Perdeu! Perdeu!

Jorge Furtado

jfurtado@portoweb.com.br

Quem inventa a língua é o cidadão comum, anônimo, sem cachê e quase sempre sem se dar conta. De tempos em tempos alguém usa uma palavra ou expressão nova que, por alguma qualidade, se espalha e vira língua, com direito a classificação gramatical e lugar no dicionário. O novo Houaiss registra a data em que cada palavra apareceu pela primeira vez por escrito, o que os lexicólogos chamam de “datação”. As palavras mais antigas ainda em uso em português são “pomar” e “torto”, as duas do ano de 803. Isso significa que se você encontrasse um português em 803 a única coisa que conseguiria dizer para ele é que o pomar está torto, o que talvez não fosse muito útil. As palavras mais recentes, como “ministeriável”, “motobói”, “terceirizar” e “videoquê” são do século XX e, pensando bem, dizem muito sobre nossa época.

Muitas palavras antigas ganham novos significados, inflexões, parcerias, fica difícil dizer quem inventou o quê. Um exemplo: a expressão “ah, eu tô maluco” surgiu nos bailes funk do Rio em janeiro de 97 e se espalhou pelo país. Jorge da Rocha, 22 anos, camelô em Madureira, subiu no palco durante um baile e cantou “ah, eu tô maluco” no ritmo da música. A dupla de compositores Japurá da Paz e Washington da Costa gravou o grito do cara e transformou em música. “Ah” e “eu” são do século XIII, “maluco” existe desde 1873 e “tô” é de 1899, mas “Ah, eu tô maluco!” só tem cinco anos de uso. O sucesso da expressão se deve, me parece, à simetria no uso das vogais a-u-o em “ah, eu tô” e “ma-lu-co”, é um “bracelete de encantamentos vocais” (1). Tente gritar (aqui não, por favor) “ei, eu tô biruta” e veja como não tem graça nenhuma.

Ainda não há registros de expressões surgidas no século XXI mas a minha primeira candidata é “Perdeu! Perdeu!”, uma convenção entre beligerantes para capitulação. Usa-se como “renda-se, biltre!” ou “te acalma, animal!”. É mais uma expressão nascida na periferia carioca, na guerra entre soldados da polícia e do tráfico. “Perdeu! Perdeu!”, que quase sempre vem reforçada pelo apontar de uma arma ao ouvinte, significa isso mesmo, que o cara perdeu, é melhor admitir, chega, não adianta espernear. Também pode ser usada sem armas, por exemplo, pelo Lula falando ao Serra ou a qualquer defensor do deus-mercado, pelo Rigotto aos petistas gaúchos, ou ainda pelo Danrley ao torcedor colorado que tentou agredi-lo depois do último Grenal. A quem escuta um “Perdeu! Perdeu!” de qualquer um que não seja o Ibope cabe reconhecer a derrota, largar as armas ou enrolar as bandeiras e ir para casa tomar um banho frio e pensar na vida. As derrotas são quase sempre sofridas e sempre mais educativas que as vitórias. Basta ver as fotos do Lula em 1989 para chegar-se a conclusão óbvia de que ele nunca poderia ser presidente com aquele cabelo e usando aquele tipo de terno. Hoje, pensando bem, foi até bom eleger o Collor e ter o prazer de mandá-lo para casa mais cedo. Democracia, como a língua, se constrói em uso.
 

(1) “Cada som evoca um encantamento. Uma palavra é um bracelete de encantamentos vocais”. Murray Schafer, O Ouvido Pensante, ed. UNESP, São Paulo, 1991.