O HOMEM SEM ROSTO
por Ariela Boaventura
mozarela@hotmail.com
Interior, noite.
Ele mira na minha orelha esquerda e atira.
A cavidade da orelha lateja, dói como otite aguda. Saio
calmamente pela porta, trôpego. Antes de chegar à rua,
apalpo a alma e sinto uma súbita vontade de fumar. Vou direto ao
posto de gasolina, desesperado, comprar cigarros.
Fade out.
Fade in.
Interior de loja de conveniência, noite. Ponto de vista do desgraçado.
"Um maço de Marlboro vermelho por favor."
O atendente olha para mim e vê um homem atarantado, ignorante da vida a se esvair por entre seus próprios dedos.
"Acho que você deveria ir a um hospital", aconselha.
"Vermelho", insisto.
Ele me passa os cigarros. Estendo o dinheiro em sua
direção. Sinto que meus pés estão molhados.
Olho para o chão. Vermelho. A loja fica de pernas para cima.
Fade out.
Fade in. Fotograma superexposto. Fusão entre a cena branca com silhuetas indistintas.
"Temos que fazer uma incisão aqui", diz uma voz com timbre de
autoridade legitimada pelo conhecimento. Conhecimento é algo
cultivado ao longo dos anos entre estantes de biblioteca e madrugadas
regadas a café. Por isso essas olheiras, doutor.
Luz branca. Vi uns olhos boiando no fundo de um corredor de vidro. Os
olhos se aproximaram e o corredor foi puxado para trás, como em
uma lente; o fundo ficou distante em um segundo de zoom.
"Mas temos de optar entre o esquerdo e o direito. O esquerdo ficou
seriamente afetado, mas ainda pode funcionar, com seqüelas, claro.
Já o direito está intacto."
"O esquerdo, o esquerdo", pensei, em súplica muda, ao cirurgião.
"Temos de optar", ele insistiu. Não via nada além de seus
óculos, aquelas olheiras, o reflexo do avental azul sobre uma
lâmina.
"O esquerdo, o esquerdo", implorei em silêncio.
"Acho que as conseqüências serão menores se optarmos
pelo direito", disse alguém invisível, a quem odiei.
"O direito não", pensei, lembrando que esse é o lado da
lógica, da raiva, da tristeza, do espaço. Prefiro a
linguagem, a euforia, o amor.
Azul éter refletido na lente dos óculos: olhos de
espelho. Antes que se afastasse de meu rosto e sumisse de todo, vi
naqueles olhos as rugas de minha cara contraindo-se em uma dor muda; a
luminosidade branca da sala desmaiou aos poucos.
Fade out.
Fade in.
Interior, noite.
Quando dei pelo fato, ele já estava com o revólver
cutucando minhas costas. Eu lia o jornal, ainda indignado com a
notícia a respeito do rebaixamento do meu time para a segunda
divisão do campeonato. Brigava em voz alta com o jornal,
maldizia o técnico e tentava dar uma boa justificativa para
tamanha barbaridade antes que fosse alvo da galhofa colorada. Senti
algo gelado em minha orelha esquerda, e sem pensar passei a mão:
mosca.
- Passa a grana, maluco - ele ordenou.
Cagaço é pouco: dei um pulo; a cadeira em que me sentava
caiu para trás, como se risse da situação.
Emudeci. E eu que não costumo guardar dinheiro em casa. Pior pra
mim.
Não cheguei a vê-lo. O cara me colocou com o nariz na
parede. Pelo som eu decifrava: abria gavetas e janelas de
armários, fuçava em tudo o quanto era caixa e mocó
que encontrava pela frente.
- Se não tem grana tem baura. Cadê, a erva, magrão?
Só tinha uma ponta, guardada atrás dos livros na estante.
Era ridículo, o cara ia me bater se eu entregasse a ele
só uma pontinha, me mandaria meter aquilo no cu, no
mínimo. Eu morro de medo de apanhar, não sei bater, sou
asmático.
Como eu continuasse sem dar um pio, o cara se irritou e me deu uma
biaba do lado do ouvido esquerdo. Eu fechei os olhos, de dor, de medo,
de respeito.
- E aí, qual é, bacana? Vai ficar aí com essa cara
de quem se borrou nas calças? Anda logo com isso. Olha que te
enfio uma azeitona nos cornos!
Apontei para o bolso das calças, onde estava minha carteira com
cartão do banco, talão de cheques e a lista de compras do
supermercado (mamão, leite, café, pão e sabonete).
- Eu vou perder a paciência contigo, amizade.
O homem sem rosto disse isso sorrindo, alongando as sílabas;
saboreava a idéia de poder me fazer mal. Eu só conseguir
fazer que não com a cabeça, pedia a Deus que ele fosse
embora dali e me deixasse em paz; jurei que pararia de fumar, de beber,
de tudo. Em um segundo o mundo explodiu dentro da minha cabeça.
Fade out.
Fade in.
Interior do hospital, dia.
A enfermeira entra, sorri e me dá bom-dia. Larga a bandeja com
dois comprimidos sobre a mesa ao meu lado, aperta algum botão
que faz a cama gemer e se sentar e diz:
- Olha que gostoso seu café da manhã! Está se sentindo bem?
Não respondo: virei uma samambaia.
Mas gostaria de perguntar onde foi parar a minha orelha, de saber qual
foi o gomo da minha cabeça que foi jogado aos cães e,
principalmente, se posso fumar um cigarro. Fade out.