Alguns poemas de

"Esqueleto Cantor"

Rodolfo Dantas



POEMETO GÓTICO

Lentamente
Meu corpo derrete

Trago comigo
Uma tíbia
De Peter Pan

Sorte
Ter como amante
O que
Não existe
E visita-me
Sempre
Travestido
De vida
 

COTIDIANO

O sapato
Desamarrado
O homem
Se dobra

(O laço dado:
O mesmo
Aprendido
No primário)

Um deus pedestre
Pensou que pra ele
O humano
Se curvava
 

FINJO

Acabou-se o tempo
Em que podia
Trocar meu nome
Por compatível

Presentemente
Rodolfo habita
Os rins
Mandíbula
O baço
O crânio
O fêmur
A língua
...

Sobra nas sombras
Se contorce
E sente
Dores terríveis

Ou se expande
Linha infinda
Corda bamba
Negra
Íntegra
Pra esses passos
De poeta
(Funâmbula promessa)

Ou então
Arrisca
Fugir sem ser visto
Retornando molambo
Mal escrito
Ao corpo que o repele
Recebe
 

CRANIOLOGIA

Um cinema antigo
Na Square-Head Street
(Londres)
Está
Neste exato momento
Projetando um documentário
Acerca da deformidade
De certos crânios
Humanos
E o quanto desviam eles
Do padrão de Michelângelo

Dissertações

Metros
Analogias com o globo terrestre
Prendem a atenção da platéia
Que preocupada
Passa a mão nervosamente
Por sobre as cabeças

A imagem marcante
"O Criminoso Nato":
Platicéfalo
Apófise jugular
Proeminente
Saliência temporal
Acentuada
Cavidade orbital
Enorme
Foceta occipital

(O corpo de bruços
Rijo
Em mesa fria
Num necrotério de Nápoles:
Fabrício
Vinte e três
"Entrego rosas pra ela
Ou as queimo
Na praça?")
 

RELATO

Era linda
E fria
Não era minha

(Decidi ser ela
Pois era impossível
Tê-la comigo)

Por isso agora
Antigo
Macho postiço
Chamo-me Laura
Tenho vinte e cinco
E adoro homens
Leitores de Cícero
 
 

ARTUR

Bebe um copo de dry martini
O corpo flutua na piscina
Deitado em colchão de ar
Espirais multiplicam-se na água
E ele despreza
Entoa canções suaves
Dessas de brotar infância

Algumas palavras são ditas:
A vida é breve
A carne fraca
Deixemos o segredo
Preso por comportas...
(Gira, gira, gira)
A felicidade nos pêlos
Eriçados
Indômitos

O monstro do Lago Ness empurra o colchão/

/pelos quatro cantos do retângulo
Ele ri
Agradece
Oferece um troco

Pousa o grande corvo negro, terrível, cadavérico,/

/trágico, fétido, na mão
Bicando
Delicadamente
Os amendoins torrados

(Leve, leve, muito leve)
 

Maracas aquáticas são suas amigas
Quer se casar com elas
Ter filhos
Bordar fonemas

O Sol brilha forte
Artur não percebe
Os vapores se desprendendo
O ralo aumentando
Rápido
De tamanho
 
 

MUSA 3X4

A velha musa
Se deita
Retira
O olho de vidro
Que atira
Em copo d’água
Olho verde
Turmalina
Enquanto afunda
Vira
O escafandrista
Aflito
De cabo-guia
Partido
 
 

VIS-À-VIS

Guardava o baú
De manifestações de apreço

O cabide
Em cedro
No canto
Do sótão

O capote
Caído
Ao lado
Da porta

O retrato
De pescoço longo
E olhos-araque
Voltado ao chão

Dois seios
 
 
 

AMOR/TREMOR

Dizem que o amor rodava em falso
Antes de fincar a cabeça no torso
Ao que parece estourava fogos
Pela avenida de papéis trocados

Agora
Nada no lugar

Redobra rugas pela noite afora
Envia votos
De desesperança

Não mais declara
Demanda

Um ogro foi gerado
No velho jarro
Da sala
 
 
 

MARGOT

Margot Picard
Sete anos
Menina normanda
Ao passar solitária pela praia
Encontrou
Uma baleia perdida
Vira uma
No livro de escola
Mas sempre pensou
Que fosse mentira
Coçou os olhos
Talvez a fome
Ou mesmo súbita
Febre de gripe
O sol forte
Caminhada longa
"Ontem desperta
Sonhei ver mendigos"

Então Margot
Saia rodada
Num ato atira
A lancheira aos abismos
"Dane-se tudo!
O mar
Amigas
Boneca
Pincéis
Meu futuro marido!
Se ela existe
Só posso eu
Ser impossível!"

Margot Picard
Olhar mareado
Nunca mais
Foi vista
 
 
 

PÉROLA E DRAGÃO

Surge
Da pérola o dragão
Truões e melipos
Ramilhas e gufos
Cológulos sardos
Dançam em volta
Do monstro nascido

Mais que meu filho
Serei seus olhos
Ao sentir o tédio
De prolongado armistício
 
 
 

MORRE PINTOR AUSTRÍACO

Hubert Aratym
Morreu em lugar nenhum
Pintor surrealista
O rosto-aquarela
Ou mesmo
Pintura rupestre
(Também
Nutria o hábito
De esculpir a própria
Semelhança)

Tinha o dom
Da ubiqüidade:
Seu corpo
Dividia
Em partes
Assimétricas
Enviando
Tronco
Membros
Pra Florença
E Veneza

Hubert Aratym
Também era fantoche
(Eis porquê
Sua morte
Está
Tão bem negada)
Acredite
 
 
 

ESTADO DAS COISAS

Meio-dia
Fincado na terra
O homem
Dedo em riste
Em cima da pedra
Braveja desmandos
Contra a paisagem:

-Grota, torne-se barca!
-Solo, torne-se vaga!
-Moita, torne-se mata!
-Penha, torne-se águia!

(Ventava muito
No dia
Em que Versínio
Tornou-se cacto)
 
 
 

O RETÁBULO DE MESTRE BENTO

O cavalo galopa
E deixa trás da cauda
Esteira de vazio
E vento morto

A alma do cavaleiro
Rodopia (folha seca)
No meio da espiral
No cenário (terra rota)

Vê-se o cavaleiro
Gritando
Qualquer coisa

Sombras no caminho
Empinam enorme asa
De poeira
 
 
 

FANTASMA

O amor enxerga
E a vida leva
A Laura gasta
À cova rasa
Mulher fantasma
Que agora espalho
Na carne curva
De quem abraço
Mulher difusa
Que se reúne
No beco escuro
Do assassinato
 
 
 

ENTREVISTA

- Pois não sinhô.
Meu trabaio
É arretirá
As viscera
Das pedra.

- Pois não sinhô.
Qué oiá?
Qué oiá?
Podi oiá.
É barba pustiça.

- Us trapo di visti?
Ah,us trapu...
Essis eu fiz
Graças a benfazeja
Culheita.

- U sutaqui?
U sutaqui?
Qué oiá?
Qué oiá?
É pustiçu tamém.

- Sem fotograma
Sem fotograma
Faiz favô
Roba a alma.

- Onde mi banhu?
Ah
Mi banhu com as lesma
Us caramujo
Us restu di cumida
As gosma
Us cuspi
Dentru
Da inormi grota
Dus inutensílio.

- U próximu
U próximu....
 
 
 

NOTAS DO DESFECHO

I

Naquele dia tentou reconquistar-me, equivocadamente: recitou durante horas os discursos do Führer. Marchava pela casa enquanto caíam cinzas da longa piteira. Tranquei-me na adega, e continuava. Em certos momentos, inseria nos discursos algumas canções de guerra. Pululante acadêmica, uma cavalgada das valquírias em minha sala de estar.

IV

Enchia o espaço com vontade potente, julgando que ficaria encantado ao saber que você atirara o gato pela janela.

VII

Seus olhos choravam, e ao deixar a adega, cheio de vinho, exigiram: "Diga a mim, presto: a mulher não existe mais! A mulher não existe mais!" Pediu que amasse a falsa.

IX

Comovia a sua incansável luta em apagar a memória, em resgatar o gosto primevo, preciso, alísios que sopravam plenos (inútil tentativa de recompor o fantasma).

XI

Na última vez que nos vimos, usava roupa branca, o rosto repleto de maquiagem clara. Tornou-se transparente, inimaginável. Abraçava-me, e meus braços atravessaram a seda.

XV

Até hoje me pergunto, e talvez tivesse dado certo: por que não Stálin?
 
 
 

TUDO PASSA

Cantávamos muito
A voz era farta
Por incrível que pareça
Cá estou
Nesta cadeira de jacarandá extinto
Duzentos anos depois
Esmagando mosquitos
Claves de sol

Plaft!

Ré bemol
 
 
 

ETERNO RETORNO

De novo viso
O visgo limpo
Da grandessíssima mãe
Que não me afaga
Afoga-me
Em letra líquida
Amniótica
 
 
 

GERAÇÃO

A hélice dispara
O avião decola
Um quepe aterriza
Nos desenhos da filha
Vovô pilota
Teco-teco abóbora
Passou rasante
Não sei se volta
 
 
 

ANTEPROJETO

Nunca mais atirar
Daguerreótipos contra a parede
Trisavôs
Surgirão aos berros
Então veio:
- Vermute?
- Duas pedrinhas.
Servi

Ao se acalmar
Olhou-me de cima
A baixo
Apontou-me as ridículas orelhas de abano
Minha magreza insuportável
Meus óculos garrafa
(Que acentuariam assaz
As medidas
De batata holandesa
De meu nariz)

Lamentou profundamente
Os zigomas na face:
"Silviculares
Rudes
Que neto meu ousou
Acalentar um selvagem?"

Disse mais:
"Vossos colarinhos
Ficariam muito bem
Em certos integrantes
Da horda"

Encarava-me

Antes de voltar
Indicou-me um alfaiate
Lâmpadas
Rebentaram
 
 
 

VALSA CIGANA

As traças fizeram suas notas
Na partitura da velha senhora
"Adoráveis Tormentas"
(Valsa Cigana)
O tempo solfeja
Nos bueiros da pauta

(E como tocar agora
A melodia mais estranha
As semibreves confusas
Que os insetos inventam?)

Os dedos tortos no piano
Insistem soar a música
Mesmo que a casa se apague
E todas as teclas
Derretam
 
 
 

JUBARTE

Focenas, belugas e narvais
Testemunharam
A grande façanha
Com duração entre
A de uma música pop
E a de uma extensa
Ópera de Wagner
A jubarte criou
A melodia máxima
(O compositor pernóstico
Demasiado humano
Deitou deprimido
Ao não cruzar
A nota lá)

Ao que parece
A velha jubarte
Fez a canção
Por puro deleite
Não buscou atrair as fêmeas
Ou humilhar
Outros machos da área

Em Abrolhos
A barcaça atracada
Ressoa no casco
Os bemóis mais perfeitos

Na superfície o tolo
Artista frustrado
Transfere as notas
Precariamente
Para a pauta
 
 
 

PEQUENA MORTE

Sofro
Não estou contigo
Sinto
O fato de nunca
Estarmos visíveis
Embora sejamos
(Seremos sempre)
Amantes e mínimos
Na memória fluida
Desse terno
Abismo
 
 
 

SKORPIOS

Defendemos
A solução adequada

Admitimos:
Venceu
A ignorância

Já não queremos
Há muito tempo
O ponto mínimo
Invisível

Somos
Incapazes de agüentar
A mais leve
Metafísica

Criamos discursos de queda
E prosseguimos
Convictos

Gargalhamos
Ou mesmo
Sérios e safos
Cravamos a lâmina
Sangrando vazios
 
 
 

RICORSO

Tenso ricorso
Onde me arrasto
Juntando o que
Resta do mundo
Compondo
Entre enfado e virtude
Algum pseudo
Verso profundo

Tenso ricorso
Onde não domo
A grande fera
Que surge no túnel
Ligando
O umbigo do sonho
À alma do autor
Meio-lume
 
 
 

VALSA PRA ESQUARTEJAMENTO

Um, dois, um, dois
Dança
No quarto sozinho

Um, dois, um, dois
Desfere
A primeira estocada

Um, dois, um, dois
Bebe nanquim
Rege orquestra

Um, dois, um, dois
Rasga-se todo
Esquece
 
 
 

LAMENTO

Agônico arado
O ocre toma posse
Do trator
Fantasma

A lanterna que sobra
Equilibra o relicário
(Grão de sal na falta
Do molar de Santa Rosa)

Lágrimas fabricam pátina
E o motor conta estalos
E lapsos do solo

Tragado pela terra
Rezas
Retornam aos corpos
 
 
 

ERRAR É HUMANO

Estúpido!
Não era este
Era o outro!

Devolva!
Devolva!

Pronto
Esse mesmo

Agora devora
 
 
 

PÊRA E TRAPÉZIO

A boca
Desdobra-se quíntupla
Dedos pisam
Os pêlos do avesso

Na parede esquerda:
Pêra
Na direita:
Trapézio

O lustre
Muito antigo
Esguelha

Beijos
Suspendem o leito
Que roda
Por sobre o tempo
(Ao que parece
Sangra vibratos)
 
 
 

ESPAÇO

A cama não se moveu durante a noite. Certeza. A lâmpada no teto, perpendicular ao centro do travesseiro: nenhum milímetro, sutil, de desvio. A porta continua lá. O mesmo ângulo formado entre a cabeceira, a cômoda, o batente. O corpo, lá. Impassível, transparente. Ssssss....
 
 
 

COMÉRCIO

"Dançar tango flutuando no espaço imitando/

/o som do silício"
- 12 cadéches

"Punhal de metileno furando a pele d’alma/

/jorrando pêssegos pernósticos"
- 15 xilégueis

"Sereia cheirando éter criticando/

/os perniciosos excessos da televisão"
- 5 tarins

"Pena de araque desenhando arabescos/

/no avesso do vácuo viscoso"
(Mais caro)
- 12 zagreus

"Buraco fundo acabou-se o mundo/

/ops deus escreve versos rotundos"
- 20,5 copérnicos
 
 
 

POTÊNCIA

Derrame
Não se avista
Quem sabe
O lábio trave
Então
A voz permita
Dizer
Coisa
Concisa
 
 
 

NO INÍCIO

---------------------------------

Anote ali
De novo
O primeiro risco
Escrito
Aquele tornado
Amuleto culpado

Escreva!

Rápido!

Pronto

Tudo apagado
 
 
 

PORTANTIQUA

Próximo quarto, lê-se na placa:

"A Estupenda
Forma Empalhada"

Atente para:

- Lábios risonhos mantidos após o baque
- Coxa resistindo flácida no culote engomado
- Rosto alvar endurecido antes mesmo de exposto
- Olhos que saltam mediante dispositivo eletrônico

Na cadeira Luís Vinte, "Por que Matar os Pregos", de Claude Nerval
Não corresponder se a mão delicada, eventualmente, sugerir um lépido minueto
Em tempo: taças bocejam de quatro em quatro horas

Favor não tocar
 
 
 

ANCESTRAL

O bisavô
Lecionava Lógica
Em Coimbra
Ao que parece
Viajou do Nilo
Ao Bósforo
Ao saber dos minutos contados
Lembrou-se da sova
Levada na escola

Nada dormia
E ele somava
Passos
E puídas
Superações

O tiro certeiro
Ainda anima
As festas de família
 
 
 

O INVENTOR E O CONVIDADO

Um outro poema
Estaria na página
Antes
Que o copo entornasse
Vinho tinto
Francês finíssimo
Perdi a chance
Do arremate

Tudo
Corria tão bem:
Montanhas castanhas
Corpos alados
Mas a palavra
Escondeu-se na mancha
De minha calça
(Vinco impecável)

Na minha frente
O conviva discreto
Recitava baladas
De um tal Charles Haydn
(A voz gritava
Todos os versos
Que eu certamente
Teria inventado)

Um outro poema
Seria no fundo
Caso este não fosse
Primeiro
E último
 
 
 

POÇA E CIRCUNSTÂNCIA

"Os moradores do Largo do Coração de Jesus, na face da Alameda Barão de Piracicaba, pedem atenção da prefeitura para uma poça de água estagnada que ali existe e muito os incomoda."

(Largo do Coração de Jesus - 22:05)

1) Adolescente lépida, voltando de curso noturno, salta a poça d’água, nela resvalando, levemente, o calcanhar;

2) Uma bicicleta trata de segundos depois, espalhar o líquido que cismava permanecer, marcialmente, na área disforme aberta no asfalto;

3) Besouro pousa no 13º rastro aquoso, contado a partir da calçada de Dona Neuma, do ponto de vista da sarjeta, ou mesmo de quem surge, da Rua Sebastião Albrunhós;

4) Nascemos olhos, é bom que se diga, e do óbvio que se constata, forjemos a via, pacífica, possível;

5) E quem surge limpa a sola na umidade restante, do que antes foi poça, ressurgindo pântano;

6) 22:06 - Velha abre janelas.
 
 
 

ESTOU/ESTÁ

Está
A doze graus
Da nascente impossível
O esmo sou
Contando milênios
Do quase segundo

Fica
Não fica

Não rime
Alma com falta!

Prossigo
Prossiga