A CRÍTICA DEMOCRÁTICA DA DEMOCRACIA
por Luiz Marques
agageiro@terra.com.br
"Algum tempo haveria de passar antes que se desse conta de que... a
sabedoria não valia a pena se não fosse possível
se servir dela para inventar uma nova maneira de preparar o
feijão".
- Gabriel García Márquez, Cem anos de solidão -
Sem nenhum compromisso com as questões sociais, a
definição liberal de democracia considera-a um regime
político amparado no sufrágio livre, direto, secreto,
igual e universal, conforme um modelo simplesmente procedimental. As
liberdades civis de expressão, consciência e
associação seriam pressupostos para seu funcionamento. O
curioso é que até 1914 apenas a Nova Zelândia
(1893), a Austrália (1903), a Finlândia (1906) e a Noruega
(1913) correspondiam a este padrão, sendo que nos dois primeiros
casos há que ressaltar as exclusões por etnia em
relação às populações maoris e
aborígines e aos imigrantes não-brancos. A França
e a Suíça excluíam do processo democrático
as mulheres, o que só se modificou – à custa de
sucessivas batalhas de gênero – após os anos 30. Mas
até mesmo o sufrágio universal masculino foi uma
conquista recente na Holanda (1917) e na Inglaterra e na Suécia
(1918).
A tese desenvolvida por Geoff Eley (Forjando a democracia, 2005), a
propósito, é que a expansão das liberdades
jurídicas para todos foi uma decorrência de contextos
marcados por grandes mobilizações socioeconômicas,
como ocorreu no final da I Guerra (1918) e principalmente da II Guerra
(1945). Sobretudo a estas mobilizações, em
períodos de profunda crise do capitalismo, se deveram os
difíceis progressos da política democrática no
mundo. O importante é que nesta definição de
democracia as determinações políticas cabiam aos
segmentos detentores do estatuto de cidadania na sociedade,
através de seus representantes eleitos.
Assim compreendido, o poder repousaria na vontade geral. Joseph
Schumpeter (Capitalismo, socialismo e democracia, 1950), no entanto,
colocará a discussão em outras bases ao argumentar que as
deliberações políticas são tomadas, na
verdade, por uma minoria de especialistas ou ativistas, competentes ou
não, aos quais chamou de "políticos". A vontade destes
prevaleceria. Na concepção schumpeteriana, "o
método democrático é aquele arranjo institucional
para chegar a decisões políticas em que alguns
indivíduos adquirem o poder de decidir mediante uma disputa
competitiva pelo voto popular". Existiriam os cidadãos passivos
e os ativos: ontem, divididos por variáveis censitárias
e, hoje, por critérios de representação
política.
Tal entendimento tornou-se hegemônico na teoria
democrática contemporânea. Em última
instância, a democracia seria um regime em que os cidadãos
comuns exercem um controle relativamente alto sobre os representantes.
As ditaduras, pelo contrário, eliminariam o controle das
lideranças - pelo voto e pela imprensa. Não porque o
autoritarismo se oponha a clássica idéia de que a
liberdade de cada homem está limitada pela
preservação da liberdade (leia-se "propriedade") dos
demais. Mas porque anula a liberdade (aqui, leia-se "autonomia") de
participação política da coletividade. Numa
palavra: a natureza da democracia dependeria do maior ou menor grau de
controle sobre os líderes ungidos nas urnas. Na hipótese
de controle amplo se estaria diante de uma "democracia governante";
noutra, de uma "democracia governada".
Mas de que participação política e de que controle
se trata? Na perspectiva liberal, trata-se da
participação no quadro de um sistema representativo, em
que os participantes não precisam ultrapassar 30% dos eleitores
e em que as metas de vigilância cívica sobre os eleitos
são crescentemente repassadas à mídia. Afinal,
quanto maior a participação maiores os riscos de
desestabilização do status quo. Por isso, índices
baixos de engajamento político são sempre vistos com bons
olhos pelo liberalismo. A alienação e a apatia
políticas não comprometem o sistema; são a
condição subjetiva para a sua existência objetiva.
De resto, sob a ótica elitista, dita realista por certos
autores, a maioria do eleitorado não possui aretê, isto
é, virtude, na acepção grega da expressão
que implica capacitação técnica para gerir os
negócios estatais.
A pretensão de ampliação da
participação política levando em conta as demandas
sociais das maiorias é acusada de "populista", de acordo com a
classificação de Robert Dahl (Um prefácio para a
teoria democrática, 1956). Se, ademais, evocar poderes
irrestritos é condenada como "totalitária", na tipologia
de Hélio Jaguaribe (O experimento democrático na
história, 1985). Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
No construto liberal de democracia, adotado também pelos que se
reivindicam social-democratas, o tripé povo/liberdade/igualdade
é contido por um temor das classes dominantes que restrige a
soberania popular, uma vez que a participação é
apreendida como equivalente a um movimento de contestação
subversiva.
Vai longe o tempo em que Péricles buscava magnificar a
democracia por meio da intervenção da cidadania na
condução dos rumos da Pólis. A democracia pregada
na atualidade por um leque significativo das forças
políticas conservadoras é um gendarme dos direitos
individuais em defesa: a) da vida; b) da liberdade (reduzida a sua
forma negativa, como ausência de constrangimentos
arbitrários); c) da propriedade. Para assegurar o funcionamento
desta democracia dos direitos individuais, não-coletivos, diz-se
que a democracia representativa se afigura melhor aparelhada do que a
democracia direta, participativa.
A ironia é que mesmo a visão minimalista da democracia,
que se esgota no cumprimento das "regras do jogo" sem assumir
responsabilidades civilizatórias no plano social e
econômico, faz-se insuportável para a burguesia em
determinadas conjunturas. A proliferação dos sangrentos
golpes de Estado na América Latina durante o século 20,
em que os militares tiveram apoio do grande capital nacional e
internacional para evitar os avanços das massas trabalhadoras,
prova que os "de cima" não possuem compromisso de
princípio, ético ou político, com a legalidade. O
que indiretamente dá razão a Engels, para quem
"nós, os ‘revolucionários’, os ‘rebeldes’ somos muito
mais beneficiados pelos métodos legais do que pelos
métodos ilegais".
- O escracho da representação política no Brasil
No Brasil igualmente a esquerda com suas bandeiras se beneficiou com o
término das perseguições pela repressão
policial-militar. Criou e fortaleceu o PT, alcançou pelo voto
governos municipais, estaduais e o Palácio do Planalto, com a
ascensão de Lula à presidência. Uma
correlação de forças bastante desfavorável
na Constituinte que resultou na aprovação da Carta Magna
de 1988, contudo, bloqueou mudanças e aperfeiçoamentos no
arcabouço institucional da representação
política brasileira. Com o que a "Constituição
cidadã" reiterou as distorções que continuam a
afastar a nação do tipo ideal de uma república.
Uma oportuna contradição no documento constitucional
entre dois artigos serviu para legalizar o anti-republicanismo na
composição de nossa representação1. Se o
Art. 14 fixa que "a soberania popular será exercida pelo
sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual
para todos", já o Art. 45 prescreve que "nenhuma unidade da
Federação tenha menos de oito e mais de setenta
deputados". Institucionalizou-se assim os descalabros que fazem com que
o voto de um cidadão de Roraima equivalha ao voto de quase 30
cidadãos paulistas. E que os dez menores estados, que somam 15
milhões de habitantes, elejam oitenta deputados federais e
trinta senadores, ao passo que São Paulo com 39 milhões
de habitantes eleja somente setenta deputados e três senadores
por conta dos casuísmos herdados do ciclo ditatorial.
Estes mecanismos buscam fragilizar a representação
política dos aglomerados urbanos, cujo nível de
consciência e organização é superior,
assentando sobre o neocoronelismo das regiões atrasadas os
interesses do grande capital industrial, comercial e financeiro no
âmbito do Congresso Nacional. O arcaísmo das zonas rurais
é transformado, em conseqüência, em aliado das
frações capitalistas que se pretendem porta-vozes da
modernidade. Neste hibridismo político e econômico viceja
o conservadorismo que quer perpetuar a privatização dos
fundos públicos estatais. "Nem rir, nem chorar, mas
compreender", aconselhava um velho filósofo. É o
preço a pagar em função da transição
pelo alto que, sob a supremacia ideológica liberal, inaugurou a
redemocratização depois do longo parêntesis
autoritário entre 1964 e 1985.
Não há dúvida de que a democracia realmente
existente, entre nós, não é representativa no
sentido republicano: sua proporcionalidade é desproporcional,
não respeita o quesito "cada cidadão adulto, um voto".
Este é seu vício de origem. Calar em face desta
distorção é corroborar a
expropriação dos direitos políticos do povo,
é tutelar uma liberdade incompleta, é abdicar de uma
igualdade fundamental. Correções necessitam ser
encaminhadas através de uma revisão constitucional que
celebre uma verdadeira democracia representativa.
Que as elites tradicionais não problematizem a
falsificação permanente da soberania popular é
compreensível. Incompreensível é que a
"ciência política", as agremiações de
esquerda, as centrais sindicais, as entidades profissionais e os
movimentos sociais não agendem a denúncia sobre esta
situação extemporânea. E propostas para a sua
superação concreta.
É chegado o momento de estimular iniciativas
extra-institucionais que dêem visibilidade ao tema e
responsabilizem os subsidiários das deformações
que violentam a soberania popular, eleição após
eleição. Os defensores abstratos do Estado
Democrático de Direito não passam de demagogos. Sem
enfrentar republicanamente este nó, a grande política
chafurda numa vil minoridade. A luta não se esgota na reforma
política para garantir o financiamento público de
campanha (a igualdade de oportunidades), a fidelidade partidária
(o reforço das estruturas partidárias) e o voto em listas
elaboradas pelos partidos (para despersonalizar e repolitizar a
política).
Em suma, a crítica democrática da democracia é uma
tarefa educativa inadiável e essencial para as forças
políticas, de fato, democráticas. Juntamente com o
doloroso ensinamento proporcionado, pelo avesso, em
função das "más companhias" (Roberto Jefferson et
caterva) e da "estatolatria" que embalou o sonho burocrático de
parcela dos dirigentes petistas, esta é uma das principais
lições a extrair da crise explorada à
exaustão pela mídia e pela raivosa reação
tucano-pefelista2. Sob este aspecto, o desafio da esquerda no
país é duplo: consiste em desconstruir os discursos
ingênuos ou manipuladores sobre a democracia política
mostrando os desvios que a distanciam da representação
proporcional e, em simultâneo, fomentar as diversas
manifestações de democracia participativa sintetizadas no
imaginário de um OP nacional.
Não faltarão, claro, as céticas
ponderações sobre "a crescente extensão
territorial e populacional do Estado moderno e a crescente complexidade
de sua administração" com a intenção de
justificar e legitimar as "formas delegadas de poder". Estas
orações fúnebres ignoram as possibilidades
contidas nas inovações tecnológicas na área
das comunicações, a partir das quais é
possível reinventar as modalidades de democracia do
Estado-cidade utilizando a telemática para a potencializar a
participação direta da sociedade, por um lado.
Por outro, ignoram a aptidão das organizações
comunitárias para estabelecer uma rede de apoio para a atividade
política voluntária. No fundo, o que sustenta as
objeções com este teor é o velho preconceito
burguês-tecnocrático contra a capacidade do povo assumir
as rédeas do próprio destino. O povo poderia, no
máximo, escolher seus representantes para o Executivo e o
Legislativo mas jamais autogovernar-se. Governar não seria coisa
para pobres3. Que ledo engano da Casa Grande: a esperança de
encontrar um sujeito político e social que saiba "uma nova
maneira de preparar o feijão" reside justamente no
pobretariado...