O QUE NÃO
É ESPELHO É ROSTO
*fabrício_carpinejar |
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Sempre fiquei intrigado com quem diz,
com mais saliva do que dentes: eu não o leio porque não faz
meu tipo. Ou eu não gosto dele porque é concretista. Aquele
cara não presta porque é conservador, neo-romântico.
Não fui com o jeito de pronunciar o efê daquele autor. As
aparências enganam, mas a falta de aparência engana mais ainda.
Há centenas de tipos de letras, mas a maioria ainda continua a escolher a times new roman. Porque é a primeira que aparece. Os hábitos provocam o desaparecimento da personalidade, a rotina preserva a não-existência. Fazer tudo da mesma forma é um jeito quase seguro de não aparecer, de ser invisível. Uma das maldições da prosa e poesia contemporânea é a formação de bandos, tribos, seitas, com o dízimo pago pontualmente nas dedicatórias e epígrafes. Como que isso acontece? Quando a saudável influência vira apostolado. A máxima funciona nos extremos: ou se é de algum time ou não se é jogador. Depois da antropofagia, vem a autofagia, que dá no mesmo. Já se parou para pensar que a tradição pode ser mais repetição do que consistência? A literatura não é uma religião, não há a figura de um padre ou pai-de-santo ou pastor ou rabino a seguir. É uma solidão dentro do nome. Mais desaforo do que elogio. Mais dúvida do que dogma. Estranheza em estado bruto, inadiável, que inverte a ordem do senso comum, cava contradições, fornece velocidade ao idioma, não serve para enrolar, mas para dizer unicamente o necessário. Um bom livro não adormece, instaura a insônia da alegria, a euforia de ter encontrado a palavra certa para o que vivemos ou podemos viver. O poema, por exemplo, tem que ser simples, não simplório; rápido, não fácil; autêntico, não rebuscado. Está se precipitando uma guerra pouco santa. Encalha-se no narcisismo desde a leitura. A criação apenas a amplifica. Acredito que se desaprendeu a ler para reafirmar a vaidade da autoria. Todo leitor se transforma em um escritor apressado, louco para se enxergar estampado na capa de alguma brochura. Ou seja, o leitor está mais interessado em escrever do que ler. E ler se converteu em escritura anônima. Segue-se uma receita, com a covardia em preparar o almoço de olho e acrescentar novos ingredientes. Nada disso seria problema, mas acaba-se não sabendo ler o que não é espelho, intimidando possibilidades de transgressão e aventuras na linguagem. O que não é espelho é rosto e muitos se apavoram em olhar de frente os olhos abertos que não os seus. Não se lê outros autores porque se está interessado unicamente em reiterar a identidade. Assim, ninguém lê ninguém, o autor somente se procura em cada livro e não valoriza o que difere de sua voz. Ao invés de multiplicar as diferenças, soma-se as subtrações. A megalomania na leitura gera mais crítica dentro da criação do que criação. Os livros passam a ser ensaios de como se escrever mais do que narrativas e poesias versando sobre o cotidiano. O que era para servir para entrar no mundo assumiu o caráter de fuga do mundo. Os escritores lêem escritores para se amar duas vezes, mergulhando em uma metalinguagem sem bilhete de volta. Esquecem que o público não está interessado em manuais de datilografia ou de poemas falando de poemas. Coroa de flores nunca vai cheirar a flor. Não aprendi muito na literatura,
mas algo me previno: eu não leio para repetir o que escrevo. Nem
escrevo para repetir o que leio.
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*Fabrício Carpinejar,
31 anos, natural de Caxias do Sul (RS) e radicado em São Leopoldo
(RS), autor de seis livros: “As Solas do Sol” (Bertrand Brasil, 1998),
“Um Terno de Pássaros ao Sul” (Escrituras, 2ª edição, 2000), “Terceira Sede” (Escrituras, 2ª edição, 2001), “Biografia de uma árvore” (Escrituras,2ª edição, 2002), “Caixa de sapatos” (Companhia das Letras, 2003) e “Cinco Marias” (Bertrand Brasil, 2ª edição, 2004). |