O VELHO TRUQUE...
por Carlos Badia
Música e tecnologia estão cada vez mais interligadas. E todo mundo consegue supor que a tecnologia facilitou muito a produção musical, mas não pode imaginar quanto. Desde o advento da gravação MIDI no final dos anos 80, ainda em uso, que utiliza seqüenciadores e timbres de teclados que simulam (sintetizam) sons de instrumentos de verdade, além dos próprios timbres ditos eletrônicos (sintetizados), a produção musical não só se tornou mais facilitada e simples, como ficou ao alcance de mais pessoas - e não necessariamente músicos ou instrumentistas. E este foi só o início de uma transformação que tem sido cada vez mais radical. A rapidez impressionante do desenvolvimento da informática tem acelerado com uma velocidade incrível o nível de sofisticação e qualidade dos softwares musicais, a ponto de certos home-studios (estúdios caseiros dentro de apenas um micro) atuais terem mais poder de fogo que a maioria dos pequenos e médios estúdios dos anos 70, 80 e até 90. Isto revolucionou totalmente o mercado de música em todos os seus campos de atuação, como em publicidade, na indústria fonográfica, no cinema, etc.
Para a indústria de equipamentos eletrônicos e de softwares, este mercado logo se tornou financeiramente muito atraente, e seu desenvolvimento tecnológico foi natural, tendo na música eletrônica - por sua natureza - um referencial óbvio. O surgimento dos DJs produtores e criadores de seus próprios "sons" também foi importante para que a indústria do software musical crescesse muito e, por conseqüência, tivesse também se orientado em fazer da facilidade de manuseio e da qualidade itens fundamentais. O domínio da tecnologia e dos softwares, a partir de então, passaram a ser determinantes nesta área, não bastando mais ter somente sensibilidade e talento musical.
Passamos assim a ter um quadro totalmente novo na produção: (1) a facilidade de manuseio dos aparelhos necessários (computadores, samplers, teclados, seqüenciadores, periféricos, etc); (2) a agilidade e rapidez no tempo de produção; (3) o aumento na qualidade do som (através do som digital)* ; (4) o fato de não haver mais a necessidade em ser músico para produzir música, o que é aparentemente uma contradição; (5) a exigência em se ter domínio sobre softwares musicais e tecnologia; (6) computadores mais baratos e acessíveis a mais pessoas; (7) o grande número de softwares musicais diversificados disponíveis no mercado; e finalmente (8) o aprimoramento constante e rápido dos softwares existentes e o permanente lançamento de novos produtos e softwares para a área.
Há um fenômeno em particular que alterou definitivamente a maneira de se produzir música: o sample ou "amostra" de som de um instrumento real em um arquivo de som (em formato ".wav" ou similar). Este sample pode ser gerado para (a) ser executado a partir do teclado (um som de baixo por exemplo), ou (b) pode ser estruturado como um looping (uma seqüência de notas ou de sons que, a partir do andamento da música, é possível de ser repetida infinitamente como uma célula musical cíclica). Podemos dizer que hoje há três maneiras de se produzir música em estúdio: ou (1) todos os instrumentos são tocados realmente, ou (2) todos os instrumentos são executados a partir de samples (amostras de som), instrumentos midi (de teclados ou módulos de som) e/ou loopings editados e estruturados na música (andamento e tom), ou ainda (3) na mistura das duas formas descritas acima (que é atualmente a forma mais utilizada).
Este desenvolvimento se sofisticou a tal ponto, que hoje dificilmente um leigo sabe distinguir, numa música, entre o que é tocado de verdade e o que foi sampleado, ou editado como looping. Porque os músicos e operadores podem saber distinguir um e outro? Simplesmente porque os samples e loopings que estão disponibilizados hoje no mercado são comprados por quase todos que trabalham com gravação digital. Assim, o que acontece é que quem utiliza estes loopings e samples tem facilidade em reconhecê-los dentro de uma música qualquer. Simplesmente porque já foram ouvidos e/ou utilizados. Hoje se pode comprar CDs de loopings e/ou samples de percussão (da África, do Brasil, do Caribe, etc), de baixos (podendo escolher até mesmo o som de um baixista famoso - Jaco Pastorius, Marcus Miller, etc), de bateria (dos mais variados bateristas e estilos de levadas, etc), de guitarra (com todos os tipos de riffs e estilos), de vozes, de efeitos sonoros (toda espécie de efeito sonoro), de sons de orquestra (com sons de todos os instrumentos da orquestra tradicional), de sons étnicos (usado muito em World Music, com sons normalmente orientais - Índia, Oriente Médio, etc) e por aí vamos...
Recentemente fui ser jurado em um concurso de curtas-metragens, onde foram julgados vários quesitos, inclusive melhor trilha original. Eram vários filmes e em pelo menos quatro deles pude reconhecer timbres e loopings deste tipo de CDs de samples. O resultado disto é que o compositor da trilha que pegou um ou outro looping e o anexou na sua "trilha original", pode amanhã ou depois ouvir o mesmo looping fazendo parte da trilha de um outro filme, de uma trilha comercial ou mesmo de uma música de disco. Evidentemente que o "reconhecimento" destes "áudios" por pessoas especializadas é restrito a um universo de poucas pessoas (músicos e operadores de áudio), ficando o restante do público (inclusive os profissionais da área áudio-visual) alheio a tudo isso.
Ao levantar este assunto, não tenho como objetivo censurar ou criticar; tampouco fazer uma espécie de denúncia sobre tal elemento musical moderno, mas tão somente introduzir este fato e ao mesmo tempo alertar para uma possível e provável "repetição" de idéias, ritmos, melodias e harmonias, como já tem acontecido. Sabe aquela sensação do "acho que já ouvi isto antes?". Pois é. Como tentei mostrar, ficou muito fácil hoje produzir uma música, não precisando nem ser músico para isto. Basta você ter o equipamento, uma sensibilidade musical forte, assim como uma boa noção rítmica que lhe permita fazer uma espécie de "colagem" de sons (loopings e samples) dentro de um software editor de música e som. Simples assim. Fácil assim. Daí o número tão grande de especialistas em informática atuando na área musical, sejam como produtores, sejam como DJs.
Se por um lado temos toda esta facilitação na produção de uma música, por outro lado uma coisa será sempre impossível de ser superada: não se inventou um software que faça sua música ser criativa e original. Para desespero de muitos, nem haverá. O que existe hoje é a possibilidade de você, sendo um excelente "colador" de loopings e samples, reunir elementos musicais de forma criativa e em alguns casos até original, e transformar isto em música, e ainda poder dizer que é sua. Mas isto tende a se esgotar logo, pela lógica. O que você pode ser, desta forma, é um criativo "colador", e se vender como músico e produtor, e trabalhar. E muito. E ficar famoso até, com certeza. Sim, você já pode ser um Produtor Musical!
Então, meus caros, ao ouvir uma trilha de cinema, de novela, de vídeo, de trilha publicitária, de jingle e mesmo de música de disco, você pode ter certeza que provavelmente estará ouvindo algo que na maioria dos casos vai estar misturando a técnica do uso de loopings e samples com instrumentos realmente tocados, e em raros casos você terá exclusivamente algo totalmente original e tocado. Como diria o Agente 86 é o "veeeeeeeelho truque" do CD de looping!
Carlos Badia
carlosbadia@carlosbadia.com
* não entrarei na discussão, mas é importante registrar que há uma certa celeuma sobre qual é a melhor: gravação digital ou gravação analógica de alta qualidade - cujos equipamentos são extremamente caros?
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