CEGUEIRA COLETIVA:
ESPAÇO PÚBLICO E MEMÓRIA CULTURAL EM PORTO ALEGRE
por José Francisco Alves
JoseFAlves@portoweb.com.br
Porto Alegre tem um espaço público diferenciado em
relação às cidades da América Latina,
obviamente tendo em vista os aspectos peculiares de sua
ocupação histórico-geográfica e da
evolução de seus bens simbólicos ao ar livre: o
urbanismo atípico, a arquitetura e os monumentos
públicos. Mas não é preciso ser sociólogo
para se notar que a crise no espaço urbano porto-alegrense
passou dos limites, num processo de bola-de-neve quase
impossível de ser detido. Enquanto capitais brasileiras andam
para frente no bem viver coletivo, Porto Alegre anda para trás,
a ritmo alucinado.
Há bem pouco tempo os monumentos furtados eram peças
conhecidas e documentadas na historiografia da cidade. Tínhamos
os finados bustos de Clemente Pinto, Jaime Pereira da Costa e
Maurício Cardoso. Em 1999, começou uma onda sem
precedentes de roubos de monumentos de bronze; em 2002, outra onda
devastadora, mas nenhum mentor foi preso ou processado.
Destruição jamais vista em termos nacionais; mais um
título porto-alegrense a ser comemorado? Mas o vandalismo da
pichação não era, até cerca de quatro anos
atrás, um fator tão forte de degradação das
obras de arte e bens públicos e/ou privados.
Em 2002, um certo indivíduo de nome e endereço conhecido
pichou 242 vezes o Monumento aos Açorianos (1974), com
garranchos de até dois metros de altura. Uma noite inteira de
trabalho destrutivo sem ser incomodado. E aqui se levanta outro
problema porto-alegrense: a cegueira coletiva, pois ninguém
nunca vê tamanha façanha. Na última, a
chaminé da Usina do Gasômetro teve frases gigantescas
pintadas. Poucos são capazes dessa proeza, de subir onde
realmente é muito difícil o acesso, ainda mais carregando
centenas de quilos de tinta e equipamento. É inaceitável
também que não seja percebido por ninguém o
“trabalho” empregado para imundiciar outra jóia rara que
é o Viaduto Otávio Rocha (1928-1932), bem como a vergonha
na qual se converteu o Monumento a Júlio de Castilhos (1913), em
pleno centro da praça dos poderes constituídos
(Governador, representantes do Povo, Igreja, Justiça,
Ministério Público). Mas ninguém vê,
é curioso. Pode ser uma forma de cegueira coletiva, das
autoridades e da população em geral. Que os
especialistas comecem a estudar o fenômeno.
E nada escapa da fúria dos desocupados. De paredes de
estabelecimentos de pequenos comerciantes a viadutos, praças e
prédios públicos de porte, como a própria sede da
agência municipal de Turismo e o Centro Municipal de Cultura.
Nesse último, é realmente difícil crer que o
ocorrido ali não tenha sido percebido por alguém,
cidadão ou vigilante municipal, ao ser transformado em privada
pública a sede do Atelier Livre, da Biblioteca Josué
Guimarães e do Teatro Renascença.
No caso dos monumentos imundiciados e/ou destruídos o fator que
propicia a degradação é a ineficiência
pública. Quando constatei na cidade do Rio de Janeiro o estado
geral dos monumentos, íntegros, tive que indagar na prefeitura o
motivo para tal eficácia. Começou pelo fato da prefeitura
carioca ter um setor de monumentos e obras de arte, “equipamentos
públicos”, nas palavras da moda, que requerem tratamento
especial por sua óbvia natureza como obras de arte: bens
simbólicos infungíveis. Lá, age-se imediatamente
ao vandalismo, porque isso é uma atividade administrativa
diária: a manutenção e conservação
da cidade. Os sujeitos picham, a prefeitura tem 24 horas para limpar;
picham de novo, a prefeitura limpa; picham outra vez e se limpa de
novo. Aí, vão pichar outro lugar, porque também
é uma guerra econômica, que as autoridades ganham, pois
até mesmo conspurcar contra o patrimônio público
custa dinheiro. A manutenção e conservação,
além de obrigação, é muito mais barata e
colabora em evitar as caras restaurações. Mas não
é só o Rio de Janeiro que tem setor especializado em
cuidar de monumentos e obras de arte, todas as cidades de porte
têm um setor desses, óbvio. Mas Porto Alegre, não.
Em vez disso, temos equipes especializadas em pintar cordões de
calçada.
Cada cidade tem seu problema. Morro de inveja quando em 2004 saiu uma
página inteira num diário de Recife sobre os maus-tratos
às obras de arte públicas. Na ocasião, havia sido
furtada a caneta do Chateaubriand, a bola de um futebolista e uma placa
comemorativa. Sim, isso mesmo, uma caneta, uma bola e uma placa. Um
escândalo.
Mas esse problema porto-alegrense, além da incapacidade
administrativa da prefeitura, cuja qualidade da prestação
de serviços começou a declinar acentuadamente ao longo
dos últimos cinco ou seis anos, não deve ser vista
unilateralmente. A permissividade no espaço público
é quase uma “cultura” local. Somos a única cidade no
mundo cujo cercamento e horário de funcionamento de parques e
praças de porte é um fator ideológico, não
meramente administrativo. Cidades como Rio de Janeiro, São
Paulo, Recife, Belo Horizonte, Curitiba, Nova Iorque, Paris, Barcelona,
etc., obviamente, estão erradas em manterem grandes parques e
praças com essas características.
Mas as coisas em Porto Alegre agora são assim. De
soluções transversas, inéditas, o que parece
importar é termos um ponto-de-vista diferente das demais. Agora
estão querendo botar câmeras para vigiar monumentos,
é Porto Alegre dando mais um exemplo diferente para o mundo.
Também vão remover o Laçador, por isso a ser
convertido em ex-símbolo espiritual e ex-marco
geográfico, a ser transladado para uma área fora do eixo
da BR 116 e longe da virtual entrada de Porto Alegre, que a
própria estátua havia transformado como tal. Vai
até mesmo ter solução à Disneyworld,
construindo para a estátua uma “coxilha” artificial. Houve um
tempo em Porto Alegre, não muito longínquo, que uma
imensa avenida foi mudada de direção porque se quis
preservar um marco de nossa história, a Usina do
Gasômetro. E o governo ditatorial da época preservou o bem
simbólico e mudou o trajeto do “progresso”. Como vemos,
além da cegueira que impede que observemos as legiões de
pichadores e ladrões do bronze atuarem, há a cegueira
coletiva da nossa memória cultural. O que está havendo
com Porto Alegre?
José Francisco Alves, maio de 2006
Autor, entre outros livros de arte, de "A Escultura Pública de
Porto Alegre – história, contexto e significado". Porto Alegre:
Artfolio, 2004, 264 p.