SIN CITY
por Juliano Dupont
julianodupont@hotmail.com


Mais instrutivo que assistir a Sin City foi testemunhar o sadismo do público. Quanto a mim, no entanto, foi puro masoquismo: fiquei até o final. Como nunca ligo a televisão, por depender da hedionda tv aberta, regozijei-me, confesso, em estar neste Coliseu asseado e limpo de uma sala de cinema. Somos civilizados, temos poltronas confortáveis, ar condicionado e uma grande qualidade de imagem e som para assistirmos, em close, um homem tomando uma facada, guinchando como um porco no momento do abate. Grande percurso civilizacional, o nosso. Continuamos as mesmas bestas de sempre. Prova incontestável disso é a mera existência de Hollywood. Querem mais? Para quem tem ainda fé no homem, basta refletir um pouco sobre a permanente guerra entre israelenses e palestinos, ou sobre a situação social brasileira, por exemplo, para chegar a conclusão de que a humanidade é uma causa perdida. Nelson Rodrigues disse com propriedade que se o mundo acabasse, não se perderia nada.

Que se produzam tais filmes, entende-se. Que o público se divirta assistindo à violência gratuita, a esguichadas de sangue estilizadas à la Tarantino, à pancadaria pura, que o público embasbaque-se com uma história em que o protagonista, atuado pelo decadente Mickey Rourke, um brutamontes débil mental e delinqüente, após passar uma noite com uma prostituta que nunca antes havia visto, a encontra morta e, assim, subitamente, diz-se apaixonado pela mesma e jura vingança aos responsáveis assassinos de sua amada. Daria um grande filme se fosse estrelado pelos integrantes do Iron Maiden: sangue, perseguições, pancadaria, um clima dark (gótico, para os moderninhos) e um gorila (metrossexual malhado ou pitboy de academia) apaixonado. Deveras comovente. Que o público aceite tal abacaxi, misto de Rambo e novela mexicana, com pose de Pulp Fiction, compreende-se. Mas não se perdoa. O filme é vil, baixo, de um sadismo infantil. Que puritanos deleitem-se com tal pornografia é natural, assim como acho natural que adolescentes americanos invadam armados suas escolas e assassinem (como o Rambo fazia, lembram-se?) seus coleguinhas. O primeiro mundo, principalmente o anglo-saxão, é muito chato, é justo que as pessoas façam o favor de matarem-se umas as outras. Eu mesmo, se lá vivesse, temo, que com bom grado metralharia uma dúzia de infelizes. Mas, graças a Deus, sou latino e, como todo latino, encontro no sexo a resposta para todos os problemas existenciais. No púbis está a nossa redenção, irmãos! Convenhamos, é bem melhor que ser um psicopata impotente ou um neurótico sado-masoquista.

Sin city é um filme de macho. O protagonista mata todo mundo e come a mocinha no final. Mas isso não se vê, estamos em Hollywood, onde é proibido vermos caralhos e bocetas. O público, moralista, sente-se agredido. Por que podemos assistir a tanta violência e sangue e não podemos ver uma boa e bela trepada num filme americano? O sexo é muito melhor que a violência, é mais útil, mais prazeroso, mais importante. É a causa e a conseqüência da vida humana, seu início e seu fim. No entanto, o público quer mais sangue. As pessoas das grandes cidades estão apavoradas, morrendo de medo em seus apartamentos minúsculos, com medo do próximo, com medo da violência, dos marginais, dos traficantes, do governo, das contas de luz, água e telefone, com medo de caminharem na rua, de saírem à noite, com medo da vida. Exausto consigo e com o mundo, então, o público quer matar, contemplar o espetáculo do sangue jorrando em close, de uma perna amputada, dos gritos dos inocentes (não existem inocentes), de um soco no estômago, de um olho e um supercílio estourados, de um nariz sendo arrancado. Eu, ao contrário do grande público, prefiro o sexo. Reconheço o que há de Tânatos em mim, mas sou devoto de Eros. A vida é a minha única religião. Por isso meu desprezo por estas manifestações psicóticas do american-way of life, que encontra no cinema a sua melhor expressão. Se bem que, sendo justo, não é só de violência que vivem os blockbusters. Eles também falam de amor e sexo, mas é, sempre, meloso demais. Em suma: insuportável.

O mundo é cruel, e a vida é dos mais fortes. Então, matemos todos aqueles que obstruírem nosso caminho. O capitalismo é selvagem, temos de destruir nossos inimigos. É isso o que Sin City quer dizer. E tudo por causa de uma mulher desconhecida. Chego a chorar, só em lembrar. Este detalhe do roteiro iguala os sádicos fãs do cinema da violência às suas mãezinhas noveleiras, católicas e bem-comportadas, que passam o domingo assistindo ao Gugu e ao Faustão, depois de haverem passado a semana toda tricotando frente aos folhetins televisivos. Sempre achei que por trás de todo metaleiro havia um bunda mole, quero dizer, um coração mole.

Talvez violência e sexo sejam a mesma coisa, afinal ele mata todo mundo por causa de uma vagina defunta. Macho é quem mata. Entendo que a violência é a mola propulsora da História, que a vida é e sempre foi do mais forte, indubitavelmente. Porém, Sin City (e, aliás, todo o cinema Hollywoodiano) contrariam fortemente a teoria da evolução das espécies.

O sucesso de Sin City por estas plagas é o indício de que a constipação cultural brasileira é mais grave do que se supunha. Além de produzirmos genuíno esterco nacional, seja no cinema e na televisão, ou no horrível cacarejo que se tornou a música brasileira, importamos também o sofisticado lixo do imaginário americano. Não fossem suficientes nossos próprios problemas, agregamos à nossa ignorância, à nossa miséria, à nossa inércia, a violência patológica americana. Concordo com Arnaldo Jabor, ao dizer que deveríamos proibir a exibição desses filmes. Censuremos o fascismo americano. Abaixo o imperialismo da estupidez!

Alguém já disse que a dominação cultural é muito pior que a dominação econômica, pois exerce seu domínio num plano muito mais delicado e recôndito, agindo no imaginário das massas, manipulando desejos, impondo subliminarmente padrões, comportamentos, e a necessidade de consumo do desnecessário, com essa delicadeza sui generis que nenhum regime tirânico anterior havia pensado. Logo, muito mais poderosa, porque se impõe sob o signo da liberdade. Que liberdade é essa que impede o mundo de realizar e exibir suas próprias cinematografias? Que liberdade é essa de transformar o lazer do humanidade num passatempo de amebas?

A indústria da diversão é a mais triste de todas. E mais triste ainda é ver esse público sonâmbulo, aceitando tudo passivamente, transformado numa massa autômata de fantasmas nesse circo de horrores que é a vida moderna. Um só ventríloquo, e uma horda imensa de marionetes.