BALANÇO DAS ELEIÇÕES
EM PORTO ALEGRE
*Luiz Marques |
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O Fórum Econômico de Davos, com sua índole excludente e anti-igualitária, arrancou uma importante vitória ao eleger o expoente da coligação PPS-PTB no segundo turno das eleições municipais em Porto Alegre. Mesmo considerando o crescimento político do PT nacionalmente (número de prefeituras, bancadas de vereadores, volume de votos), o fato é que a derrota no município-sede do Fórum Social Mundial e em São Paulo suscita uma reflexão que confira racionalidade e inteligibilidade à voz das urnas. Compreender os motivos do percalço da Frente Popular, que se estendeu por toda a região Sul e Sudeste (RS, SC, PR, SP, RJ, GO), é o que se pretende aqui. No caso de Porto Alegre, a explicação da mídia (leia-se: RBS) já estava pronta no dia seguinte ao pleito eleitoral. Tratou-se do "declínio e queda do império petista" (Zero Hora), posto que "o PT perdeu o encanto, encerrando um ciclo" (depoimento do jornalista-marqueteiro José Barrionuevo). Estes finalismos decretados, no entanto, são apenas mais um eco tardio da tese do "fim da história" de Fukuyama (1989) para enaltecer o sistema capitalista e a democracia representativa, um e outro interpretados como horizontes intransponíveis pela direita. Sensacionalismo à parte, os motivos da derrota do PT podem ser agrupados em quatro categorias. - O peso de ser governo federal, na ausência de símbolos identitários fortes. As expectativas geradas, e não satisfeitas no curto prazo, com a ascensão de Lula contribuíram para a disseminação de um sentimento de frustração entre os eleitores gaúchos, em especial nos grandes centros urbanos. Os índices persistentes de desemprego, os juros altos ainda praticados no país, a manutenção das alíquotas do IR que penalizam os assalariados das camadas intermediárias apesar da posição em contrário da CUT, o pífio reajuste concedido ao salário mínimo, a problemática reforma da previdência para o funcionalismo com a taxação dos aposentados, bem como a não menos problemática reforma universitária que dificultou a campanha entre estudantes e professores no âmbito das universidades públicas, são fatores que influenciaram nas intenções de voto criando sérios obstáculos comunicacionais. Num contexto que amarga uma estagnação da economia desde a década de 80, com o decorrente achatamento salarial e de renda que cobre um arco que vai do pobretariado às classes médias, os eleitores então convergiram majoritariamente para o centro político ao invés de para a esquerda. A incapacidade para responder às demandas destes segmentos conduziu-os para os braços da oposição ao PT. A idéia de que o governo federal está promovendo uma transição de rumos cautelosa ("não se dá cavalo-de-pau em um transatlântico", conforme Lula), em função da vulnerabilidade externa herdada da era FHC, não sensibilizou a população. A recusa à política macro-econômica neoliberal, que há dois anos ousou guindar um ex-preso político à Presidência do Brasil, não se reconhece nos rumos imprimidos pelo Ministério da Fazenda e do Banco Central, como estampou a greve dos bancários em pleno período eleitoral. Compreende-se, pois, o ceticismo dos movimentos sociais e o refreamento da maré vermelha ao longo de todo o primeiro turno. O que se afigurou qual um racismo político na palavra-de-ordem "Chega de PT" foi, em boa proporção, a tradução preconceituosa para a decepção generalizada em face das escolhas feitas pela área econômica do Palácio do Planalto. A elevação do superávit primário, além até do exigido pelos contratos com o FMI, com claro prejuízo dos programas sociais e dos investimentos em infra-estrutura para estimular o desenvolvimento sustentado da nação e combater as desigualdades, acabou por empanar o encantamento utópico do PT, conduzindo a um afastamento de militantes. Nas palavras de Raul Pont, a questão é que "as políticas nacionais tinham de ter visibilidade maior, simbolizar um compromisso maior com os trabalhadores". Em resumo, "precisamos de mais símbolos". Neste aspecto, sem entrar em especificidades objetivas ou subjetivas, a supremacia alcançada eleitoralmente por José Serra é muito eloqüente. Em São Paulo, os debates foram com freqüência federalizados, o que deixou evidente o peso e a influência decisiva da variável nacional (a política macro-econômica) na seara local. Na falta dos ditos símbolos, o governo Lula não consegue distinguir-se do governo FHC, embora lhe seja fática e radicalmente distinto. Isso liberou o voto dos eleitores em outras alternativas, fazendo tábua rasa do binômio esquerda versus direita. O recado para o governo Lula foi dado. - A crise ética e política do referencial de independência de classe do PT. O preço pago pela governabilidade construída nacionalmente, escorada em acordos e alianças institucionais com antigos inimigos do povo, repercutiu de forma negativa no ânimo dos eleitores. Em vez de ampliar a aceitação do projeto petista na sociedade, a mélange trouxe confusão às bases sociais do petismo e instrumentalizou a desqualificação do mesmo. A incoerência ideológica e o embaçamento programático tendeu a um nivelamento de todas as agremiações partidárias por baixo. Bom para a direita, ruim para a esquerda empurrada para a defensiva política. Com o alargamento do leque de alianças transformado numa virtude abstrata, sem critérios, quebrou-se parcialmente no imaginário nacional a diferença (vilipendiada pelos conservadores como "arrogância") que separava o PT dos partidos tradicionais. A qual segue sendo a alavanca fundamental para um crescimento no vasto território brasileiro, sempre que o PT clarifica e autentica sua vocação republicana. Obviamente aqueles que propugnam o esgaçamento da política de alianças explicam a derrota recorrendo a uma fantasiosa "incapacidade de alianças". Editorialistas vão ao cúmulo de afiançar que na Capital gaúcha o PT descartou a aliança com o PSB para salvaguardar uma chapa puro-sangue. Uma mentira. Lideranças como José Genoino (PT) e Renato Rabelo (PC do B) repetem a cantilena atribuindo as quedas à inexistência de novas alianças, tanto no primeiro turno (São Paulo, com o PMDB de Quércia?), quanto no segundo (Porto Alegre, com o PMDB de Padilha?). "Fica a lição de que em cidades grandes tem de trabalhar bem uma política de alianças para sair do isolamento", reitera Genoino como se a política fosse uma simples equação aritmética eleitoreira. O raciocínio confunde o objetivo da política com o poder em si - à revelia dos valores que legitimam o fazer político na ótica do socialismo. O poder não é um fim que se esgote em si mesmo. Mas um meio para fazer prevalecer os ideais da civilização contra a barbárie neoliberal que condena milhões de indivíduos a uma vida subumana, mergulhada na miséria material e na ignorância absoluta de seus direitos. O poder é desejável se pode servir para suprimir ou atenuar as desigualdades sociais e de gênero, a exploração e a opressão. Se articula políticas de preservação do meio ambiente. Se impulsiona a solidariedade pessoal e institucional. Se ergue a bandeira dos desprotegidos contra os poderosos. Com a banalização do espectro de alianças aprofunda-se a crise ética e política que vem solapando a identidade e a independência de classe do PT. Mais: aprofunda-se o desgaste da própria noção de partido enquanto sujeito político da transformação. O apoio de Maluf a Marta Suplicy, na megametrópole paulista, ilustra caricaturalmente o limite destas concepções elásticas no plano da institucionalidade. O custo é caríssimo para o moral da militância e a credibilidade da esquerda. Afinal, anota Francisco de Oliveira, "quando a política torna-se inteiramente consensual, deixa de existir como diferença, dissenso" (FSP, 02/11/04). Vira manipulação. - As fraturas internas do PT e seus inegáveis reflexos externos. A candidatura de Tarso Genro à prefeitura de Porto Alegre em 2000, após haver através de prévias suplantado Raul Pont, à época prefeito e pré-candidato à reeleição, foi uma enorme agressão à cidade que aprovava de sobejo a administração em curso. O aparelho partidário dava ali sinais de inclinação para uma lógica antes burocrática que democrática, onde o desejo dos filiados parecia bastar-se conquanto envolvesse opções de interesse para o conjunto da comunidade. Esta assistia em silêncio. Mas foi sobretudo depois da disputa entre Olívio e Tarso em 2002, em novas e equivocadas prévias com o propósito de redefinir a candidatura do PT ao governo estadual, destaca a cientista política Céli Pinto, que firmou-se na percepção do eleitorado a impressão de que o partido hegemônico da Frente Popular vivia em uma permanente guerra civil, refém de uma sintaxe personalista e arrivista. Coisa que o tornava, ora instável, com um vigor fratricida na resolução de seus impasses domésticos. Ora soberbo, capaz de romper os compromissos tácitos com a sociedade civil, deslocando seus representantes da esfera executiva e/ou autorizando a renúncia dos mesmos. Ao sabor da correlação de forças internamente, o PT arrogava-se o direito de substituir os eleitores na tarefa de julgar os governantes eleitos entre um e outro mandato, e a conveniência ou não de mantê-los na titularidade dos cargos. No auge desta prepotência forjada no calor de embates que consumiram as energias da agremiação, dividiram a militância e num crescendo repercutiram na composição e nas nomeações do primeiro escalão da Administração Popular (AP), cunhou-se inclusive o mote de que "no PT, natural só iogurte". A absurda auto-suficiência contida na frase ignorava o significado social dos atos impostos com o vezo do internismo. As conseqüências continuam a se fazer sentir dolorosamente. Post festum, a indicação consensual de Raul e Rosário em 2004, para prefeito e vice respectivamente, buscou superar a extenuante polarização entre campos políticos rivais e esconjurar os fantasmas da dilaceração. Mas nem por isso se desfez na população a imagem de um partido conflagrado, hostil. Imagem que viria a ser reforçada pela expulsão da senadora Heloísa Helena na reforma da previdência e, mais recentemente, pela punição do senador Paulo Paim na discussão sobre o salário mínimo. Aliás, consolida-se à medida que o PT abdica de sua autonomia e de sua consciência crítica para aceitar o papel de correia de transmissão do governo Lula. - A demonização do PT cultivada pela direita com suporte na mídia. Na gestão do governador Olívio Dutra qualquer discussão de casal era apresentada, midiaticamente, como um grave caso de segurança pública. Responsabilidade do PT, claro. Assim também, de lá para cá, "em Porto Alegre qualquer multa de trânsito se transformou em culpa do PT", acusa Raul. Poderia ter citado a cobertura facciosa do Diário Gaúcho, o popularesco periódico do grupo RBS, sobre a saúde. Insuflou-se, deste modo, um antipetismo condensado em slogans de fácil consumo que, aos poucos, se transferiu dos setores abastados para parcela expressiva dos moradores de periferia. Sem dúvida, temas mal trabalhados pelo governo federal ajudaram na transferência de antipatia, a exemplo da compra do avião por Lula e do affaire Waldomiro. Mas o desgastante processo já estava em marcha no RS. A operação consistiu em, inicialmente, apresentar o PT como portador potencial ou real de uma visão totalitária e intransigente, para o que contou com o respaldo de intelectuais escrevendo artigos em jornais de grande circulação e livros sobre "a contradição incontornável entre a esquerda e o Estado Democrático de Direito". Várias destas publicações panfletárias, não raro, foram distribuídas gratuitamente através de institutos formados por empresários fanatizados pelas neoversões assumidas pelo liberalismo clássico. O objetivo era formar na opinião pública as condições de receptividade para os ataques empreendidos pela direita de desqualificação do projeto petista, e de seu modo de governar (com o concurso direto do povo). A estratégia chegou ao paroxismo numa entrevista do filósofo José Arthur Gianotti em que ele pregava que votar no PT implicaria "enfraquecer a democracia brasileira" (FSP, 26/09/04). O parecer foi referendado e expandido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao acusar o perigo de a democracia no Brasil se fazer "caudatária de um partido único" (O Globo, O Estadão, 03/10/04). O argumento dos luminares do PSDB foi desconstituído, empiricamente, pelo cientista político Wanderley Guilherme dos Santos para quem "poluente da democracia é o Comando de Caça aos Petistas, equivalente ao Comando de Caça aos Comunistas, CCC, dos anos 60" (Valor Econômico, 07/10/04). Não obstante, o preconceito e a intolerância obscurantistas já tinham sido destilados sobre a sociedade. Numa conjuntura marcada pela diminuição da radicalidade do discurso político, os efeitos destas imputações de autoritarismo ao PT, magnificadas pela grande mídia, impactaram a sensibilidade do eleitorado. A ponto de o candidato José Fogaça sentir-se seguro para inserir em sua propaganda eleitoral a promessa de desbloquear o céu de Porto Alegre para outras colorações ideológicas (sic), assegurando o pluralismo na cidade (sic, sic). Sim, justo na cidade tida e havida como a mais democrática do mundo graças à experiência administrativa do Orçamento Participativo. Na verdade, como demonstrou com brilhantismo Juarez Guimarães num texto intitulado A miséria do liberalismo brasileiro (Agência Carta Maior, 21/10/04), por trás do ranço do antipetismo encontra-se a rejeição das elites convencionais à democracia participativa e a preocupação em descaracterizá-la com adjetivos depreciativos (assembleísmo, movimentismo) apresentando-a como adversária do regime de representação política. Logo, das instituições democráticas. Tudo para evitar pressões oriundas da participação popular que inibam a apropriação privada dos fundos públicos (veja-se o temor do OP, que o governador do PMDB Germano Rigotto não tardou em desmontar ao ser empossado). Ou que induzam à regulamentação da economia (veja-se a reação a uma política nacional para os produtos audiovisuais). Ou que assegurem que a liberdade de opinião e informação não capitule frente ao monopólio da imprensa (veja-se as objeções despertadas pela proposta de um conselho de jornalismo). Não à toa, em todos os casos arrolados para proteger o deus-mercado sobraram invectivas de "autoritário" para o PT. Eis o que esconde o canto-de-sereia neoliberal da "alternância no poder", contra o que há que lutar em termos políticos e conceituais. Muitos foram as cidadãs e os cidadãos atraídos por este sofisma de aparência democrática e republicana, que decerto voltará em 2006 para minar a possibilidade de recondução de Lula. -Conclusão: Porto Alegre saberá retomar suas conquistas históricas Descontadas as dificuldades produzidas pelas razões expostas acima, é de se tecer um ardoroso elogio à garra e à disposição da militância do PT, particularmente no segundo turno em que os valores em disputa se fizeram manifestos. Os milhares de militantes políticos e sociais, cujo combate visa a construção de um outro mundo possível, novamente provaram que o inconformismo e a rebeldia (o "espírito de Porto Alegre", como o batizou o pensador Immanuel Wallerstein) seguem vivos nesta cidade, e não foram eliminados do cenário pela adversidade na apuração das urnas, que contabilizaram em torno de 380 mil votos (correspondentes a quase 48% do eleitorado) para a esquerda. O tempo mostrará aos céticos e aos pessimistas, mais rápido do que se possa imaginar. Porto Alegre saberá retomar suas conquistas históricas e fazer por merecer novas edições do Fórum Social Mundial às margens do Guaíba. Igualmente cabe aqui um reconhecimento político e afetivo à qualidade patenteada pelos candidatos majoritários na chapa da Frente Popular. Raul e Rosário foram exemplares e, nos debates, demonstraram incansavelmente uma superioridade ético-política que não se reduziu ao melhor preparo técnico e ao maior comprometimento ideológico com a universalização dos direitos de cidadania, o que já seria bastante. As intervenções de ambos também sintetizaram e propagaram o humanismo presente na perspectiva democrático-popular. Embora, para evitar o erro precípuo da campanha para o governo estadual, possam ter ocorrido agora excessos compensatórios no rádio e na tevê ao se privilegiar na fase inicial do enfrentamento o resgate da memória sobre as realizações da AP, - estes de maneira nenhuma comprometeram o resultado final. Com a aprovação de aproximadamente 70% da população, consentâneo as pesquisas, era compreensível a ênfase emprestada às realizações administrativas na largada do pleito e, em conseqüência, injusto o comentário de que esta inflexão na programação convertia os convertidos. Ademais, a eventual falta de acento nas propostas para o futuro da cidade foi, amplamente, corrigida no tempo complementar da contenda. O mesmo não se diz do autêntico presente de grego que a direção nacional do PT enviou aos municípios gaúchos em que transcorria o segundo turno. Dupla sertaneja no RS beira insulto às tradições culturais do Estado, afora gerar uma série de descontentamentos entre os artistas que comumente abrilhantam as campanhas da Frente Popular, sem cachê. A mera divulgação da contrapartida despendida na contratação de Zezé de Camargo e Luciano acarretou um ônus eleitoral que, no mínimo, neutralizou o bônus esperado pelos autores da iniciativa. Num país continental, como o Brasil, não se pode passar uma borracha nas complexidades regionais. Já entre as responsabilidades específicas da AP deve-se registrar a cristalização de uma tendência administrativista em meio aos quadros políticos da prefeitura. Tal administrativismo estabeleceu um padrão de comportamento nos agentes municipais vincado por um ultralegalismo no trato com os porto-alegrenses e com os próprios municipários. Recorde-se o tratamento repressivo dispensado aos camelôs no centro e a insensatez dos funcionários da EPTC no controle do trânsito. Ao lado do administrativismo observou-se ainda uma certa despolitização no relacionamento público de pontas da AP com o atual governo do RS, aparentemente abrindo mão da disputa de projetos em nome da paz institucional. Só o prolongamento irracional de rivalidades internistas, remanescentes de prévias passadas, explica tamanho "erro orgânico", para evocar Gramsci. No lugar do empenho em defender as políticas implementadas no governo Olívio/Rossetto em todas as áreas, transmitiu-se assim um conformismo político e uma apatia ideológica perante os retrocessos acumulados pela coligação liderada pelo PMDB/PSDB na gestão do Estado. Mas superestimar elementos do tipo no balanço das eleições de Porto Alegre não deve fazer-nos desviar o foco do essencial. A saber: 1) o peso de ser governo federal, na ausência de símbolos identitários fortes; 2) a crise ética e política do referencial de independência de classe do PT; 3) as fraturas internas do PT e seus reflexos externos e; 4) a demonização do PT pela direita com suporte na mídia. Nestas categorias políticas acha-se o que possui maior relevância analítica para se compreender a derrota recente e para se prospectar, com sucesso, as batalhas vindouras contra a direita. Porto Alegre, 03/11/04.
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*Professor de
Ciência Política da UFRGS, ex-Secretário de Cultura
do RS
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