VIDA E MORTE DE UMA BONEQUINHA
por Luiz Portella
lfpor@lujz.org


Meu azar maior não foi tomar consciência de mim mesmo sendo uma boneca. Sou uma boneca de borracha para diversão sexual de adultos... O que me desagrada mesmo, meu azar maior, é ter sido fabricada por uma certa empresa. A empresa oferece vantagens aos que enviam de volta um produto que iria pro lixo. E eu sempre fui reciclada desde que me lembro que eu sou eu. Um cara muito gordo sobe em mim, sou reciclada, um sádico me mete um ferro em brasa, sou reciclada, a namorada de um cara volta pra ele, sou reciclada. Tudo é muito parecido, eu sempre volto como boneca. Já não suporto ouvir falar sobre eterno retorno ou qualquer coisa de Nietzsche. Não que eu não goste de filosofia, na verdade filosofar é o que eu mais faço.

Minha principal reivindicação é ter membros que funcionem. Eu vejo esses humanos falando sobre inteligência artifical e rio. Agora, nada pra me deixar mais feliz que o desenvolvimento na área de robótica. Vão... vão dando asa pra cobra, eu digo, um dia eu chego lá. Não tenho pressa. Ter tempo é uma das coisas que me coloca em uma posição superior frente aos humanos, tanto que ser boneca não é ruim, mesmo estando indefesa e incapaz pela falta desses benditos membros. Ainda que tivesse sentimentos, minhas certezas são tão firmes, que minha posição frente a uma besta humana descontrolada seria como é, algo de dar inveja ao mais ferrenho estóico.

Veja essa besta que se diz meu dono. O cara tem umas facas Guinso e vive destruindo as coisas, quem o visse em ação e não o conhecesse talvez não pensasse que ele é daquele tipo que destrói dizendo --- Mesinha, o Marceneiro te deu a vida e eu a tiro, quem é mais poderoso? --- Poltrona, o Estofador te deu a vida e eu a tiro ao meu bel prazer, quem é mais poderoso? Logo que ele me comprou ficava tentando manter diálogo comigo, insistentemente, eu até cheguei a pensar que ele soubesse da minha condição... fiquei até assustada. Mas agora sei que ele tenta conversar com lâmpadas, portas e, mesmo com baratas. Outros humanos o tomam por meio-louco, e não sem razão.

O cara tem uma mente muito destrutiva. Num dia desses, em plena relação sexual comigo, ele surtou e quis acabar comigo com as unhas. Não conseguiu. E só não conseguiu porque não tinha uma Guinso dando sopa ao alcance das mãos dele. Sei que não vai demorar muito para que ele me retalhe com uma dessas facas. Essas malditas facas cortam até prego, pelo que vi na tv. Quanto ao meu fim, não tenho medo, como já disse, até aguardo, com um pouco de ansiedade, pra saber qual será meu futuro depois da minha morte. Morrer eu já morri muitas vezes, e todas de certo modo foram iguais, bem parecidas mesmo, agora sonho com algo diferente, não quanto a morte em si, mas quanto ao que vem depois.

Eu falo de morte mas não é a mesma morte dos humanos. Não, longe disso. Trata-se de um reciclamento. Uma coisa que não entendo bem é como meu corpo passa por todo esse processo; eu sou refeita, e depois de pronta eu mesmo me contesto: Foi uma ilusão? Fui mesma reciclada? Tem um intervalo em que minha mente pára, é como o sono da maioria dos humanos, sem sonhos. Diante de um espelho, quando tenho essa oportunidade, qualquer sombra de dúvida se evapora. Me vejo num corpo totalmente novo e diferente, de boneca, e isso sempre é um choque, muito estranho esse negócio. Ao mesmo tempo isso reforça minhas convicções sobre essa faceta de minha superioridade.

A memória de minha existência contínua e evolução intelectual remota há mais de um século de vida, coisa pouca, perto do que ainda virei a obter. Nesse intervalo já passei por dezenas de mortes, por quarenta e sete delas. Infelizmente, não lembro de minhas origens. Isso pode esperar pelos meus membros, quando poderei pesquisar ativamente a esse respeito. Outra certeza que tenho é sobre o equivalente da morte humana para mim. Coisa remota. Nem tenho uma palavra para isso. Dentre os acidentes que poderiam me levar a experimentar isso, o que mais me mete medo é o de acabar não sendo devidamente selecionada para o setor de plástico de uma empresa qualquer de reciclagem, e ficar soterrada, ir sendo comida pela terra. Isso é totalmente equivalente ao que acontece aos humanos. Tenho medo disso, mesmo sendo extremamente remota essa possibilidade. É remota porque se acaso eu for parar na rua ou num lugar esquecido, levo muito tempo para me diluir assim, e então haverá a contra-possibilidade, bem grande, de eu ser recolhida da natureza e ter o devido tratamento de reciclagem. Triunfo do sintético sobre o orgânico-natural.

Há outros acidentes que poderiam me liquidar em absoluto. Não, não falo de descontos monstruosos para limpar o estoque das lojas que me comercializam. Não é esse tipo de liquidação, mas o equivalente de eliminação. O engraçado é que não me ocupo disso. Mais que engraçado é prático, me ocupar disso não me traz nenhum benefício. Só temo o soterramento. Tanto que quando tem eleição eu não voto mas torço para o Partido Verde.

Também não é lá esse temor. Não confio apenas no PV. A sociedade dos humanos já está num patamar, que com ou sem PV no poder uma boneca não seria descartada sem reciclagem. Minha birra é com a reciclagem da tal empresa. Só sai boneca daquela empresa. Queria experimentar outras coisas. Ser uma embalagem qualquer como uma garrafa de refri, não tem a menor graça, eu sei, mas há coisas mais interessantes do que isso ou do que uma boneca sempre com boca e pernas abertas. E eu não falo somente quanto a aparência.

Também há uma dose de excitação. É bom ter uma certa incerteza na vida. Será que se por acaso eu passar a ser vários objetos pequenos de plástico, tipo tampa de caneta Bic, vou ser eu mesmo ainda assim?

Eu espero os tais membros articulados, isso ainda vai levar um tempo, esquanto isso vou me desenvolvendo intectualmente. Tenho também meu tempo de lazer. Jogo xadrez contra mim mesmo, por exemplo. Até gostaria de ler livros ou escrever, mas isso é impossível. Conheço sobre o mundo e sobre a língua quase que exclusivamente pela tv. Minha janela para o mundo é a tv. Até que não é muito raro a tv ficar esquecida ligada nas casas em que já fui morar, e eu ouvindo tudo, às vezes até podendo ver a tela. O que é raro é ela ficar num canal que tenha algum programa que preste. Não adianta eu gritar que quero tal programa de tal canal, é como se eu gritasse pra uma porta, não me ouvem.

Nessa hora me sinto como numa gaveta escura, que é onde mais eu fico. A maioria das gavetas escuras em que eu já estive eram também silenciosas, então eu ficava lá dentro só pensando. Uma exceção foi a gaveta dum quarto nos fundos de uma casa que ficava do lado de uma padaria. Quando eu estava naquela gaveta, dum guarda-roupa que ficava colado na parede que dava para os fundos da padaria, eu podia escolher, ou pensar ou ficar ouvindo a conversa de dois padeiros: O Sebastião e o Carlão. Um sempre brigando com o outro. Também posso considerar que eles foram uma janela para o mundo. Meus donos nunca foram janela alguma. Eles nunca me levaram num teatro ou cinema, passeio só conheço da fábrica pra casa de alguém e depois o inverso pra ser reciclada. Janela mesmo só a tv e os padeiros.

Descubro muitas coisas pela tv, algumas me deixam num estado de espíri-to que se eu soubesse o que é dormir, ficaria sem sono por várias noites seguidas. Como não sei o que é dormir, fico do mesmo jeito. O fato é que coisas novas e também questões antigas às vezes me tomam o pensamento por vários dias a fio. Por vezes chego a lugar nenhum, e olha que em geral a viagem é dura, cheia de dados, comparações, suposições, é de fazer sofrer a tal ponto que nem se pode imaginar. É, eu não imagino mesmo, não sei o que seja sentimento. Se dou essa idéia, a culpa é das palavras. Força de expressão, sabe como é, né?

Sinto nada, ainda assim é como se eu sentisse a gênese do sentimento, por causa das palavras, do uso das palavras. É por isso que às vezes, como agora, eu falo comigo mesmo, como se estivesse falando com outra pessoa, como se alguém estivesse me ouvindo. Mais e mais eu vou aprendendo a usar as palavras e assim, mais e mais vai se desenvolvendo em mim a capacidade de sentir (será?). Acho que pra ter isso eu deveria ter um cérebro. Sempre soube que sou uma película de borracha inflada de ar, sem cérebro. E se tenho um? E então? Vai que tenho um cérebro e não sei. Eu ter um cérebro explicaria o fato de eu pensar, ótimo, mas ao mesmo tempo levanta várias questões que ficam sem respostas. Trato o tema mais ou menos como alguns humanos tratam a existência de Deus: cientificamente Deus não existe, mas vai saber!

***

Enquanto a bonequinha ia pensando sobre cérebro, se tem ou não um, o ser que acreditava ser seu dono fez uma fogueirinha no quarto com alguns papéis. Depois, pouco a pouco, foi colocado um livro na fogueira, as páginas eram tiradas e colocadas na fogueira a medida que ela ia perdendo força e precisando se alimentar. Em seguida foi colocado um porta-retratos vazio, a primeira coisa de madeira que ele avistou. A madeira não pegou fogo assim de cara. E como não havia um outro livro à mão, a bonequinha, tremendo de medo, foi colocada na fogueira. A combustão não foi assim perfeita, surgiram labaredas de várias tonalidades. Laranja-escuro, vermelho, verde e azul. A madeira ardia enquanto o plástico rugindo em parte evaporava, em parte derretia, escorrendo cheio de bolhas, e em outra parte se carbonizava em figuras irregulares de uma pasta negra. Onde já não havia fogo a pasta se tornava sólida e quebradiça a medida que o calor se esvaia. Por fim foi jogado em pequenas quantidades, em um lugar ou outro, onde fosse preciso, um perfume a base de álcool.

O plástico deixara o fedor mais forte, e a fumaça negra. Posto que o apartamento era do terceiro andar, e no prédio além deste havia mais onze andares, depois de alguns minutos os bombeiros chegaram. O fogo já tinha acabado, a boneca não era feita com tanto plástico assim. Depois da visita dos bombeiros o meio-louco varreu o pó negro que sobrou da fogueira e o jogou no lixo orgânico. Sobre o piso restou uma grande mancha negra. Na casa, por alguns dias, um cheiro de queimado.