a um tempo.

- Pode ser. A gente nunca entende as coisas assim no calor da hora. E eu vou dormir um pouco. Tchau.

- Tchau.

Daí passou um avião bem em cima do prédio.

- Será que são eles?

- Ai que medo. Vão bombardear o Piratini, vão dizer que foi coisa do PT - eu disse.

- Vai dormir, não fala bobagem.