PERIPATÉTICO
por Juliano Dupont
julianodupont@hotmail.com
Como Porto Alegre é linda. Até a sua predominante feiura
é tocante. O decadente centro de Porto Alegre me expressa com
uma alegria e uma dor inefáveis. As novas
construções, que poluíram o centro e o tornaram de
certo modo irrespirável, teimam também em envelhecer
precocemente, talvez devido ao contato com a velharia. Tudo que
é novo ali é já velho e em ruínas. O
melancólico centro é o puro espírito
portoalegrense, um misto de arrogância e vergonha, de quem
humildemente pede desculpas, sabendo-se, no fundo certo e superior.
Gaúcho, em suma.
Eu, vindo do interior, encontro aqui um outro interior, um pouco maior
e mais generoso, meio cosmopolita, meio província. Não me
sinto, nem sou de fato, da capital. Sou estrangeiro aqui, como, de
resto, em qualquer parte. Mas a distância me permite
admirá-la com uma paixão e uma entrega mais intensa dos
que aqui nasceram e viveram toda vida. O olhar do estrangeiro é
sempre clínico, e para um estrangeiro como eu, que mora aqui, o
dia-a-dia vira turismo. É um privilégio, sem
dúvida. (Surpreendente, acabo de descobrir que estou na vida a
turismo! Isso solucionará, conceitualmente, vários de
meus problemas).
Porto Alegre é estranha: é uma cidade que escolheu ser
feia. E é isso o que mais amo. O muro da Mauá é
prova incontestável de que a população odeia sua
cidade. Do contrário, impediria sua criminosa
construção. Mas ainda assim, privada de ver um dos pontos
mais lindos do lugar em que vivem, e rodeada por horrendas
construções, resiste uma beleza e uma melancolia
únicas por aqui, na amena e divina luz do paralelo. O sol se
deita, a brisa morna e calma do verão me enche de uma triste
esperança, os bares enchem-se de homens e mulheres desesperados.
Nas ruas, fantasmas retornam às suas casas, como formiguinhas. A
igreja das Dores me lembra de tempos que eu não vivi, a rua
Espírito Santo, que, passando pela catedral uma vez,
bêbado, me levou até a cidade baixa para aforgar-me de
vez, me faz imaginar histórias de assassinatos, de
mistérios, crimes passionais, de vampiros e de fantasmas. Vejo
os caudilhos da revolução troteando pela Riachuelo,
chegando à Praça da Matriz, e me lembro que isso é
delírio, e que somos perdedores.
Não bastasse isso, estão aqui as mulheres mais lindas do
mundo. Tão meigas, tão cruéis, algumas
víboras, outras, gatas delicadas e manhosas, desesperadas, `a
espera de um carinho, ora rindo, ora debochando do meu sotaque sem
pátria. E eu aqui, tão perto, galáxias distante,
caminhando pelas mesmas ruas, que nos tornam iguais, eu e todo mundo,
resistindo, na minha fortaleza imaginária, a mente uma rocha, no
delírio da vida. Porto Alegre não é uma geografia
do espaço, é uma ilha na alma. Vivo assim, velejando,
independente dos humores do vento.
Caminho pela rua da praia e vejo o Quintana, ali, um anjo, pairando
sobre a multidão. Um dia, no entanto, dirijo-me a ele. Numa
geografia ignota do centro da cidade, caminhamos em
direção a um bar, oásis na rua deserta. Entre um
trago e outro, apenas o silêncio. Olha-me como uma
criança. Eu, angustiado, espero uma resposta, uma resposta para
as perguntas que nunca consegui formular, cuja premência grita em
meu silêncio, meu silêncio ensurdecedor dos desesperados.
Secamos, lentamente, nossos copos. Partimos. Talvez com asas,
não me lembro, aportamos novamente na Praça da
Alfândega. Ele me acena e diz: Adeus. E desaparece na
multidão. Eu torno ao deserto da massa.
Durante muito tempo nada fiz por aqui. Estava inscrito na faculdade,
mas entediado com o curso e comigo mesmo, abandonei-a. Passava os dias
em casa lendo e ouvindo música. Outras vezes ia ao cinema, e
mais do que os filmes, ficaram marcados na memória as
errâncias pelos bairros e ruas que me levavam até ele.
Mais do que o destino, interessa-me o caminho, porque o filme
continuava a acontecer enquanto deambulava, sozinho, pelas ruas de
outro país. Todo lugar é um outro país. E, nessas
peripatetices, sentindo o cheiro da rua, dos homens, o perfume do sexo
das mulheres, ouvindo as crianças jogando na rua, diante de toda
essa beleza, da luz intensa e doce, rosa, sobre os telhados da cidade,
fico triste e choro. Choro por não suportar tamanha alegria, por
não caber em mim a felicidade. Resigno-me. A alegria alheia, por
vezes, me basta. Sei que a esperança é o refúgio
dos fracos. Então não me consterno, já disseram
que o pior é ter piedade de si mesmo. Mas não, não
é tristeza. É a alegria mais abundante da Terra, que
transborda no corpo, que exsuda nos poros, que goza no sexo e no
coração. É a alegria dos poetas, dos
bêbados, e minha, de um poeta sem poesia. Porque a mim tudo se
revela divino, sagrado e belo, então perco o pensamento, e a
arte se torna redundante.
A parte mais linda de Porto Alegre é aquela que se estende da
Caldas Júnior até o Gasômetro, na Rua da Praia.
Ali, depois que a multidão morre na Alfândega, o
espírito livre almeja chegar ao Guaíba. Mas, errante,
aporta pelos bares e brinda à confraternização dos
tristes.
Dias atrás, fui visitar a Bienal, no cais do porto. Achei que
seria enfadonho e perda de tempo. Eram sete horas. Das obras expostas
pouco me lembro. Mas nunca esquecerei do espetáculo de luz e cor
que, no céu, o sol, exibido, desnudava toda sua sensualidade. No
parapeito, frente ao rio (que é lago) estava uma moça
linda. Comungamos durante todo o tempo em que o céu, tela do sol
e das estrelas, nos pintou a vida que será, nos chorou a vida
que foi e não devia ter sido. Eu e ela, dois sonâmbulos,
à beira do nada. Não lhe falei, não a conheci. Na
verdade, nem me lembro de seu rosto, apenas que era bonita e que tinha
pernas apetitosas. Mas se nos cruzarmos por uma rua, a reconhecerei,
estou certo. No entanto, ali, no pôr-do-sol mais lindo do
planeta, apenas sua sombra tocou-me o corpo, percorrendo os vinte
metros que nos separavam. Primeiro, achei injusto e ridículo.
Depois, vi: estava fascinado por uma imagem, nada mais. E aquela sombra
desfez o transe. Ela era apenas o meu desejo. Sei que há algo
entre ela, a guria, e a cidade, mas não sei ainda. Preciso sair,
imediatamente, daqui.
Primavera 2005