O roubo do Chagall

Ariela Boaventura

mozarela@hotmail.com

Aconteceu que a professora de História, uma baixota magrela e sardenta que pintava os cabelos de amarelo-ovo, arranjou aquela visita ao museu. Era uma tarde do tipo daquelas que não se fabrica mais, ensolarada, salpicada do lilás das flores de jacarandá; eu tinha doze anos, estava com os hormônios explodindo. Lembro que ainda naquele mês furei os quatro pneus do carro de outra professora, e também havia sido repreendida por pichar a escola com meu apelido. Insolente, não me interessava muito por qualquer coisa que não fosse mortificar a paciência das pessoas. Mas naquele dia eu não teria saída: teria de comparecer ao passeio ao museu, tudo porque meu limite de faltas às aulas de História havia estourado.

Tentei fazer do passeio uma experiência ao menos divertida, e estava sendo, porque azucrinava os colegas junto com uma amiga tão infernal quanto eu. Mas quando chegamos no museu – a turma toda –, a professora do cabelo cor-de-ovo falava um balaio de chatices e aquilo dava um sono desgraçado; as obras do Chagall não eram nada animadoras, de olhos fechados qualquer imbecil poderia fazer aquelas coisas, era o que eu dizia quase gritando só para me mandarem embora, porque eu não queria estar ali e também porque era muito engraçado deixar as pessoas malucas.

Então ele chegou, aquele pedacinho de metal que se parecia com, sei lá, bronze. E nele havia o desenho um garotinho sentado, brincando; conforme a luz a imagem ficava assim colorida, como se fosse manchada de óleo diesel. A primeira idéia que me ocorreu foi: como se desenhou isso no metal? e o segunda foi: puxa, que vontade de tomar um milk shake! A peça, em água-forte, havia chegado às minhas mãozinhas por meio da minha amiga Pataty.

– Pega isso – disse ela, um ar de desprezo, ou asco, num canto da boca.

– O que é isso?, perguntei.

– Sei lá, me deram. Eu não quero isso, pega pra ti.

Pataty era um dianho de menina-menino, donjuanesca, quatro anos mais velha que eu, pintava o cabelo de vermelho, fumava, usava a calcinha enfiada no fundo da bunda e, para minha inveja, sabia datilografia; morava com o padrasto desde pequena, não lembro se a mãe dela morrera ou o quê; ela tinha também uma espécie de namorado, um cara de uns trinta e poucos anos, casado. Perto dela eu me sentia uma pirralha boba, mas ela era a única pessoa com quem eu me sentia à vontade, comungávamos as mesmas idéias, eu acho – não éramos do tipo mulherzinha, querendo casar e ter filhos, queríamos ver o resto do mundo, viver aventuras, correr estradas, ter carros e ouvir rock muito alto.

Talvez ela soubesse que aquela coisa era uma obra de arte, não sei, não importa. Peguei o Chagall e convidei Pataty para dar uma volta pelos meandros do centro da cidade; antes, como eu não tivesse onde guardar meu presente, pedi que carregasse a peça no seu bolso.

O piso do museu, lembro bem, era decorado com pedaços de metal muito semelhantes ao que recebera da Pataty, quem sabe por isso não tenha cogitado por nenhum raio de segundo que aquilo pertencesse ao acervo. Ela o pôs dentro do bolso das calças e sumimos, a profe estava muito ocupada para dar conta da nossa falta. Saímos, cândidas, pela porta da frente do museu, onde havia um guarda ou segurança certamente para evitar que as pessoas saíssem de lá carregando preciosos objetos pintados ou pequenos retângulos demetal.

Mais ou menos uma hora depois, voltamos.

Se eu soubesse que ia acontecer aquela pataquada jamais teria retornado ao museu, teria tomado meu milk shake, teria abortado a responsabilidade com minhas faltas, enfim, pego o rumo de casa.

Eu, Pataty mais o Chagall chegamos à praça onde fica o museu, que repousa a quase um século sobre uma calçada picotada de umas malditas pedras portuguesas, à sombra de imensos jacarandás. Duas viaturas da polícia estavam estacionadas em frente ao prédio, as luzes rodopiando sobre os carros; uma multidão se aglutinava como se observasse algum corpo caído; entre as pessoas reconheci de longe o cabelo cor-de-ovo. Fui em sua direção rapidamente com o único objetivo de perguntar: “Profe querida, já fizeste a chamada?”

A pergunta não chegou a sair de minha boca pois notei que no olhar da profe havia certo tom insano, estava transtornada como só uma mulher é capaz de ficar por qualquer coisa que coloque em xeque sua responsabilidade de fêmea sobre sua prole.

– Onde vocês estiveram todo esse tempo? – indagou Cabelo-Cor-de-Ovo.

– Fomos só tomar um sorvetinho na esquina – eu disse; não era verdade, mas também não chegava a ser uma mentira. Mas ela tinha ainda mais uma pergunta, e por alguma maldição minha língua sempre foi o maior e mais eficiente órgão do corpo, funcionando impulsivamente sem consultar as recomendações da razão. A profe perguntou com aquele ar manicômio se “por acaso” não havíamos visto um pedaço de metal de forma mais exatamente retangular, no qual brincava em traços de pena aguda um menino. Puxa, era muita coincidência! era igual ao que a Pataty havia me dado!

– É esse troço aqui? – eu disse, e sem refletir resgatei o retângulo de bronze de dentro do bolso da minha amiga, que por sinal ficara bem quietinha.

Como se tivesse instantaneamente sido empalhada, a profe estava toda lívida, uma cor de múmia na pele; olhos secos. Foi o metal aparecer que um enxame de gente caiu sobre nós. Nos livramos da polícia, mas o cabelo-cor-de-ovo já matutava pôr em prática suas táticas de tortura psicológica aprendidas sabe-se lá onde.

Uma comissão de professoras, entre elas a diretora da escola, se envolveu no caso. Numa saleta escondida nos porões da escola passamos por uma saga de interrogatórios; adjetivos humilhantes nos foram esfregados à cara; a expulsão era algo tido como certo. Durante dias fomos pressionadas a “confessar” o crime. Para evitar o envolvimento dos pais era preciso, diziam, admitir o roubo. Por cerca de uma semana neguei a acusação de ter roubado o Chagall. Depois, uma coisa louca aconteceu. As profes afirmavam o roubo com tanta convicção que também eu já duvidava de mim. Elas diziam que talvez tivesse agido inconscientemente, talvez eu não soubesse o que estava fazendo, um impulso inconseqüente, possessão por almas diabólicas etc. Perdi o fio da certeza, mandei todas as profes à merda; recebi quinze dias de suspensão e a ameaça de qualquer outro deslize ser a gota d’água para levar um pé na bunda da escola.

Ironicamente, muitos anos depois (digamos outros doze anos) eu fazia um seminário de arte contemporânea. Uma senhora que se parecia com um guaxinim (pois pintava de rosa uma gorda mecha dos cabelos), falou que naquele dia nós contaríamos uma experiência, um tal de Contato Profundo com a Arte que tivesse marcado a vida de cada um. A proposta era contar o caso num microfone para cerca de trezentas pessoas. Deixei alguns começarem a brincadeira e depois foi a minha vez. Falei o óbvio:

– Eu roubei um Marc Chagall, mas acho que ninguém vai acreditar.

A platéia gargalhou até às lágrimas.

Mesmo depois que contei os detalhes dessa história todos ainda riam como se fosse uma grande piada. Então, aconteceu algo incrível. Um velho franzino de boné na cabeça lá no fundo da platéia se levantou e pediu o microfone.

–Eu me lembro desse episódio, eu era o guarda do museu naquele dia – o velho disse. Ele parecia ter saído de outra dimensão por estar falando aquilo, a coisa parecia ser jogada ensaiada, nem eu queria acreditar. – Fui inclusive demitido por isso – acrescentou.

O velho não tinha mágoa, via-se que ele sentia (como eu) que, depois de tanto tempo, tempo que uniu-nos ali no mesmo seminário, que a história do roubo do Chagall ficara tão surrealista quanto um sonho.

A platéia parara de rir: sorria para mim; as pessoas sustentavam um brilho estranho nos olhos, como se estivessem drogadas. Eu me sentia Jesus diante de Tomé, o cético: oh, infiéis! agora eles acreditavam. Além de mim e do ex-guarda do museu, só o maldito Cabelo Cor-de-Ovo e Pataty poderiam lembrar dessa, mas é mais provável que eu roube outro Chagall que encontrá-las por aí. E depois de tudo, sobrou o nó do destino: contrariei todas as expectativas e casei com um professor de História.