FATOS BIZARROS DE UMA NOITE DE VERÃO
por Ariela Boaventura
mozarela@hotmail.com
Foi como se a porta de um universo paralelo se abrisse. Juro que o
local ficava entre a Lancheria do Parque e a esquina da Fernandes
Vieira; nunca havia notado que existisse aquele bar. O ar-condicionado
fazia a vida mais humana para quem vive queimando as carnes nas
labaredas do verão.
O chope possuía sotaque germânico e preço decente,
mas não havia ninguém ali dentro além do dono do
bar, cuja barriga poderia servir de atestado da qualidade do chope;
aquele cara com jeito de assassino– olhar frio, movimentos
calculadamente pensados –, e um casal em uma mesa, ele um senhor careca
já beirando os sessenta, ela, uma senhora de idade indefinida
entre os quarenta e a menopausa; ambos bebiam e conversavam
animadamente sobre cervejas. Por todo o local, computadores, scanners,
e, embora o bar fosse uma churrascaria durante o dia, à noite
só se servia o chope como alimento. Ao fundo, após as
mesas do bar, duas motos estacionadas, como se fizessem parte da
mobília.
Sentamos à mesa ao lado da desse casal. O senhor careca
começou a ler o que estava escrito nas bolachas de chope que a
mulher havia lhe entregado pouco antes, uma pilha bolachas que chegaria
fácil a um metro de altura. Ele lia o nome da marca, onde era
produzida e todos os dados que se pode conceber que sejam colocados em
uma bolacha de chope, e logo passava à seguinte, e lia tudo,
como se aquilo fosse um ritual ou uma tara, já que não
havia outra explicação para alguém ler tantas
bolachas de chope em voz alta.
Pedimos nossos chopes e em questão de pouco tempo um motoqueiro
abre a porta do bar e entra com uma pizza imensa e uma garrafa de
guaraná, dois litros. Lembrei que aquilo era uma churrascaria e
ponderei que uma entrega de pizza era realmente algo muito curioso em
um local desses, sem esquecer do par de motos, do careca a ler as
bolachas e do homem com ar de assassino. A pizza era para ele, que foi
comê-la perto das motos, e ele comia friamente, como se comer
fosse um sacrifício ou uma atividade da qual ele não
quisesse fazer parte. Possuía uma barba preta e olhos de
ratazana; o cabelo rareava um pouco sobre a superfície do coco,
mas ainda não decidira abandonar os lados da cabeça.
Enquanto comia friamente um pedaço de pizza com a mão
direita, a esquerda se ocupava em mostrar-lhe os detalhes de uma
placa-mãe, cujas vísceras eletrônicas ele observava
com muito interesse.
O careca, já meio bêbado, continuava a ler as bolachas em
voz alta, porém, cada vez mais devagar; a mulher ouvia
atentamente, apenas fazendo qualquer observação de vez em
quando, para acrescentar algum juízo sobre as qualidades daquela
marca de cerveja.
Foi então que notei o cachorro. Por uma fresta da toalha da mesa
desse casal saía o rabo, uma cauda enorme, e não pude
deixar de olhar essas duas pessoas com certo temor. O cachorro dormia
debaixo da mesa.
O homem de olhar frio saiu da sua mesa e veio até os
computadores, perto de nós. Apenas olhava para as
máquinas, pousando uma mão sobre a CPU, como se as
abençoasse, ou como se entre ele e elas houvesse algum tipo de
entendimento tácito ou comunicação
telepática.
Notei que no balcão, onde sempre se coloca o vinagre, o azeite e
o sal, havia nove vidros de saponáceo perfeitamente
enfileirados. O chope estava ótimo, mas eu sentia uma
espécie de pânico: tudo estava um tanto esquisito por ali
e do jeito que a coisa ia poderia entrar qualquer absurdo por aquela
porta que seria acolhido como o fenômeno mais natural do mundo;
em mim alguma coisa estava prestes a se estraçalhar, sentia que
se houvesse mais um detalhe inexplicável, começaria a
gargalhar e fazer bilu-bilu.
Então, o careca e a mulher se levantaram para ir embora. Ela
acordou o cachorro, que se espreguiçou e fez os guizos que
carregava em volta do pescoço tinirem. O careca entregou
à mulher as bolachas lidas e ela agradeceu-lhe o sermão
sobre as marcas de cerveja. Tomou a coleira do cachorro nas mãos
e foi aí que observei que era cega.
Isso explicava o cachorro e a leitura das bolachas. Mas e as motos? e o
homem com jeito de assassino, com sua pizza delivery? E, por deus, como
explicar aqueles saponáceos?
Saímos dali, e a impressão era a de chegar de volta à órbita da Terra.
No outro dia, passei em frente ao local onde deveria estar o restaurante. Não encontrei.