A JORNADA DE LULA, O HERÓI INVENCÍVEL
por Carlos Gerbase
gerbase@terra.com.br
A grande força da candidatura de Lula, que sobrevive a meses de
um bombardeio incessante das forças de oposição -
de direita, de centro, de extrema-esquerda, de parte
considerável da esquerda histórica e de parte de seu
próprio partido - é um fenômeno que espanta o
Brasil. Como ele consegue manter-se de pé, quando quase todos
seus companheiros mais próximos já caíram? Como
ele consegue sustentar sua popularidade, quase intacta, passando por
acusações – diretas ou veladas – de quase todos os
órgãos de comunicação do País? A
explicação, meus amigos do Não, deve ser buscada
onde menos se espera: nos bons livros de roteiro, em especial na
“Jornada do Escritor”, de Christopher Vogler, que, por sua vez é
uma adaptação de “O herói de mil faces", de Joseph
Campbell.
Este texto é rápido e vai direto ao ponto, porque
não é preciso argumentar muito para mostrar a proximidade
da trajetória pessoal de Lula com a trajetória
mítica descrita por Vogler e Campbell, que, imagino, são
autores conhecidos pelos meus leitores. Por outro lado, não
haveria espaço aqui para descrever didática e
minuciosamente estas trajetórias, com todos os seus personagens
mitológicos, e suas situações arquetípicas.
Sugiro a eventuais não-leitores de Vogler e Campbell que comprem
as obras citadas. São excelentes. A partir desta leitura, aposto
que vão concordar comigo: a popularidade de Lula não
é derivada de sua obra política, nem dos erros e acertos
de sua administração. A explicação
não está no terreno racional. Está no terreno do
inconsciente coletivo, da irracionalidade, das forças
subterrâneas que são acionadas quando o ser humano vai
tomar uma decisão, o que inclui escolher seu presidente. Lula
é quase invencível porque está prestes a cumprir
uma jornada inteira como herói. Vejamos:
- Situação inicial do herói
É um nordestino pobre e ignorante, destinado a uma vida
miserável num ambiente de privações de todo o
tipo. Mas tem duas forças arquetípicas: o caráter
indômito e o carinho da família;
- Chamado para a aventura
Sair desta terra miserável e procurar uma nova vida em
São Paulo. Para isso, tem de abandonar a família e,
solitariamente, enfrentar um ambiente desconhecido e cheio de perigos;
- Peripécias da aventura
Perde um dedo num torno mecânico (atravessando assim o primeiro
portal, com uma marca no próprio corpo), torna-se líder
sindical durante a ditadura e é preso (situação
arquetípica), mas sai da cadeia fortalecido (atravessando o
segundo portal); funda um partido político, arrebanhando assim
um exército para seguir com ele (mais uma situação
arquetípica); neste partido, luta ferozmente para ser eleito
presidente, perdendo 3 vezes seguidas. Cabe ao herói ser
derrotado em muitas batalhas, para inimigos poderosos - Collor e FHC -
mas sair mais forte e mais sábio de cada uma delas;
- Papel dos Mentores na fase final da jornada
Eram dois os seus principais mentores neste momento, José Dirceu
e Duda Mendonça. O primeiro, com ele desde o início da
jornada, fez as alianças concretas e necessárias para
limpar o terreno político, com os empresários e a
mídia. O segundo - mentor mais novo e com novos poderes - deu ao
herói o anel mágico da transmutação: a
publicidade. O herói, face a um inimigo poderosíssimo,
tem que se disfarçar. Lula disfarça-se maravilhosamente.
Tão maravilhosamente que, como perceberemos depois, não
se tratava de um disfarce;
- A luta de vida e morte com o inimigo
Começa a campanha eleitoral de 2002, em que José Serra,
feio e antipático, é o próprio retrato do “mal”,
bem ao contrário do simpático, bonito e sábio
Fernando Henrique Cardoso, que também sabia, e muito bem, viver
um papel de herói. Lula mata Serra e conquista o elixir (a
presidência) com que vai salvar sua terra miserável (o
Nordeste) e, magnânimo como todos os heróis, ver que a
miséria está espalhada em todo o Brasil. Promete,
empossado, combater a pobreza, criar empregos, etc.
- O começo do retorno para casa
Lula, que agora é Presidente e tem bons ternos, além de
um corte de cabelo civilizado, ainda mantém intactas algumas
características fundamentais de sua origem: o dedo decepado, a
fala espontânea (cheia de metáforas populares), o jogo de
futebol na Granja do Torto, os gostos simples, etc. Em 3 anos, cria
alguns programas assistencialistas, como o Fome Zero, e está
sempre atento ao Nordeste e aos lugares mais esquecidos do País.
Há resultados concretos, como a diminuição dos
índices de desemprego e o Prouni (dando espaço para
estudantes pobres), mas nada disso se compara com um sentimento: Lula
tem o elixir e está começando a usá-lo. Lula viaja
muito. Não gosta de Brasília, das pompas do poder. Lula
gosta do Corínthians;
- Uma nova luta de vida e morte antes do clímax
Os inimigos pareciam mortos, mas não estavam. Eles voltam, mais
sanguinários do que nunca. Uma traição de um
antigo aliado (que, obviamente, era tão melífluo que
enganou o herói) revela que, entre os seus amigos, havia gente
ambiciosa e capaz de “agir errado”, sempre à sombra do
herói, que nada sabe. As acusações atingem seus
dois mentores, Dirceu e Duda, que estão mortos no plano
simbólico, e muitos companheiros da jornada, como Genoíno
e Gushiken, que estão feridos gravamente e provavelmente fora de
combate para sempre. O próprio exército (o PT),
desorganizado, cheio de divisões internas, parece combalido e
incapaz de responder ao inimigo. Os generais discutem entre si. Este
é o momento que estamos vivendo;
- O final desta jornada (e o começo da próxima)
Mas o que importa tudo isso? Quem liga para o PT? Lula, o grande
herói, é um solitário, como era um
solitário ao deixar sua terra natal para a grande aventura. Lula
declarou que foi traído pelos seus amigos no governo, lembram?,
e alguns críticos disseram que isso era ruim. Pelo
contrário: Lula ficou ainda mais heróico, pois o
herói, principalmente no final da jornada, deve resolver tudo
pessoalmente. Exército, mentores e aliados já fizeram sua
parte e estão mortos. Agora é Lula contra Alckmin, o
picolé de chuchu. Essa briga, se for homem contra homem,
está ganha pelo homem-mito. Lula é maior que o PT. Lula
é, com certeza, o maior de todos os mitos brasileiros da virada
do século. Se ele passar incólume, como tudo indica,
pelos ataques do inimigo nos meses que antecedem a
eleição, vence as eleições. É
simples. Basta ler Vogler e Campbell.
Até as eleições, Lula provavelmente
receberá outros golpes, quem sabe até poderosos, mas o
único golpe capaz de derrubá-lo teria que ser dirigido
contra o mito Lula. Não adianta querer atingir o
político, figura menor, totalmente dispensável numa
jornada heróica. Algo que realmente perfurasse o seu escudo e o
fizesse perder o anel da transmutação. Algo que o
atingisse pessoalmente, moralmente, humanamente. Mas isso, meus amigos,
já foi usado pelo Collor (caso Lurian, lembram?) e duvido que um
episódio desse tipo possa ser criado ou ressuscitado. Se as
oposições não provarem, com prova
incontestável, que o herói Lula “na verdade é um
ladrão” (tem milhões na Suíça, no nome dele
e da Marisa), “na verdade é um devasso” (participou das orgias
da turma de Ribeirão e levava sempre a Marisa), ou “na verdade
é um comunista disfarçado” (os churrascos na Granja do
Torto são com carne de criancinha), o herói Lula completa
sua jornada, vence as eleições e pode usar seu elixir
durante mais 4 anos para nos salvar a todos.
O poder do mito deve levar Lula à reeleição. Se
isso será um final feliz? Bom, aí é outra
história. Eu já contei a minha.
Lisboa, 24 de maio de 2006