LULA, GETÚLIO E O PULA BECHUANA
Cláudio Dienstmann 30/08/2005 - 21:35
Luiz Inácio Lula da Silva nasceu no sertão nordestino, emigrou com toda família para sobreviver, foi criado pela mãe em São Paulo, e sem estudos. Getúlio Dorneles Vargas nasceu rico nos pampas gaúchos, e só deixou as fazendas do pai durante períodos de sua vida para estudar e mandar no Rio Grande do Sul e no Brasil.
Esses dois baixinhos troncudos – Lula e sua voz rouca e Getúlio e seu sotaque carregado – sempre foram a alegria dos caricaturistas: Getúlio com o seu charuto, bombachas e cuia de chimarrão, sorridente, e Lula com a sua barba, sério, e todo mundo procurando localizar qual é mesmo o dedo que ele não tem. Diferentes e parecidos, o fazendeiro Getúlio, brasileiros e brasileiras, e o operário Lula, companheiros, o trabalhista e o trabalhador, foram especialmente iguais na obsessão pela presidência da República. Lula só chegou lá na quarta tentativa. Getúlio gostou tanto da primeira vez que ficou 15 anos (incluindo os cavalos gaúchos amarrados em pleno centro do Rio de Janeiro) e, apesar de dizer que não queria, acabou voltando quando o povo resolveu cantar “bota o retrato do velhinho na parede outra vez”.
E agora, no momento em que Lula informa que não sabia nada da atual lambança nacional, que foi traído e que cortará na própria carne, repete-se apenas (com data, hora e local) um caso igualzinho que aconteceu com Getúlio – que também não sabia de nada, também alegou traição, e jurou ter punido. Isso aconteceu há 55 anos, na campanha de Getúlio para a sua reeleição. Já ali ninguém tinha nascido antes, ninguém sabia de nada, e se alguma coisa errada aconteceu, foi por causa provavelmente das oscilações do pula bechuana.
Nessa altura é necessário abrir parênteses, e ver por exemplo o livro “Album Esportivo do Rio Grande do Sul, 1937/1938” (aqui ó que alguém conhece!), de Álvaro Ribas (ex-jogador do Inter) e Bruno Fedrizzi, que enaltece o vigor do esporte alemão, e publica uma foto do estádio Olímpico de Berlim e um texto assinado por Getúlio, que começa asim: “Pelo que toca à colonia alemã, localisada no sul, é composta de homens ordeiros, industriosos, trabalhadores e que muito têm contribuido para a prosperidade da patria adotiva”. Só que durante a Segunda Guerra Mundial o Estado Novo mudou de lado, e os “homens ordeiros, industriosos a trabalhadores” da colônia alemã passaram o diabo. Fecha parênteses.
Aí vêm as eleições de 1950. As campanhas são curtas (ufa!). Getúlio tem a sua candidatura para a presidência lançada pelo PTB apenas no dia 12 de junho, junto com Alberto Pasqualini para o senado e Salgado Filho para o governo do Rio Grande do Sul, e com registro só em 26 de julho. Em agosto Getúlio estabelece a sua base no Rio de Janeiro, viaja para comícios no norte e nordeste (Belém e Salvador, por exemplo), interior do Rio (Volta Redonda e Petrópolis), interior de Minas (Uberaba, Uberlândia, Valadares, Juiz de Fora), Cuiabá, São Paulo e interior paulista (Campinas). No dia 20 de setembro, ele está de volta ao Rio Grande, para discursos – na ordem – em Erechim, Passo Fundo, Carazinho, Santa Maria, Cachoeira, Santa Cruz, Caxias, Estrela, São Jerônimo, Butiá, Arroio dos Ratos, Pelotas, Rio Grande, Jaguarão, Bagé, Uruguaiana, Alegrete, Livramento, São Gabriel, Cruz Alta e Santo Ângelo, e encerramento a 30 de setembro em São Borja, 22 municípios em 11 estafantes dias, voando de um lado para outro no avião de João Goulart. Não existia campanha na TV, é bom lembrar. Mas as emissoras de rádio tinham os seus repórteres na comitiva, e os jornais reproduziam os discursos no dia seguinte, taquigrafados.
O problema era Santa Cruz, às 15h de 22 de setembro de 1950, porque a alemoada – “povo ordeiro, industrioso e trabalhador” – certamente ainda não tinha esquecido as perseguições do Estado Novo durante a Segunda Guerra Mundial (em que a constatação de posse de um rádio ou publicações em alemão ou falar alemão configurava ato de espionagem sujeito a prisão, por exemplo). Aí é que o bicho poderia pegar. Mas o velhinho se esmerou.
O discurso de Getúlio em Santa Cruz – cinco laudas em papel seda e espaço dois, encontradas por sorte de principiante num ferro velho da Voluntários (sim!) e que estão à disposição de algum museu, partido ou colecionador – é um primor de inocência.
Na folha dois, discursa Getúlio: “Sabeis como me desagradou e como reagi, quando na chefia do Governo, contra aqueles que, em meu nome e à minha revelia, praticaram atos de violência e de arbítrio, com base em prejuizos étnicos”. Opa! E segue: “O senador Ernesto Dorneles (coincidência!, nota do autor), por determinação minha, assumiu então a Interventoria do Estado e fez logo cessar a descabida orientação, impondo o respeito e o acatamento que vosso valor cívico estava a exigir”. E vai, “Povo de Santa Cruz!”, “Trabalhadores do Rio Grande!”, etc, etc, etc.Foi isso. Os políticos renascem diariamente. Alguns nascem nos dias dos seus discursos, sem conhecimento de nada do que aconteceu antes, certamente por graça divina. Hoje e ontem.
Cabem ainda algumas observações finais.
1) Para que ninguém diga que o autor é anti-getulista, informa-se que em homenagem ao “Seu” Osvino, o seu pai, até hoje está guardada com carinho um poster preto e branco e vermelho na parte inferior com 45 centímetros de altura por 30 de altura, encartado nos 285 mil exemplares da revista “O Cruzeiro” em sua edição de 15 de julho de 1950 – de Getúlio com Salgado Filho, que morreu em acidente aéreo em São Francisco de Assis dia 30 de junho e foi substituído como candidato a governador por Ernesto Dorneles; aliás, também por coincidência, atualmente estão caindo outra vez muitos aviões, infelizmente sem levar a bordo qualquer político do mensalão.
2) A aplicação de um ponto e vírgula (;) no parágrafo acima é uma singela homenagem a Giba Assis Brasil, que abusava deste recurso num destes jornais da vida, e que foi tão duramente escrachado que ficou traumatizado e nunca mais conseguiu repetir.
3) Pula bechuana é a moeda do Botswana, ou foi e não é mais, mas e daí? Os coitados dos bechuanas, os habitantes de Botsawana, não podem mesmo ter qualquer culpa por coincidentes lambanças políticas no Brasil.