A HERANÇA DE BARRIONUEVO
(COM AJUDA DO PT)
por Marco Antonio Schuster

 
Dez anos, dez meses e 27 dias foi o tempo que José Barrionuevo assinou a coluna Página 10 na Zero Hora. Se acrescentar os dias extras dos três anos bissextos que houve entre sua estréia em  23 de janeiro de 1993 e a despedida em 20 de dezembro de 2003, deve fechar onze meses. Ele não deixou apenas uma página para Rosane Oliveira preencher, mas uma coluna com características específicas e importantes leitores cativos. Ele deixou uma história no jornalismo gaúcho, e não foi construída só por ele.

Barrionuevo é um tema interessante para a política e o jornalismo e me motiva a fazer um balanço despretensioso e curto ainda no período em que a poeira ainda não baixou na RBS.

A Página 10 culminou um processo de construção do colunismo político no Estado, iniciado em 1959 com Wilson Muller, o primeiro a assinar um pequeno espaço no finado Diário de Notícias chamado Raio X : eram três tópicos curtos sobre política. O mesmo jornal teve, durante alguns meses,  coisa parecida, em 1952, chamada Conta-Gotas, feita pela redação e assinada sob o pseudônimo de Spectator. Tudo isso, e mais o que estiver nas linhas seguintes deste histórico, descobri na pesquisa da minha tese de mestrado, que tratou da relação da Página 10 com o PT gaúcho. Depois de Wilson Müller, vieram Jotaká, Hilário Honório, JC Terlera e muitos outros repetindo este estilo de textos curtos. Uma exceção: Carlos Fehlberg, na Zero Hora, durante muito tempo escreveu uma coluna de texto longo, tratando de um só assunto. Cada um deu um tipo de contribuição: títulos nos tópicos, ilustrações, citações, etc. Barrio juntou tudo isso na Zero Hora temperado pela sua contribuição: o de radicalizar a polêmica e privilegiar a informação de bastidores.

Desde o início, os colunistas políticos apresentaram-se como neutros, imparciais e apartidários, dando informações sem opinar. Só que é difícil escrever sem dar opinião. O golpe de 64 constrangeu ainda mais a opinião, mas não impediu que a coluna política se consolidasse, desde que concordasse com o poder, ou não incomodasse muito. Barrionuevo tornou-se colunista já no fim da ditadura, em 1985, num jornal do grupo Sinos, chamado O Estado, que durou 14 dias. Foi no Correio do Povo,  a partir de 1987, que José Barrionuevo começou a consolidar-se como cronista político referencial do Estado.

Uma histórica polêmica deste período foi com o deputado estadual do PT, Raul Pont. Como Barrionuevo ainda era funcionário da Assembléia Legislativa, o deputado  fez um discurso na tribuna combatendo este duplo emprego. Barrionuevo demitiu-se da Assembléia.

Isso que a coluna era apenas um rodapé, como todas as colunas do Correio.

A ida para a Zero Hora foi mais que uma transferência de emprego, pois representava o desejo que o jornal tinha de mostrar que estava mudando. Ele dispensava dois analistas políticos: Carlos Fehlberg, que fora diretor do jornal e assessor de imprensa de um governo militar e J.C. Terlera, que escrevia a coluna na Assembléia Legislativa, e não na redação do jornal.

Barrionuevo estreava ocupando uma página inteira do jornal, como só havia acontecido antes com Carlos Fehlberg no finado Jornal do Dia (ali,  redigia em tópicos) e com um nome especial, lembrando excelência. (nota 10)

Na Página 10, Barrionuevo utilizou todos os recursos disponíveis: ilustrações, fotos, citações, informações de bastidores, ironias e posicionamento político. Perfila-se entre os defensores da liberdade de mercado, do Estado mínimo, da livre iniciativa e da democracia como instituída hoje. Naturalmente, os defensores destas idéias têm espaços. Mas também têm seus opositores.

Não é somente a noção de democracia e liberdade de expressão que norteiou esta postura. Mas o interesse jornalístico de atender a todos, vender ao maior número de pessoas possível, determina que diferentes propostas sejam noticiadas, mesmo que com espaços diferenciados. Ele estava construindo uma nova arena política no Rio Grande do Sul.

Cabia à política aceitar ou não esta proposta. Aceitou. São tantas as razões para este acordo que daria outro texto. Para mim, o principal deles é que esta é uma sociedade de comunicação, de mídia, e somente ações privadas e restritas se fazem sem ela.

A Página 10 não é a arena decisiva da política - esta é a urna - mas é a arena da formulação e disputa de conceitos, da circulação da informação privilegiada, dos ataques e dos desmentidos. Uma espécie de ágora moderna. Não foi ele quem inventou isso, nem sua coluna é única que faz isso. Mas foi através dela que a sociedade gaúcha percebeu a incidência dos meios de comunicação na política.

Quem mais se  rebelou com esta nova arena, mais discutiu, mais debateu e mais teve espaços na Página 10 foi o PT, o partido que mais expressava - como representação social - as idéias diferentes das do colunista. Uma das conseqüências disso é que o PT tornou-se o partido mais citado e ajudou, mesmo que involuntariamente, a construir este espaço.

A formação do PT - sindicalistas, grupos clandestinos marxistas, comunidades de base, movimentos sociais, intelectuais, etc - é assunto para outro texto. É suficiente saber esta sua variedade original e que todo petista adora uma polêmica. Barrionuevo propunha polêmica, provocava e o PT respondia.

Entender o PT foi um aprendizado, imagino que o mais duro, para o colunista. A herança que o partido carregava dificultou este aprendizado. Grupos obrigados à clandestinidade acostumaram-se a divulgar textos secretamente, e somente propagandear a resolução final.

A conjunção disso prejudicou o trabalho inicial de Barrionuevo, que aplicava ao PT o mesmo método de abordagem utilizado aos outros partidos: acompanhar os movimentos de parlamentares e líderes reconhecidos.

Mas falar do PT rendia. Os militantes do partido liam a coluna e os mais importantes contestavam afirmações ou mandavam informações.  Mas a construção da imagem do PT na Página 10 era de acordo com a visão política de Barrionuevo. As discussões internas eram tratadas como "excesso de reuniões", as disputas entre os grupos eram "brigas acirradas". Assim, o PT na Página 10 era um partido repleto de grupos, disputas, contradições, mas com alto grau de democracia, férrea disciplina e muito mal-humorado.

O PT contribuiu com esta imagem, no tom com que às vezes respondia à coluna. Ajudou também a construir a imagem de Barrionuevo. A coluna passou a ser não somente um espaço para as respostas aos tópicos desagradáveis, mas também um espaço para divulgar informações de interesse do partido ou de grupos e personalidades. Muita disputa interna foi travada pela Página 10, muita crítica entre correligionários circulou nela.

Assim, tanto a Página 10 soube descobrir informantes no PT quanto o PT descobriu na Página 10, um espaço em que por vezes lhe era prejudicial, uma maneira de falar com as bases. Neste particular, mais que ao partido, o espaço foi útil para as tendências.

Esta espécie de amor e ódio recíproco entre partido e colunista atingiu o acirramento máximo em 1998, quando houve processos e direitos de respostas da campanha eleitoral. A chegada do partido ao governo do Estado coincidiu com mudanças de atitudes. As desavenças com o governo geraram processos e corte de relacionamentos. Já o Partido simplesmente passou a ignorar informações de bastidores, pois a direção descobriu que muitas das informações contestáveis partiam de militantes.

O colunista não desistiu e buscou manter a centralidade do PT até o fim. Sua crítica mais severa ao governo Rigotto baseou-se na homenagem que Otávio Germano faz a Paulo Bisol, na inauguração da foto do ex-secretário de Segurança e desafeto. Mas as críticas, de mais de um dia, renderam apenas respostas educadas do secretário e, aparentemente, nenhuma crise no governo.

Talvez a página já não tenha o mesmo ímpeto do final do século 20, o que pode explicar a mudança de redator. Mas, de qualquer maneira, é uma página de leitura obrigatória de todos os políticos, líderes sindicais, líderes comunitários e sociais do Estado. Mandar uma boa nota para Barrionuevo, conseguir espaço na Página 10 são sonhos de 9 entre 10 políticos gaúchos. Rosane Oliveira herda isso, depois de quatro anos escrevendo uma coluna pequena e monotemática.

Ela já disse que seu estilo é diferente, tem sua história pessoal, mas não poderá desconhecer este legado. Barrionuevo foi o principal construtor da Página 10 que agora irá construir - quem serão os parceiros? - uma nova colunista política.
 

Marco Antonio F. Schuster - Jornalista
marcoschuster@portoweb.com.br
 
 



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