VEJA E O REFERENDO: Panfleto ou revista?
César Alberto Souza
Major da Polícia Militar do Paraná
A revista Veja edição 1.925, nº 40 do ano 38, data de capa 5 de outubro de 2005, está, em tese, infringindo a legislação eleitoral, em plena vigência da propaganda gratuita encarta 10 páginas de pura propaganda sobre o "não" no referendo de 23 de outubro, mal disfarçado como reportagem.
A matéria assinada por Jaime Klintowitz é um verdadeiro panfleto, ignora o mais simples dos mandamentos éticos de qualquer matéria jornalística, ouvir o outro lado, e o que é pior coloca o ministro Márcio Thomaz Bastos numa das fotos, mas não exprime o ponto de vista dessa autoridade, induzindo o leitor desavisado a pensar que o ministro é a favor do "não".
Nas normas eleitorais está bem claro que:
As emissoras também estão proibidas de veicular propaganda política ou difundir opinião favorável ou contrária a qualquer das propostas do referendo; e de veicular ou divulgar filmes, novelas, minisséries ou qualquer outro programa com alusão ou crítica às frentes parlamentares, mesmo que dissimuladamente, exceto programas jornalísticos ou debates sobre o referendo.
A menos que a próxima edição seja a favor do "sim", o que seria um remendo, entendo que a Editora Abril vai ter que se explicar perante a Justiça Eleitoral. Lamentavelmente, o estrago já está feito, os que defendem o "não" andam com a revista debaixo do braço e difundem as mentiras como verdade.
O conteúdo é grosseiro e manipulado, uma mistificação, apresenta sete razões para apoiar sua versão, que chamarei de 7 mentiras:
As sete mentiras
1. Os países que proibiram a venda de armas tiveram aumento da criminalidade e da crueldade dos bandidos.
O site www.referendosim.com.br traz dados diferentes: o lobby das armas usa dados questionáveis sobre crimes e homicídios em países onde as armas são rigorosamente controladas. Os dados verdadeiros são os seguintes: na Austrália, desde a aprovação da nova lei, em 1996, o número total de mortes diminuiu 43% e a taxa de homicídios por arma de fogo caiu 50% (Australian Bureau of Statistics, 2003). O movimento pró-armas fala de uma "onda de criminalidade" na Austrália, mas não revela que só houve aumento nos assaltos cometidos com armas brancas (20%).
Na Inglaterra, onde o acesso a armas de fogo é rigorosamente proibido, elas são usadas só em 8% dos assassinatos e essa é uma das razões pelas quais a taxa de homicídios é tão baixa naquele país. O aumento do número de delitos com armas neste país deve-se ao uso de armas que a legislação não proibiu, como as armas de ar comprimido e as réplicas (UK Home Office). No Japão, onde as armas são proibidas, as taxas de homicídio são as mais baixas do mundo: 0,03 em cada 100 mil habitantes (OMS, 2002) – 800 vezes menor que no Brasil. Os Estados Unidos, onde existe uma arma para cada adulto, têm a maior taxa de homicídio entre os países desenvolvidos.
Meia verdade
O Brasil já tem armas demais. São 17,5 milhões, 90% nas mãos de civis. Mas os vendedores de armas querem continuar faturando com essa indústria mortal. Mesmo a revista apresenta dados diferentes, destacando o Japão, que teve a proibição de armas em 1945, e tem sem dúvida a menor taxa de homicídios do mundo.
O único país que a revista destaca que teve fracasso na política de desarmamento é a Jamaica – como não conheço outros estudos sobre a Jamaica, não vou tergiversar. A Austrália citada pela revista é bem conhecida por meu amigo Roberson Bondaruk, com o qual escrevemos um livro sobre polícia comunitária, embora os roubos com faca aumentassem 20 % naquele país depois da proibição de armas automáticas e semi-automáticas (1996) o número de mortes por arma de fogo caiu 43%, e se nós chegarmos aos dois homicídios por 100 mil habitantes que acontecem lá, teremos evoluído muito.
2. As pessoas temem as armas. A vitória do "sim" no referendo não vai tirá-las de circulação no Brasil
Isso é uma meia verdade, mas a não-comercialização de 50 mil armas anuais vai diminuir em muito o número de armas em circulação, como também o fez a retirada de 400 mil armas entregues voluntariamente.
Simplificação e covardia
3. O desarmamento da população é historicamente um dos pilares do totalitarismo. Hitler, Stalin, Mussolini, Fidel Castro e Mao Tsé-Tung estão entre os que proibiram o povo de possuir armas.
Isso é um engodo, as armas nas mãos dos jovens em 1968 destruiu uma geração. Não queremos absolver os carrascos, mas não foi pelas armas que terminou a ditadura militar no Brasil, nem no Chile ou na Argentina. Armas matam, incitam a violência, as verdadeiras armas de um povo são a sua organização, sua capacidade de mobilização. Grandes causas foram ganhas por pacifistas como Martin Luther King e Mahatma Gandhi. Existem exemplos históricos para qualquer teoria que se queira. Não se instala uma ditadura sem armas, mas não se precisa delas para derrotá-las.
No site referendosim.com.br se explicita: "O controle de armas é muito anterior ao Terceiro Reich. Em 1928, a República de Weimar aprovou leis de controle de armas exatamente para reprimir as milícias armadas do partido nazista. Hitler não chegou ao poder pelas armas, mas pelas urnas. Nos regimes totalitários, desarma-se a população e armam-se as milícias para melhor subjugar os cidadãos. Nas democracias, a defesa da vida está a cargo de forças públicas de segurança legitimamente constituídas e o objetivo do desarmamento é aumentar a segurança do povo".
4. A polícia brasileira é incapaz de garantir a segurança dos cidadãos.
Essa informação é absolutamente inverídica. Cada país tem a polícia que merece e que escolheu. Os policias são oriundos da sociedade, do seio do povo brasileiro. A própria Editora Abril, na revista Superinteressante, especial "Segurança", de abril de 2002, demonstrou que o crime viceja no Brasil por causa de leis imperfeitas, de um Judiciário insuficiente, de um sistema policial anacrônico e, principalmente, pela falta de cidadania e de cobrança da sociedade na construção de políticas educacionais e de distribuição de renda. Tentar simplificar o problema dizendo que a polícia não resolve é de uma covardia tremenda, ou será que a revista Veja quer que cada cidadão brasileiro empunhe uma arma e se defenda sozinho, a volta da barbárie, da terra sem lei?
Debaixo do tapete
5. A proibição vai alimentar o já fulgurante comércio ilegal de armas.
Não! As armas vendidas em lojas são para cidadãos de bem, que não vão buscar armas no mercado ilegal. Quem alimenta o comércio ilegal são os traficantes, integrantes do crime organizado, que continuarão tentando comprar armas no contrabando, que graças ao Estatuto do Desarmamento tiveram suas penas aumentadas, e torna-se um crime mais visado e que será vigiado pela população ordeira que prefere um Brasil sem armas.
6. Obviamente, os criminosos não vão obedecer à proibição do comércio de armas.
O equívoco desta visão está em ignorar que mais de 90% das armas de fogo no país são legalmente produzidas e comercializadas. No Rio de Janeiro, 30% das armas apreendidas na ilegalidade tinham sido vendidas originalmente a "cidadãos de bem", e depois desviadas para o mercado clandestino (Polícia Civil, Rio de Janeiro, 2003). Bandidos não compram arma em loja, mas vão tomá-las nas casas de quem comprou. No estado de São Paulo, segundo a Polícia Civil, das 77 mil armas apreendidas em 1998, 71.400 foram roubadas de seus donos originais e 5.500 extraviadas por eles. A proibição do comércio vai ajudar diminuir o número de armas para a criminalidade.
7. O referendo desvia a atenção daquilo que deve realmente ser feito: a limpeza e o aparelhamento da polícia, da justiça e das penitenciárias.
Engano, ele chama a atenção e conclama todos a participarem dessa discussão que até há pouco tempo estava debaixo do tapete, era problema dos morros e das periferias e agora está no cerne das questões políticas. A Gestão Comunitária da Segurança Pública, também chamada de polícia comunitária, a participação de todos e o respeito às decisões tomadas pelos governantes é que ajudarão a reduzir o crime, a violência e o medo do crime e da violência.
Armas demais
Como sete é conta de mentiroso, já diziam os antigos, vamos conhecer 10 razões pelas quais devemos votar sim (2) no referendo:
1. Armas foram feitas para matar – Foram inventadas para isso: mesmo quando nos defendemos utilizando uma arma de fogo corremos o risco de tirar a vida de alguém. Será que estamos preparados para isso?
2. Ter armas em casa aumenta o risco, não a proteção – Ter armas atrai bandidos, que além do seu dinheiro ainda poderão ter a sua arma. Se não houver reação os bandidos geralmente vão embora depois de pegarem o que quiserem; tendo uma arma em casa pode haver um confronto, e o fator surpresa está com o bandido.
3. A presença de uma arma pode transformar qualquer cidadão em criminoso – Uma discussão banal, um momento de depressão e dois conhecidos podem se matar.
4. Acidentes acontecem, menos armas menos acidentes – O site referendosim.com.br reproduz a notícia de 28 acidentes envolvendo arma de fogo, só neste ano (2005) no Brasil, todos com final trágico.
5. Quando existe uma arma dentro de casa, a mulher corre muito mais risco de levar um tiro do que o ladrão – Nas capitais brasileiras, 44% dos homicídios de mulheres são cometidos com arma de fogo (Datasus, 2002). Dois terços dos casos de violência contra a mulher têm como autor o próprio marido ou companheiro. (Datasenado, 2005). De acordo com dados do FBI, relativos a 1998, para cada vez que uma mulher usou uma arma em legítima defesa, 101 vezes esta arma foi usada contra ela (www. referendosim.com.br).
6. Existem armas demais no Brasil – Segundo o site referendosim.com.br o número total de armas em circulação no Brasil é de aproximadamente 17,5 milhões [Iser-Small Arms Survey, 2005]. Apenas 10% dessas armas pertencem ao Estado (forças armadas e polícias), o resto, ou seja, 90%, estão em mãos civis. Está na hora deste país se desarmar!
Péssimo conselheiro
7. Controlar as armas legais ajuda na luta contra o crime – São vendidas 50 mil armas legalmente no Brasil por ano; não havendo esse comércio, certamente haverá redução da demanda. A polícia, encontrando alguém armado na rua, o prenderá por mero crime de conduta, e ele permanecerá preso.
8. É mais importante diminuir a violência do que a criminalidade – Mesmo que venha a aumentar o número de furtos e de estelionato, aumentando a criminalidade, os homicídios e os roubos (crimes violentos) diminuirão, pela falta de seu principal instrumento, a arma de fogo.
9. O Estatuto do Desarmamento é uma lei que desarma o bandido – A maioria dos artigos do Estatuto do Desarmamento (Lei n° 10.826, de 22/12/2003) dá meios à policia para aprimorar o combate ao tráfico ilícito de armas e para desarmar os bandidos. Ele estabelece a integração entre a base de dados da Policia Federal, sobre armas apreendidas, e a do Exército, sobre produção e exportação. Agora, as armas encontradas nas mãos de bandidos podem ser rastreadas e as rotas do tráfico desmontadas. Pela nova lei, todas as novas armas serão marcadas na fábrica, o que ajudará a elucidar crimes e investigar as fontes do contrabando.
Para evitar e reprimir desvios dos arsenais das forças de segurança pública, toda a munição vendidas a elas também será marcada. A implementação do estatuto em sua totalidade é um dos principais instrumentos de que dispõe hoje a sociedade brasileira para desarmar os bandidos (www. referendosim.com.br). No Paraná, um dos primeiros estados a aderirem à campanha do desarmamento, a polícia aumentou em seis vezes o número de apreensões de armas em 2004, em relação a 2003.
10. O medo é um péssimo conselheiro – As pessoas sempre pensam em comprar armas quando estão com medo (inseguro = com medo; segurança vem do latin secure = sem medo); depois, passa o medo, a situação muda e a arma permanece na casa, ou é vendida num botequim ou a um amigo – pronto, o comércio ilegal foi realimentado.
Indiferença e cumplicidade
O desarmamento é um primeiro, e importante passo; mesmo que o artigo 35 do estatuto seja derrubado no referendo, a Lei 10.826/03 continua vigendo em 36 artigos. O próprio coronel José Vicente da Silva Filho, citado pela revista em artigo publicado, afirma que o desarmamento e o controle rigoroso de armas foi importante para Nova York e é uma das maneiras de a polícia reduzir o número de homicídios.
Atitudes como essa da Veja, de panfletar em vez de informar, apenas contribuem para a pobreza do debate. Desde a capa "Collor, o caçador de marajás", em 1986, que eu não via um desserviço tão grande desta revista que surgiu com a ditadura militar em 1965, e que apenas vez por outra faz boas reportagens com informação de qualidade para o povo brasileiro.
Não é a toa que deixei de assinar essa revista há muito tempo, pois as poucas edições que me atraem compro nas bancas. Nesta, a simples indiferença me tornaria cúmplice – temos direito à informação, chega de manipulação.
* Publicado no Observatório da Imprensa em 11/10/2005
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=350IPB004