O QUE SIGNIFICA "BANALIDADE DO MAL"
por Cristóvão Feil (sociólogo)
cfeil@uol.com.br
Com essa polêmica ruidosa sobre grupos de pressão judeus,
acusações de anti-semitismo para quem ousar criticar um
só ato dos belicosos governos israelenses, (o que dirá
referir os extermínios nos campos de refugiados palestinos na
Faixa de Gaza), etc., vem à lembrança, quase
naturalmente, a figura corajosa de uma frágil mulher judia
chamada Hannah Arendt (1906-1975). Essa teórica política,
durante toda a sua prolífica vida intelectual, foi provocadora
de grandes polêmicas, sempre em torno dos seus estudos sobre a
condição humana sob regimes de opressão e
totalitarismo. Ao analisar as origens do totalitarismo no regime
nazista, por exemplo, não se limitou a examinar somente o lado
dos que foram sujeitos da opressão, mas também dos que
foram objeto da mesma.
"Eichmann em Jerusalém", publicado em capítulos na New
Yorker entre fevereiro e março de 1963, é uma obra que
procura entender esses dois agentes da relação opressiva.
Ela narra o julgamento de um carrasco-burocrata do regime nazista
alemão, Adolf Eichmann, ocorrido em Jerusalém, depois de
ter sido seqüestrado num subúrbio de Buenos Aires por um
comando israelense. O nazista é conduzido então à
Jerusalém, para o maior julgamento de um carrasco alemão
depois do tribunal de Nüremberg. Durante o julgamento, a figura
discreta de Eichmann discrepava dos crimes de que estava sendo acusado,
e pelos quais assumia relativa responsabilidade. Hannah Arendt,
então, mostra toda a sua capacidade de extrair reflexões
filosóficas do que ela denominou de "banalidade do mal" – a
conjugação de fatores desumanizantes (totalitarismo,
criminalidade como norma estatal, burocracia, etc.) combinados com a
reação apática das vítimas (em especial dos
judeus), num processo de normalização da desumanidade e
da "calamidade dos sem-direitos". Arendt, evidentemente, foi muito
criticada desde então pelas lideranças judaicas do mundo
inteiro, pelo menos até a sua morte, em 1975.
No livro "Eichmann em Jerusalém", um das tantas obras
publicadas, Hannah Arendt não fica somente na
constatação da apatia estóica das vítimas
do regime hitlerista, mas, corajosamente, aponta também fatos
documentados sobre atividades nada-estóicas de líderes de
comunidades judaicas que colaboravam com os nazistas, com o objetivo de
obterem vantagens materiais e poupar vidas apenas dos seus protegidos.
"Onde quer que vivessem judeus – escreve Hannah Arendt – havia
líderes judeus reconhecidos, e essa liderança, quase sem
exceção, cooperou com os nazistas de uma forma ou de
outra, por uma ou outra razão. A verdade integral era que, se o
povo judeu estivesse desorganizado e sem líderes, teria havido
caos e muita miséria, mas o número total de
vítimas dificilmente teria ficado entre 4 milhões e meio
e 6 milhões de pessoas. Pelos cálculos de Freudiger
[Pinchas Freudiger, um "judeu ortodoxo de considerável
dignidade", segundo Arendt], metade delas estaria salva se não
tivesse seguido as instruções dos Conselhos Judeus".
Um aspecto é muito exaltado por Arendt nessa obra, é a
solidariedade e a capacidade de resistência à
opressão – qualidades raramente encontradas naqueles tempos
sombrios – mas quando elas aconteceram, os alemães recuaram.
"Quando [os nazistas] encontraram resistência baseada em
princípios, sua 'dureza' se derreteu como manteiga ao sol. [...]
O ideal de 'dureza', exceto talvez para uns poucos brutos semi-loucos,
não passava de um mito de auto-engano, escondendo um desejo
feroz de conformidade a qualquer preço, e isso foi claramente
revelado nos julgamentos de Nüremberg, onde os réus se
acusavam e traíam mutuamente e juravam ao mundo que sempre
'haviam sido contra aquilo', ou diziam, como faria Eichmann, que seus
superiores haviam feito mau uso de suas melhores qualidades. Em
Jerusalém, ele acusou 'os poderosos' de ter feito mau uso de sua
'obediência'" – ironizou Arendt.
A Holanda, lembra Arendt, foi o único país da Europa em
que os estudantes entraram em greve quando professores judeus foram
despedidos, e onde uma onda de greves operárias explodiu como
reação à primeira deportação de
judeus para os campos de concentração, principalmente de
Sobibor. Na Dinamarca, quando os alemães abordaram altos
funcionários governamentais para que fosse possível a
identificação de judeus por um emblema amarelo no
braço, eles simplesmente responderam que nesse caso o rei
também usaria a identificação e que se os
alemães insistissem haveria uma imediata renúncia
generalizada. Segundo Arendt, os nazistas recuaram e foram tratar de
criar outros meios para perpetrar seus crimes na região.