TESOURO DA JUVENTUDE
por Ernani Ssó
ernanisso@uol.com.br


SOLIDÃO I

Triste como um bar vazio num domingo. Acabamos falando do tempo com o garçom.

COSA NOSTRA

– Precisamos formar um sindicato – disse o bandido. – O crime organizado não pode continuar indefinidamente nas mãos da polícia e dos políticos.

CHUCHU

Outra prova da absoluta falta de sentido da vida é o chuchu. Chuchu é água e celulose. Chuchu não tem vitamina. Nem gosto bom tem o chuchu. Se chuchu prestasse, não dava tanto. O chuchu não tem justificativa nem como suflê. Não serve pra nada. Apenas existe. A gratuidade do chuchu é a melhor prova de que o Universo não tem um plano, não tem um enredo, ou se tem esqueceram do chuchu. Enfim, não há nada sob controle. O chuchu não tem nem utilidade decorativa. Se o chuchu existe, tudo é permitido.

ROMANCE POLICIAL

– Preciso dados – disse o detetive para o cliente. – Só Deus começou do nada e veja na merda que deu.

REFORMA AGRÁRIA

– Lembrem-se – disse o fazendeiro aos empregados – que a liberdade de vocês termina onde começa a dos meus bois.

NOVÍSSIMO TESTAMENTO

Deus existe. Mais informações no guichê ao lado.

SOLIDÃO II

Um velho numa roda-gigante, num parque vazio, num domingo em que todos tinham o que fazer.

CENA

O dia amanheceu cinza. Na praia, três cachorros, uma aleijada, um caminhão de bebida. No bar, um disco arranhado de carnaval.

PARA UM DICIONÁRIO DE PEQUENAS MISÉRIAS

Unha encravada - Aquilo que torna nove entre dez estrelas do cinema humanas como você.

METAFÍSICA DE GALINHEIRO

A cada ovo a galinha faz um escândalo. Por quê? Não deve ser dor. Não depois do primeiro. Talvez seja o susto pela perfeição do ovo. Porque a galinha, um bicho feio e atarantado, não pode ser a autora do ovo. Não tem sentido. Num universo minimamente levável a sério, onde ao menos as leis de trânsito funcionassem, a galinha seria mais bonita do que o ovo. Portanto, pensa a galinha horrorizada, Deus não deve existir. Tudo está nas garras do acaso e o acaso nas garras de quem, do quê? Aí a galinha começa a cacarejar. Mas logo esquece de tudo e vai ciscar, contente da vida. A falta de memória da galinha é seu escudo contra o absurdo do mundo. Se a galinha lembrasse de cada ovo que botou, enlouqueceria – antes de meia dúzia.

CONTO DE FICÇÃO CIENTÍFICA

No planeta destruído pelos alienígenas, a única coisa que restou foi uma placa, num poste: Concertam-se gaitas.

O JARDIM DAS DELÍCIAS

Se houve Paraíso na Terra, foi na Polinésia. Lá não tinha cobra, mosquito, trabalho – e era verão sempre. Mais: as pessoas eram muito bonitas e saudáveis. Mais ainda: o sexo rolava sem problemas.

Peraí, seus assanhados. Não tinha dez mulheres pra cada homem, não. Ao contrário, cada mulher tinha dois maridos. E nenhum ficava mostrando uma fita métrica para o outro, com sorrisinhos irônicos.

Acho que as ilhas da Polinésia só tinham um problema. Não falo da antropofagia. A antropofagia era ritual, comia-se o inimigo capturado, tudo com o maior respeito e os melhores temperos. Acabava sendo uma honra ser devorado. O problema é que por lá os pássaros não cantavam.

Você consegue imaginar um paraíso com pássaros silenciosos? Acho inquietante.

REFLEXÃO COM DOR I

Perder a mulher para o nosso melhor amigo não é fácil, não, mas faz parte do esquema. O bruto é perder a mulher para o nosso pior inimigo.

PENSAMENTO DO DIA

O melhor dos palhaços é que não acabam busto de bronze.

REFLEXÃO COM DOR II

Me contaram, como vantagem, umas péssimas profecias do Nostradamus que teriam se cumprido. Não entendi a surpresa, nem aquela raivosa satisfação de santo, ou de velhas solteironas carolas, torcendo pelo irremediável. O mundo não vem fazendo outra coisa fora cumprir profecias de desastres. O que nunca fez foi cumprir profecias que anunciavam paraísos, ou filiais deles. Já era tempo de termos acostumado.

ENTRE UMA CPI E OUTRA
 
Polícia prende chefão do roubo de galinha. João da Silva, 32 anos, chefe de uma quadrilha de ladrões de galinha foi pego em flagrante. Sua especialidade são as galinhas de despacho. Mal o macumbeiro vira as costas na esquina, João da Silva, acompanhado do resto da quadrilha — Maria da Silva, 28, sua mulher, mais os filhos, Maicon, Daiana, Éverton, Anderson e Douglas, com respectivamente 7, 6, 5, 4 e 3 anos — passa a mão na galinha e na garrafa de cachaça. Na delegacia, durante o interrogatório, José da Silva declarou aos policiais que não levava os charutos porque não fuma. Quanto à galinha, era posteriormente transformada pela quadrilha em canja ou assado, como o meliante explicou, dando detalhes com a maior frieza. Tamanha brutalidade chocou mesmo os policiais mais experientes. Os motivos do crime ainda continuam obscuros.

DESPEDIDA

Aceito sugestões, críticas e até elogios. Só não aceito dinheiro porque não tem ninguém oferecendo.