Queimando

Adriana Amaral

adriamaral@yahoo.com
 

“Sometimes you sulk
Sometimes you burn”
Thom Yorke - Radiohead


 
A febre continuava lá, mesmo após 48 horas ela permanecia afetando o pensamento, molhando a blusa vermelha de seda e causando uma  dor que apertava a garganta e descia esôfago abaixo, queimando, queimando, queimando e era pior do que o inferno. Já estivera nele bem mais  vezes do que imaginavam.

Sentada na banqueta de couro, mal conseguia distingüir entre os corpos jogados no tapete de lã de ovelha, pelego de verdade tinha dito o vendedor em um espanhol de última categoria na fronteira com o Uruguai. Ovelhinhas, um rebanho de fracos como tantos outros com os quais  já havia cruzado em uma dessas noites aparentemente sem sentido. São três, agora já podia contar. Dois homens e uma mulher. O mais forte deles, um árabe, caíra logo após o absinto, hoje em dia não se faz mais absinto como no tempo dos impressionistas, nem se pode chamar aquele  efervescente diluído de absinto, seria desonrar a memória do Moulin Rouge e das festas na casa de Manet. Agora eram outros tempos. Menos  glamourosos, mais animalescos, que ironia.

Todos andavam em busca da realidade perdida, atrás de pequenos momentos de subversão à produção, criando laços efêmeros entre  desconhecidos, desencantados com a perda dos referenciais, com a vertigem causada pelo excesso de informação e de luz. A luz, sim, lembrara  que sua resistência às luzes artificiais era cada dia maior.

Ela trazia aquele lado escuro, sombrio, que borrava o grande abajur no qual a modernidade havia se transformado. E era por isso que eles a  admiravam, a rondavam feito pequenos insetos em torno da carniça. Era um convite ao lado negro da força, como diria o Imperador de Star Wars. A loirinha, que de princesa Léia não tinha nada e estava mais pra Pamela Anderson, entrou na brincadeirinha rapidamente, trouxe junto o namorado de pele branca e cabelos escuros. O árabe completamente chapado, deitado na cama de lençóis acinzentados esperava sua vez sorrindo enquanto a loira e o namoradinho com cara de lutador de jiu-jitsu se chupavam em um 69 longo e aparentemente tedioso. Ela  percebeu que ao ouvir o barulho do zíper da jaqueta abrindo e o saltar dos peitos em um soutien meia-taça preto, a loira, como era mesmo o  nome?, acho que era Bárbara, mas não faz diferença mesmo, é apenas mais um nome e continuaria ainda sendo a mesma coisa se ele fosse alterado. Bárbara mudou a direção do olhar e voltou-se para Ela, com a língua para fora à espera de um beijo. Ela aproximou-se e arrancou-a dos braços do namorado, beijando-a como se fosse a última noite na Terra. O lutador de jiu-jitsu armou-se com seu ridículo pênis e um sorriso torto de ecstasy e penetrou a Barbie, enquanto as duas mordiscavam-se e arravanham-se no chão. Após alguns instantes, deu-se por vencido e  deitou-se, virando de bruços para o árabe, que em sua chapadeira típica chamava o menino de Lúcia. O bad boy sequer sangrava, apenas gemia de prazer.

Nesse pequeno intervalo, Ela não hesitou e em sua sede ensadecida agarrou-se ao pescoço da loira com toda voracidade. Cravou-lhe os dois dentes na jugular, que começou a dar sinais de que ali havia uma vida, completamente desprovida de construções lógicas e de  pensamentos mais elaborados do que a cor do esmalte da estação, mas mesmo assim, uma vida. As linhas guias de um mapa, era o que formava todo aquele sangue fino escorrendo por entre os seios, o colo e o umbigo de Bárbara. E quanto mais ele jorrava, mais Ela bebia e mais Ela pensava naqueles anos tediosos e repetidos no qual cada noite era um eterno retorno à noite anterior: uma volta pela cidade, um encontro casual, um pouco de sexo e sangue, muito sangue - quem sabe não fosse melhor guardar um pouco na geladeira para um período de lei seca. O sangue ralinho e ainda quente da moça mal preenchera sua garganta e a queimação já dava sinais de que iria voltar.

Os dois rapazes não acreditavam na cena que acabaram de presenciar. Riam compulsivamente enquanto Ela os amarrava. O punhal de prata  encontrava-se em cima da mesa de cabeceira. Ela fitava aquele brilho envelhecido enquanto dançava. O árabe e o lutador mauricinho pediam mais e mais ela rebolava, ora na boca de um, ora na de outro. Suas línguas exploravam suas entranhas e mesmo assim sentia-se vazia.

- Hora de brincar meninos! – sorriu ela pegando o punhal com a mão direita e cortando as alças do sutiã e a meia sete oitavos.  Agora só restava a calcinha. Com as mãos e os pés atados, restava à dupla mordê-la até despedaçá-la.

Aquele pequeno joguinho de sedução os fazia entrar em um delirium tremens. Para Ela contudo não passava de mais uma operação mecânica do tipo apertar um parafuso. Era isso, havia se transformado na operária padrão do amor & morte. Contudo, uma aposentadoria seria a  morte. Ah, mas será que para os humanos também não era? Dava até vontade de parar tudo e ficar em um diálogo ininteligível tipo filme francês em que no meio da cena de sexo parece congelar para os protagonistas discutirem o sentido da existência humana ou quem sabe dava para pelo menos ligar para o tele-pizza... fazia tanto tempo que não saboreava uma pizza... ainda lembrava do gosto do pão e do queijo tocando o céu de sua boca. Fora Marco quem lhe dera o primeiro pedaço, jamais esqueceria, mas deixemos aquele motherfucker em paz, seus ossos nem pó mais devem ser a essa altura do campeonato. Fazia tanto tempo que não comia... décadas...

Será que as línguas deles sentiam o gelo trepidante de sua pele? Será que gostavam do líquido de odor tão forte? Não era preciso cheirar muito para senti-lo tão forte, tão vivo, impregnado de desejos indizíveis. O árabe possuía o sangue quente, característico dos mouros, um gosto  quase salgado e forte feito pimenta. Pele de primeira. Já o playboy tinha aquele cheirinho de branquelo azedo. Por anos e anos ela tinha apreciado aquela sobriedade, aquela contenção germânica. Mas embaixo da frieza jazia um coração e um membro pulsante, fervente, delirante. Escondiam suas pequenas perversões cotidianas até o ponto em que enlouqueciam. Tênue era a linha entre o pecado e a perdição. Mas que papo moralista é esse Dela? Logo alguém que se julga acima da moral devido às suas escolhas privadas.

Sugá-los foi ainda mais fácil do que imaginara. Tudo começa com um boquete. Os anatomistas se enganaram quanto aos homens, o cérebro  deles está localizado no membro. Enquanto deleitam-se não percebem as primeiras gotas de sangue sendo engolidas e, quando se dão conta, é tarde demais, a morte lhes traz o alívio imediato.

Após o término da sessãozinha básica de sexo e janta Ela só tinha que descansar... ali estavam as ovelhas do seu rebanho, corpos sem vida,  sugados em poucos instantes, contudo era para isso que haviam sido preparadas. Foram ao abatedouro por vontade própria, ou melhor, por  falta de vontade, pensamentos fracos. Sem sentimentos de culpa, sem tristezas, são apenas humanos, nada que valha à pena ou faça sentido.

Enquanto isso Ela veste-se e vai embora. Alguém tem que pagar a conta do motel, mas limpeza Ela não faz, não foi pra isso que estudou  tantos anos. Além do mais precisa recolher-se, pois sabe que queimará novamente em algumas horas.