É SÓ
UM JEITO DE SER NÃO PRECISA
NINGUÉM ME ACOMPANHAR *giuseppe zani |
|
Boa parte do isolamento e do separatismo
gaúcho está calcado num histórico de fracassadas tentativas
de inserção econômica. Desde o fato de ter sido a última
fronteira a ser demarcada, passando pela falta de subsídios ou protecionismo
para o charque gaúcho frente a concorrência da produção
uruguaia, até o mais recente episódio a suscitar a questão
do pacto federativo, quando o então governador Olívio Dutra
depositou em juízo o pagamento da dívida do Estado com a
União (sim, naquele contexto de guerra fiscal entre os estados,
e da disputa pela instalação das montadoras de automóvel)
– são situações que colaboram para que o Estado se
sinta preterido na ordem nacional.
Nesse sentido, não surpreende certa postura auto-suficiente e, como conseqüência disso, um comportamento anômalo em termos mercadológicos. Nunca me esqueço quando me disseram que o Rio Grande do Sul era o único lugar do Brasil que a Pepsi vendia mais que a Coca-Cola – foi só então que entendi aquelas excursões que a gente fazia no colégio pra visitar a fábrica. Há o caso da Polar, cuja propaganda prega um produto NO EXPORT, configurando uma qualidade às avessas (ou à gaúcha): é boa porque não sai daqui, porque só existe aqui. E no entanto, a campanha surgiu depois que a fábrica foi comprada pela Ambev e se constatou que, apesar do enfoque bairrista, a cerveja não era a mais consumida, ocupando a terceira colocação no consumo dos gaúchos. Caso similar acontecia em relação à Ipiranga, empresa de distribuição de combustíveis. Há três ou quatro anos, ela despontava como líder nas pesquisas de preferência. No entanto, as pesquisas de vendas mostraram que preferência não era sinônimo de consumo. Pequenos equívocos desta ordem não são raros entre nós. Em parte por que durante muito tempo o folclore ocupou o lugar da história, principalmente no que diz respeito às origens do gaúcho. O folclore de certa forma não só recuperou, como reinventou o passado. De forma que a imagem mítica do gaúcho primevo, herói de bota, espora, bombacha e cavalo só aos poucos, e recentemente, foi sendo desfeita por estudos sérios que demonstravam, por exemplo, que o gaúcho só passou a usar bombacha depois da Guerra do Paraguai, que o gaúcho, conforme indicava a origem platina da palavra, não tinha nada de altivo, pelo contrário, era o vadio dos pampas, que era recrutado na caça do gado, para o contrabando de couro, etc. Lembro de quando ouvi essas explicações pela primeira vez numa entrevista que tive com o Nico Fagundes (folclorista gaúcho), já depois do seu acidente vascular, em que me contava a origem do gado no Rio Grande do Sul (pra quem não sabe, o gado daqui é tão europeu quanto a nossa ascendência portuguesa), e conseqüentemente do gaúcho. Tudo o que ele me dizia soava tão rocambolesco quanto esses filmes do Almodóvar: um caso de adultério e um sujeito que rouba trocentas cabeças de gado para levar ao Paraguai; depois os jesuítas que, de posse desse gado, constróem as Missões e ensinam as lidas do pastoreio aos índios; e por fim a destruição das construções jesuíticas pelos bandeirantes, após a retomada do trono português, tentando escravizar os índios e deixando o gado solto no pampa; a proliferação dos bovinos e a conseqüente inserção do Rio Grande do Sul na rota internacional do contrabando de couro. Tudo contado de um jeito fabuloso, com datas precisas e citações feitas de memória como se declamasse um poema, mas sempre entre sorrisos, como se estivesse segredando uma aventura pessoal. De modo que na hora eu não me importei com a falta de pormenores históricos e cheguei mesmo a pensar que raios, basta às coisas apenas fazerem sentido. No entanto, preciso dizer que não tenho muita certeza sobre o que disse até aqui, apenas que me foi bem contado. No fundo, verdades à parte, penso que vivemos sob a sombra de inúmeras histórias que ninguém mais conta: Há um muro na Av. Mauá que separa a cidade do rio pela ínfima possibilidade (há a estatística hiperbólica: “de 300 em 300 anos”) da cidade ser inundada. Há um silêncio por sobre o viaduto da Borges que não revela dos inúmeros apaixonados desiludidos que se suicidavam por ali. Há uma fraude de seguro por trás de um fantasmagórico navio encalhado na praia do Casino. Há o caso dos túneis subterrâneos que desde os tempos da Campanha da Legalidade fazem uma ligação secreta entre o Palácio Piratini e o Rio Guaíba. Há aquele sujeito que inexplicavelmente perdeu os olhos em algum lugar de Estância Velha. E também houve aquela noite em que eu descobri que os moinhos que dão nome ao bairro Moinhos de Vento, na verdade se localizavam pela Av. Independência e que, na altura da R. Barros Cassal, se transformaram em postos de tiro durante a resistência à invasão de Porto Alegre. Então, cada vez que eu passo naquela esquina, em frente ao Bambus, tenho a nítida sensação de que em algum lugar há alguém olhando por aqueles bêbados insones. Olho ao redor e sinto a falta de uma indicação qualquer e penso que toda cidade devia preservar suas ruínas. Imagino o turista que chega ao Estado: não se sabe porque veio. Em geral não sabe o que fazer nem aonde ir. Veio atrás do frio e, quem sabe, alguma neve. No entanto, o frio – assim como o pôr-do-sol de Porto Alegre – é uma dessas promessas míticas que nem sempre se realizam, principalmente porque depende de uma ciência que ainda não foi totalmente subjugada: a meteorologia. Este ano, por exemplo, teve gente que foi para o Festival de Gramado e sofreu um calorão senegalesco. O que frustra o turismo. Como se sabe, além de subsidiar países inteiros como a Espanha, o turismo é capaz de gerar uma grande quantidade de empregos. Nesse sentido, trazer as filmagens dos episódios finais da Casa das Sete Mulheres para o Estado seja uma das principais conquistas do Secretário Estadual de Cultura, bem como a gravação daquela novela Chocolate com Pimenta. No primeiro caso há a história, e, em ambos, as paisagens, nomes de novas cidades e um possível turismo que se anuncia. Sempre faltou-nos um Heródoto, um Marco Polo, alguém que traduza a nossa diferença. Mas há aquela história que o Luiz Antonio Assis Brasil conta de quando o Sérgio Faracco foi levar um livro seu na ABL e lá pelas tantas o Sarney veio lhe elogiar. Tinha achado ótimo, mas tinha uma ressalva, sentira falta de um glossário ao final do livro para as expressões gauchescas. O Faracco respondeu: imagino que no resto do livro o senhor tenha se virado bem com o Aurélio. Na medida que os produtos culturais daqui vencem a fronteira sem concessões identitárias, aproximam e desfazem a imagem do exótico, da terra ignota. E ajudam a explicar um pouco desse jeito de falsear a auto-estima, de se valorizar quando mais preterido, de ser do contra como único modo de sustentar uma posição própria. Há um pouco disso na concepção do Fórum Social Mundial. Caso sui generis de turismo ideológico que se justifica menos pelo impacto econômico(1) do que pelos já folclóricos dezesseis anos de administração petista. (1) às vésperas da segunda
edição do FSM, um radialista de Porto Alegre questionava
a relevância do evento. Segundo ele, como as despesas de hospedagem
e o cachê dos convidados corriam por conta do governo, o impacto
mais relevante ao comércio da cidade acontecera por conta do fim
dos estoques de pão fatiado (devido principalmente ao consumo do
Acampamento da Juventude).
|
|
*mistificador
|