"POR QUE NÓS?"
Samia Nakhoul
Ali Ismael Abbas estava dormindo profundamente quando a guerra irrompeu na sua curta vida, sob a forma de um míssil que caiu sobre a casa de sua família. O menino, que tem 12 anos e agora se tornou órfão, sofreu queimaduras graves e teve os dois braços arrancados.
"Era meia-noite quando o míssil caiu sobre nós", conta Ali Ismael, deitado num leito do hospital Kindi, em Bagdá. "O meu pai, a minha mãe e o meu irmão morreram. A minha mãe estava grávida de cinco meses". Ele prossegue o seu relato. "Os nossos vizinhos me tiraram de lá e me trouxeram para cá. Eu estava inconsciente". Uma tia, três primos e três outros parentes de sua família também foram mortos numa explosão que atingiu o bairro de Diala, na zona leste da capital, onde se encontram várias instalações militares.
"A nossa casa era miserável. Por que eles a bombardearam?", pergunta, ansioso, o menino, que está sendo velado por Djamila Abbas, uma outra tia. "A sra. poderia me ajudar a recuperar os meus braços?", pergunta o menino a esta repórter. "A sra. saberia me dizer se os médicos poderão me dar novos braços?", prossegue. Ele parece ter chegado ao cúmulo do sofrimento. "Se eu não recuperar as minhas mãos, vou me matar!".
Infelizmente, o destino de Ali não é um caso isolado. Nos corredores ressoam os gritos de muitos outros feridos. As ambulâncias têm afluído cada vez mais, numa movimentação incessante, desde que as forças americanas tomaram posição na periferia da capital.
Hospitais afogados
"Com os seus estoques de anestésicos e de analgésicos esgotados e uma redução drástica da mão-de-obra, o pessoal médico perdeu completamente o controle da situação, e não consegue mais dar conta da tarefa, que já é enorme e não pára de aumentar", explica o médico Osama Saleh Al-Douleini, um cirurgião ortopédico e também diretor-adjunto do hospital.
"Até agora, os hospitais possuíam os equipamentos e os remédios necessários para enfrentar as necessidades, mas eles acabaram sendo afogados pelo afluxo maciço de feridos", precisa, por sua vez, Roland Huguenin-Benjamin, o porta-voz do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICR). "No auge dos bombardeios, inúmeros feridos têm sido trazidos para cá, cerca de uma centena em média a cada hora", garante.
"Exerço há 25 anos e posso dizer que esta guerra é a pior que eu já tenha visto em termos de quantidade de vítimas e de ferimentos mortais", explica Osama Al-Douleini, que já vivenciou a "primeira" guerra do Golfo, em 1991, e o conflito Irã-Iraque, entre 1980 e 1988. "Estamos diante de uma catástrofe que se deve, sobretudo, ao fato de eles terem alvejado uma grande quantidade de civis", prossegue.
"Esta guerra é bem mais destruidora do que todas as precedentes; no passado, as armas pareciam causar sobretudo casos de invalidez; agora, elas matam bem mais", confirma Sadek Al-Moukhtar, um outro médico. "Antes da guerra, eu não considerava a América como o meu inimigo. Mas hoje é muito diferente. A guerra deveria ser conduzida contra os militares", prossegue. Ora, "a América está matando civis".
Por sua vez, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha considerou "muito crítica" a situação em Bagdá, neste domingo (6). Enquanto isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tentava organizar, a partir de Amã (na Jordânia), a entrega em regime de urgência de estoques de 54 remédios na capital iraquiana.
Samia Nakhoul é jornalista de origem palestina, correspondente da agência Reuters em Bagdá. Este artigo foi originalmente publicado no jornal francês Le Monde, 08/04/2003, e está disponível em http://www.lemonde.fr/article/0,5987,3462--315843-VT,00.html. Tradução: Jean-Yves de Neufville