CONVERSÃO
por Ariela
Boaventura
Passa agora quase todo o tempo diante do Compilador; com ele se alimenta – leite, iogurte, um pãozinho de vez em quando –, sem tirar os olhos da máquina; lá vive, sentado, os olhos abertos, opacos de cansaço, de vez em quando um suspiro, a cabeça presa na engrenagem do trabalho; dorme aos bocadinhos, no sofá, como se isso fosse um pecado. É totalmente diferente dele mesmo, é o oposto de si, um estranho. Em comparação com apenas alguns meses atrás, é um desconhecido.
Eu o perdi. Perdeu-se ele no tempo, em razão de já não diferenciar o dia da noite, e passou a cevar um ódio fecundo contra o relógio e a previsão do tempo. Abandonou o costume de banhar-se, para economizar tempo. As poucas vezes em que finalmente consegue se desacoplar, a muito custo, do Compilador, é coisa de instante – no máximo, uma rápida passada no banheiro, o único luxo que ainda se permite –, pois logo volta e atira o corpo tal pacote de cimento novamente à cadeira, que, cansada, geme em protesto.
A última vez que o vi andava em cuecas pela casa, pés descalços, é o calor, bradava, os olhos injetados de sangue. Comigo, com as pessoas, ele emudeceu. Quando lembra-se de falar (com o Compilador, presumo), comunica-se em línguas estranhas, um diálogo geralmente acompanhado de estalares de língua, um suspiro e um Pin!, o único som que a máquina emite, semelhante ao badalar de um sino com um lado só, caso isso seja possível de se imaginar. É como uma batalha, como se ele estivesse travando uma guerra cujo significado e importância somente ele e o Compilador entendam.
Poucos meses antes, era outro.
Tocava o violão, escrevia poesia, roubava placas de ruas e, nos interstícios entre uma cerveja e outra, ambicionava sair correndo com um desses cones de trânsito debaixo do braço; saíamos com amigos, bebíamos à vida, viajávamos pelas montanhas e para o interior da imaginação, fazíamos amor e planos para o futuro – teríamos filhos, uma casa com jardim florido, um cachorro lambão –, ríamos de tudo e por muito pouco, e seus olhos eram um portal para a vida, para um mundo de possibilidades que nem o impossível cogitava-se não se alcançar com uma só mão. E então chegou o Compilador.
Um trambolho quadrado, com uma tela ao centro e uma mesa cheia de botões coloridos, cada qual com um símbolo – recordo de #, & e () –, desenhado, e cujo sentido ignoro completamente. Conforme a ordem de botões acionada, a máquina emite o Pin!, o que eu também não tenho idéia se é bom ou mau sinal, se é erro ou acerto. No início, a máquina era desobediente e caprichosa: emitia um zumbido como o de um mosquito, funcionava só quando queria e desligava por si. Não é uma máquina qualquer, ele dizia, preocupado com a saúde do Compilador, e seus olhos brilhavam de paixão. Por esta época ele já começava a mostrar sintomas vegetativos: só falava no passado, vivia da nostalgia de velhos tempos; também começou a evitar outras pessoas, argumentava que precisava trabalhar o dobro; substituíra a cerveja por preceitos morais puritanos, era melhor beber leite que cachaça, defendia-se, embriagado com as próprias convicções, invocando um elemento fora do contexto, torcendo a lógica, uma vez que odiava beber cachaça; por fim, argumentava demandar cuidados consigo – não se sentia bem, andava deprimido.
Até que chegou o dia em que eles se entenderam: a máquina finalmente começou a compilar, ele fundiu-se à cadeira, e veio a morte em vida, a cela, a treva, a escravidão, a solidão, o alheiamento, a alienação. Perdera ele a alma, virara um autômato; meio ano que não fazemos amor, sem amigos, sem planos nem imaginação, sem nós – é apenas ele e o Compilador: Pin!
O sinal molesta, e só assim sei que ele ainda existe.
26/07/2006