Das contra-indicações da carne de porco

Laís Chaffe

chaffe@terra.com.br


A marca registrada do senador Francisco Dias Pereira sempre fora a integridade, regada a altas doses de coerência. Era um homem de princípios rígidos, todos fundamentados por um inquestionável altruísmo. Nem mesmo a convivência de anos com outros exemplares da raça política havia sido suficiente para mover suas verdades de pedra. Até o dia daquele jantar...

Seus amigos mais chegados juram que a culpa foi das costeletas de porco. FDP, como ficou conhecido, nunca ingeria carne suína. Muito colesterol, lembrava. Mas o motivo determinante para a abstenção ele omitia: Êta animal sujo. Era o pensamento imediato quando observava os demais congressistas se lambuzando com o bicho, todos muito à vontade.

Para desespero de seus admiradores (e alívio dos que consideravam algumas convicções sinônimos de teimosia), naquele jantar FDP resolveu provar as costeletas. E comeu até passar mal. A carne estava demasiadamente gorda, analisaram alguns. O senador saiu de lá engraxado. Depois disso, nunca mais foi o mesmo.

Os primeiros sintomas apareceram em casa, quando tirou os sapatos e as meias. FDP simplesmente não conseguia ficar em pé: deslizava no parquê do quarto, resvalava no mármore do banheiro. Exageraram na cera, explicou. A mulher não engoliu a desculpa. Por que isso só acontecia quando ele estava de pés descalços? Seria mais lógico escorregar de meias. E por que ela conseguia se manterem pé, seja de sapatos, de meias ou sem eles? O marido não soube responder e, pela primeira vez em quase trinta anos de casamento, saiu pela tangente da tangente. Por via das dúvidas, nunca mais andou sem meias, nem mesmo em casa.

Em seguida, houve o episódio do Congresso. Um parlamentar amigo seu tropeçou em meio a uma discussão mais violenta. FDP estendeu a mão para ajudá-lo, mas só piorou as coisas:

— Fernando Dias deve estar usando algum creme muito oleoso contra mãos ressecadas — tentaram justificar seus assessores ao outro senador, que teve a bacia quebrada com o tombo.

Logo depois, aconteceu quase a mesma coisa com um repórter. Terminada a entrevista, FDP foi cumprimentá-lo, e o jovem caiu. Em menos de uma semana, o senador havia derrubado um colega e um jornalista. Muitos repórteres ainda cairiam depois de entrevistá-lo. E as pessoas começaram a ficar com medo. Ninguém mais queria apertar sua mão.

Desesperado, tentava usar água quase fervendo para resolver o problema, mas não adiantava, pelo contrário: notou que a água tornava sua pele ainda mais resvalante, a ponto de espumar um pouco na hora da lavagem. Quando havia vento, era até bonito. Lindas bolhas saíam flutuando pelo banheiro de FDP. Temendo se esvair em espuma, o senador nunca mais lavou as mãos – hábito que ele tinha passado a adorar desde o dia das costeletas. Também não pôde mais tomar banho.

— Êta animal sujo — dizia a camareira.

Para driblar o problema, começou a usar luvas. Sempre de luvas, sempre de meias. As visitas ao sul eram um alívio, pois o frio do inverno gaúcho era uma excelente desculpa para o hábito. Mas em pleno Rio de Janeiro, e em dezembro, ficava difícil dar explicações.

Pois é, o pessoal cobrava. E não eram só os adversários políticos. Seu próprio eleitorado queria entender a razão das mudanças. FDP tentava explicar a transformação de suas verdades de pedra em outras de lycra citando Mario Quintana: que eu tenha um juízo ab-eterno/ e sempre a mesma opinião?/ mas por que devo suar no inverno/ só porque o fiz no verão?

O problema é que o senador estava usando luvas em pleno verão. Logo ele, que nunca as usara no inverno. Os críticos não perdoavam. FDP, antes um homem de modos impressionistas, passou a perder o controle. Em um discurso explosivo, sua indignação era tanta que ele começou a salivar. E a saliva em excesso teve em sua boca o mesmo efeito da água quente nas mãos: fez espuma. Aquilo pegou mal. No dia seguinte, o país inteiro comentava que o senador Francisco Dias Pereira tinha se comportado como um cão raivoso.

Em casa, as coisas eram ainda piores. Sim, porque havia as meias. Podia estar fazendo quarenta graus à sombra, mas ele não as tirava. Mesmo de cuecas, na cama, não tirava as meias. Mesmo sem cuecas não as tirava. O resultado é que o senador passou a ficar cada vez menos sem cuecas naquela cama. E não foi só por causa das meias. A mulher também estava farta de todo o resto. Da última vez que tentara abraçá-lo, FDP fora tão escorregadio que ela precisou se apoiar na parede para evitar a queda.

Os filhos adolescentes eram os mais atingidos. Quando tentavam se aproximar, o senador deslizava pela casa. Se começavam alguma conversa mais séria, nunca terminavam. FDP não conseguia ficar sentado, resvalando pelo sofá. Qualquer contato físico era impossível.

Foi nessa época que a mulher teve a grande idéia, que salvou não apenas a família do senador, mas o país inteiro. Depois de ir a uma cartomante, ela entrou em contato com alguns adversários políticos que a ajudaram na tarefa. Aproveitaram o sono do homem para encaixotá-lo. E o venderam para uma fábrica de sabão.

— Era um cachorro, mesmo — confidenciava a mulher às amigas. Somente para os mais íntimos ela revelava o teor das previsões da cartomante. Se não tivesse agido, FDP ainda seria ministro da Fazenda e chegaria à Presidência da República. Por duas vezes. E os efeitos das costeletas de porco se agravariam progressivamente.