Por que perdemos e por que ganhamos?

Jorge Furtado

jfurtado@portowebcom.br




“ (...) o senhor Palomar não consegue dizer coisa alguma. Se às vezes tenta intervir numa discussão, percebe que todos estão por demais inflamados nas teses que sustentam para dar atenção àquilo que ele está procurando esclarecer a si mesmo”. Italo Calvino, “Do relacionar-se com os jovens”.
 

Nota: Terminei de escrever este texto na segunda-feira pós-eleição (28/10). Desde então meia dúzia de textos exatamente sobre o mesmo assunto foram publicados todos os dias. Engavetei o meu. Reli agora e mando para o Não, que também serve para isso, desengavetar textos históricos. Alguém ainda lembra das eleições?

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Por que perdemos?

Nos últimos três anos, durante o governo do PT, a economia gaúcha cresceu 13 vezes mais que nos quatro anos do governo anterior. E 62% mais que a economia brasileira. A renda per capita dos gaúchos cresceu 7,1%, 2,4 vezes a mais que a do Brasil. (No governo anterior nossa renda per capita diminuiu 3,9%.) No governo do PT a agricultura cresceu 5 vezes mais que no governo anterior e bateu seu recorde de produção. O desemprego diminuiu, a região metropolitana de Porto Alegre tem hoje a menor taxa de desemprego do Brasil. Entre 1999 e 2002 o Brasil assistiu 93 assassinatos em conflitos de terra, nenhum deles no Rio Grande do Sul. Porto Alegre, prefeitura do PT há 14 anos, está na 21ª colocação em número de homicídios, com uma queda de 32% nos últimos 3 anos. O Rio Grande do Sul registra a menor taxa de mortalidade infantil do país, o melhor sistema de vigilância em saúde pública, o menor tempo de espera na fila para transplantes e governo do PT foi o primeiro a aplicar acima dos 10% do orçamento em saúde. Temos o maior salário mínimo do país, os melhores índices de alfabetização e a maior expectativa de vida. As fontes destes dados são o IBGE, os Ministérios da Saúde e da Justiça, o Dieese, a FEE. Os números não foram contestados na campanha eleitoral. O estado cresce, o emprego cresce, a renda aumenta, o homicídios diminuem na cidade e há paz no campo.

A pergunta é: se tudo isso é verdade, e parece ser, porque perdemos a eleição no Rio Grande do Sul? A primeira hipótese é que a maioria da população não sabe disso e perdemos por falta de comunicação. A segunda é que a população não acredita nisso e perdemos por falta de credibilidade. A terceira é que isso tudo pouco importa. Tendo a acreditar que as três hipóteses estão certas.

Perdemos porque não conseguimos comunicar à sociedade os bons resultados do governo. É claro que essa comunicação deveria acontecer durante os quatro anos e não apenas nos poucos dias de campanha. Sempre poderemos argumentar que a mídia jogou contra e é verdade. Mas a mídia também jogou contra em 98 e ganhamos. A diferença é que em 98, quando falávamos sobre o que poderia ser feito, exercitávamos o discurso sobre o imaginário, o ideal, o possível. Em 2002 o imaginário mudou de time. O eleitor disse não à realidade conhecida repudiando fortemente o governo Britto: sua votação caiu (comparando-se os primeiros turnos) de 46,4% para 12,3%. (Talvez o aspecto mais positivo da eleição no estado tenha sido a derrota do grupo de Britto. O eleitorado gaúcho andou para a direita, mas nem tanto.) O eleitor disse não à realidade reprovando também (ainda que em grau muito menor) o governo do PT: Olívio teve 45,92% dos votos no primeiro turno de 1998, Tarso teve 37,2% (perdemos pouco mais de 8%). Olívio teve 50,78% dos votos no segundo turno, Tarso teve 47,3%, perdemos 3,48% dos eleitores. Imaginar o desempenho de Olívio candidato à reeleição em comparação com o desempenho de Tarso é pura especulação, hipótese contrária ao fato, mas o anti-petismo, acentuado durante o governo Olívio, sugere que o resultado eleitoral de uma candidatura à reeleição seria ainda pior.

O eleitor, mais uma vez, disse sim ao imaginário votando em Rigotto (41,2% no primeiro turno, 52,7% no segundo). Se a imagem que se procurou construir de Tarso foi a de não ser o Britto mas também não ser o Olívio, Rigotto tinha a vantagem adicional de também não ser PT. Sobre ele o que quase todos sabem é que pouco se sabe. E este é, estranhamente, o seu grande mérito. Germano Rigotto não se elegeu prefeito em sua cidade, Caxias do Sul, e chega ao governo do estado sem dizer quase nada de concreto, apenas falando em união, paz, amor, rimando paixão com coração e prometendo um posto de saúde por quilômetro.

Perdemos credibilidade porque vendemos, na campanha anterior, a idéia de que nosso governo seria melhor do que foi (ou, quem sabe, do que poderia ser). Exemplos: a criação de 100 mil empregos com a Bolsa Primeiro Emprego (foram 20 mil), o fim dos pedágios (continuaram), o aumento aos professores (foi pequeno ou menor que o prometido), a distribuição de 100 mil cestas básicas (nem eu sei quantas foram, se foram), a recuperação da metade sul do estado, etc. Perdemos credibilidade porque vendemos a falsa idéia de que só há corrupção nos partidos e governos de nossos adversários ou, pior, que todos os nossos adversários são corruptos. E de que não há corrupção em nossos governos. Ou porque não soubemos vender a idéia, verdadeira, de que há corrupção em qualquer estrutura de poder, mas que o jeito do PT de fazer política, com o máximo de transparência, diminui a corrupção.

A vitória de Olívio em 1998 se explica pelo trabalho do PT em Porto Alegre, pelo apoio do PDT, pelo descontentamento dos produtores rurais com o governo Britto e pela desconfiança geral da existência de um concubinato entre governo estadual e grandes grupos econômicos. Os três últimos fatos foram novidade e fizeram a diferença: Olívio, que em 1994 tinha perdido por 4%, em 1998 ganhou por 1%. Em quatro anos de governo perdemos o apoio do PDT e, pela imagem de intolerância e pelas expectativas não cumpridas, também de parte da sociedade. E não conquistamos apoio de quase ninguém.

Perdemos também porque os números do governo pouco interessam. Ou interessam apenas quando são traduzidos em imagens. Que imagens produzimos em quatro anos? O terreno vazio da ex-futura Ford e um relógio de plástico em chamas. O rompimento com o PDT, que desembocou na CPI da Segurança, reforçou a idéia de isolamento em relação a sociedade. A diminuição de gastos em publicidade (uma promessa de campanha cumprida à risca) diminuiu em muito a visibilidade das ações de governo e reforçou a idéia de isolamento. Argumenta-se que não houve isolamento, que mais de um milhão de gaúchos estiveram nas reuniões do Orçamento Participativo. Este número, se verdadeiro, faz lembrar que mais de 10 milhões de gaúchos não participaram das reuniões do O.P. E não participaram porque não querem, ou não têm tempo, ou não ficaram sabendo, ou não acreditam no processo, ou acham que elegeram representantes exatamente para não ter que ir a reuniões, não importa. Estes 10 milhões lêem jornais, ouvem rádio, assistem televisão, elegem prefeitos, deputados estaduais e federais e senadores. E voltaram às urnas em 2002. A relação direta governo-população via O.P. é, para dizer o mínimo, insuficiente.

Perdemos porque o eleitor deixou claro que não quer a política como mais uma fonte de conflitos e agressões. Quem bateu, perdeu. O fato é que em quatro anos de governo o PT virou, para mais gente, sinônimo de arrogância e prepotência. Na disputa pelo imaginário, perdemos pontos. Poucos, mas o bastante para alterar em alguns graus a balança eleitoral: perdemos por pouco (4%) em 1994, ganhamos por pouco (1%) em 1998; perdemos por pouco (5%) em 2002.

A campanha de 2006 começa agora. É fundamental que o PT registre e divulgue (apontando as fontes) os resultados dos quatro anos do seu governo, o desempenho do estado em todas as áreas: economia, agricultura, segurança, saúde, emprego, educação, cultura, gastos em publicidade, exportações, crescimento industrial, etc. É com números (e, espero, reconquistando o direito à emoção) que faremos campanha daqui a quatro anos. E que faremos oposição, a partir de agora.

Por que ganhamos?

Acho que é mais fácil entender porque ganhamos. Ganhamos porque o coração manda o Brasil acreditar no Lula. Ganhamos porque o cérebro, que não é bobo, desconfia que Serra sorri à toa. Ganhamos porque amadurecemos nossa democracia e descobrimos que ela funciona em ciclos, quatro anos passam depressa, oito anos passam voando: Lula e o PT merecem uma chance.

Ganhamos porque Lula mudou um pouco, está mais sábio, mais tolerante. Mas não mudou no essencial: um claro amor pelo Brasil e pelos brasileiros. Ganhamos porque FHC, que tem índices razoáveis de aprovação e é um bom sujeito, decente, fez um governo medíocre. Podia ter sido pior mas, já que ele disse que era fácil governar o Brasil e trabalhou “no limite da ética” para se manter no cargo, devia ter sido melhor. O país está mais pobre, mais violento, o desemprego aumentou, as dívidas aumentaram (todas, inclusive a social). A corrupção apareceu mais, o que é bom, mas não diminuiu ou até aumentou. O desenvolvimento econômico foi o menor desde sempre enquanto os bancos ganham dinheiro como nunca. Os dez maiores bancos privados no Brasil lucraram juntos, em 1994, 3 bilhões de reais e pagaram 2,6 bilhões de imposto de renda; em 2001, os mesmos bancos lucraram 8,4 bilhões de reais mas pagaram apenas 1,29 bilhões. Resumindo: hoje ganham quase o triplo e pagam menos da metade. A injustiça social, nosso maior escândalo, mal se moveu, melhorou muito pouco e logo voltou a piorar. O índice de Gini, que mede a concentração de renda, está piorando. O Gini do Brasil no relatório de 2001 da ONU, com base em dados de 1997, era de 0,591 (o índice varia de 0 a 1). No relatório de 2002 (base: 1998) aumentou para 0,607. Só três países muito pobres, na África, são mais injustos que o nosso: Serra Leoa, República Centro-Africana e Suazilândia.

O Brasil sempre viveu, desde a fundação, do trabalho escravo. Ele foi substituído na república pelo salário mínimo, ou menor que o mínimo, e pelo desemprego, que cresce. O Brasil sempre foi governado pela elite econômica: nobres, grandes proprietários, generais, representantes da indústria, da mídia, dos bancos. Ganhamos porque o país acredita que chegou a hora de ser governado por alguém que vai pensar também com o coração. Alguém que não vai esquecer que os números em sua mesa representam pessoas que existem. Alguém que já passou fome. Um retirante, que fugiu da miséria para a cidade grande. Que foi engraxate, ficou sem emprego, e foi preso por lutar por melhores salários. Alguém que estudou durante o dia enquanto trabalhava à noite. E perdeu um dedo numa máquina operada por um colega exausto. Alguém que perdeu a mulher e o filho num hospital público. E casou com a viúva de um motorista de táxi assassinado por um assaltante (ela estava grávida de quatro meses). Enfim, alguém que, ao contrário de todos os outros, sorridentes, bem formados e bem falantes, tem experiência para governar o Brasil. E cabeça. E coração.
 
Luis Inácio Lula da Silva, o trigésimo-sexto presidente do Brasil, nasceu em 1945. “Meu pai me registrou dia 6 de outubro... Na verdade, eu prefiro acreditar na memória de minha mãe, que diz que eu nasci no dia 27”. Dia 6 de outubro foi o dia do primeiro turno, a vitória que não houve. A mãe de Lula certamente tem razão, o dia foi ontem, 27 de outubro. Feliz aniversário, Lula. De presente, você ganha a esperança de um país melhor. Que Deus exista e te abençoe.