“hot
pics”, Marx, TIC’s, bytes e o Maio de 2008
Pedro
dos Santos de Borba
Somente
uma
nota preliminar: o tempo que você está prestes a desperdiçar com esse
texto será mais do que suficiente para baixar ilegalmente uma música do
Bob Dylan, e eu tenho a humildade de recomendar a segunda opção. Para
que você não perca nenhum minuto sequer da sua vida online, escolha sua
música e minimize seu programa de pilhagem autoral. A sugestão é “the
times they are a-changing”, porque é disso que eu vou falar (mal).
Como
em nenhuma outra época de nossa história se disse tantas vezes “como em
nenhuma outra época de nossa história” ou equivalentes. Essa é uma
característica marcante da nossa pretensiosa sociedade. Atingimos um
grau de fascinação sobre do que somos tecnicamente capazes que nos
tornamos tecnicamente capazes de esquecer o inconveniente. Sem pudor.
Para celebrar e enaltecer o novo, o inédito, o rápido, o global. Nas
últimas décadas ganhou um jovem impulso a euforia com o progresso, com
a ciência, com a tecnologia, com a civilização. E essa euforia tem
razões, e não por coincidência as mesmas razões de apagaram o
socialismo-barbárie da “nossa” história, da história da civilização;
são razões complexamente simples: transístores, circuitos integrados,
microprocessadores, fibra óptica, chips, computadores, satélites,
telefonia móvel, Internet, Google. Aliás, um parênteses, eu escrevi
“internet” com letra minúscula e o corrector automático do Word
imediatamente ajustou para “Internet”, como quem diz “mais respeito,
por favor”… Por via das dúvidas, “Google” coloquei já com maiúscula.
Fecha parênteses. Em suma, quem venceu a Guerra Fria e anda dando as
cartas na nova ordem mundial são as TIC’s, as novas Tecnologias da
Informação e da Comunicação, mais universalmente reconhecidas por um
pressentimento generalizado de que estão Tentando Inventar Coisas. Um
detalhe aqui faz toda a diferença: estão. Eles estão. Toda a
civilização, o progresso e a técnica pertence de facto a umas poucas
pessoas (na maioria, jurídicas), mas preferimos esquecer disso e falar
na primeira pessoa do plural, como quem refere a um primo rico como
“nossa família”. O grandiloquente discurso da “nossa história” não
gosta de dissidências. Estamos todos penetrando no inédito, mesmo que
alguns o façam a
reboque.
Nesse
gigantesco pau-de-arara histórico, abrimos mão de nossa capacidade de
criar. Na verdade, a criatividade aparentemente tem uma de suas
dimensões super-estimulada, a inesgotável inventividade
tecno-científica. Mas mesmo assim, ela é fértil somente em nossos
primos ricos, os que puxam o reboque. A nós, da caçamba, restou uma
imaginação limitada. Cujas dimensões múltiplas nossos primos abonados
Têm o Intento de Concluir, de arrasar. De todos os brinquedos da mente
humana, escolhemos – olha a primeira do plural! – a tecnologia, e
deixamos todos os demais empoeirarem. Então é ela que importa. Cabe a
nós importarmos avalanches de produtos, programas, inovações, máquinas,
dispositivos, apetrechos, bagulhos, trecos e coisas que farão nossa
vida, pasmem, infinitamente melhor. Coisas de que, aliás, não
precisamos, ou melhor, não precisávamos. Tornou-se senso comum dizer
que nossa vida se tornou mais fácil e mais confortável com esses novos
TICs nervosos. Mas a verdade não é essa, acreditem. A verdade é que
nossa vida se tornou infinitamente mais difícil sem eles, o que é uma
diferença brutal. Como nunca antes em nossa história fomos tão
desatentos aos detalhes.
No
começo do vigésimo século, uma alma elevada como a de Fernando Pessoa
podia dar-se por plenamente satisfeita, segundo ele, com um Conan
Doyle, um bom cigarro e uma “chávena” de café forte. No começo do
século seguinte, uma criança comum já contabiliza seus anseios em
código binário – em uma quantidade até a qual ela não sabe contar – e o
que a entretém agora não a interessará amanhã. Sem querer cair no
cliché, nunca na história de nossa sociedade houve Tanto Incentivo ao
Consumo momentâneo, fugaz. É claro que existe um comodismo na plenitude
modesta de Fernando Pessoa. Mas o que se perdeu semanticamente com a
ocidentoxicação foi outro detalhe: a contrapartida positiva do
comodismo. Comodismo para “nós” significa conformismo: uma submissão
pacata ao destino, a deferência passiva ao que é imposto. Mas não
parece ser isso que Pessoa nos inspira, com seu café, seu cigarro e seu
livro. É, por outro lado, a acomodação da realização, da satisfação, da
plenitude. É essa sageza espiritual que muitas culturas não-ocidentais
souberam valorizar em oposição à ambição insaciável, insatisfeita, ou,
agora em outro sentido, incómoda. Essa busca de uma realização sempre a
um passo adiante, sempre exigindo um esforço a mais, sempre presa a uma
fénix de anseios, sempre inquieta e sempre inatingível é louvada ao
extremo entre nós, sob o rótulo de empreendedorismo.
“A
tecnologia revela a relação activa do Homem com a natureza, assim como
o processo de produção directa de toda a sua vida, e, assim, o processo
de produção de suas relações sociais básicas, de sua própria
mentalidade, e de suas imagens da sociedade também”. Essa apoteose
prometéica do velho Marx explica razoavelmente bem porque nossos outros
brinquedos estão mofando na prateleira, ou seja, porque acumulamos
Tamanha Inaptidão para Criar. Porque precisamos admitir que esse tipo
de tecnologia é uma inaptidão para criar, de um modo geral.
Primeiramente, porque as pessoas que dizem que “nossas” tecnologias
facilitam a vida não fazem a menor ideia de sequer como um telefone
funciona, isso para nem cogitar os demais aparelhos tecnológicos que
utilizam todos os dias. Alguém os criou (espero que tenha sido humano),
cabe a nós apenas operar. E isso tem nome técnico: RISC, Reduction
Instruction Set Computer, lê-se risco em inglês. A lógica é: as
operações são mais rápidas quando simplificadas, e ainda mais rápidas
quando baseadas na repetição de comandos, e não na memória (do
computador). Em termos humanos, equivale à ignorância. O “risco” é
mesmo de quê, companheiro?
Por
essas e por outras, nossa sociedade pretensiosamente ignorante depende
de uma assistência técnica 24h e de MP3 – muita paciência, muita
paciência, muita paciência. Nosso programa pode subitamente executar
uma operação ilegal e ter de ser fechado, com base em julgamento em
primeira instância sem possibilidade de recurso a tribunal superior.
Sempre penso, numa hora dessas, porque diabos todas as operações
ilegais da Microsoft não nos permitem fechá-la de uma vez por todas…
Ouvi dizer que, para esse tipo de exasperação, lançaram recentemente o
MP4, e o MP5 já está no fim da esteira. Mas se há algo que por
repetição nenhum processador foi capaz de perceber é que nenhum de nós
quer enviar um relatório de erros para a Microsoft. Digam-me se me
equivoquei quanto à primeira do plural.
Afirmo
eu que a tecnologia frequentemente revela a relação activa do Homem com
sua paciência e com seu auto-controle. Principalmente se você começar a
gritar palavras chulas, der um soco no teclado ou atirar seu celular
longe. Se você retrucar que Marx provavelmente não diria isso,
obrigo-me a parafrasear o Analista: o que Marx diria tu não ia
entender. Ou tu fala alemão?
De
facto, cabe a nós, que não falamos alemão e estamos no reboque do
progresso, a tarefa de tentar, tentar, ver para que direcção estamos
indo, e se existe algum futuro em nosso futuro. E isso não está fácil
de se fazer, sejamos honestos. Aquele “nós” da euforia, o “nós” do
ineditismo iria dizer que é um absurdo dizer que nossa criatividade
está moribunda, se “conseguimos” criar aparelhos modernos com uma
velocidade sempre inédita, que as distâncias e o tempo encurtam e que
de dois em dois anos podemos dobrar o número de transístores em um
circuito integrado. O “nós” do reboque, que não fala alemão e não sabe
como dobrar um transístor, perceberia que a criatividade que está se
perdendo é uma mais profunda, aquela que adormece entre a razão e a
imaginação, entre a realidade e a fantasia. Como em nenhuma outra época
da nossa história fomos tão pouco abertos à criatividade cidadã, à
criação de novos modos de vida, de novos arranjos políticos, de novos
movimentos culturais, de novas ideologias, de novas filosofias ou de
especulações metafísicas inovadoras. Essas ideias pipocam aqui e ali,
mas são oprimidas. Sufocadas por ideologias antigas. Enquadradas por
elas. Do fascismo à democracia, do futurismo ao realismo. Todas são
antigas e são entendidas em seu sentido antigo: mesmo a polissémica e
intrigante ideia de “liberdade” é utilizada hoje no sentido que a
independência dos EUA criou duzentos anos atrás. Restrito, diga-se de
passagem. Ocorreu uma emergência extraordinária de tecnologia e de
métodos, como nunca antes, mas ela somente engrandeceu a capacidade de
destruição, para cristãos e muçulmanos matarem-se mutuamente como
sempre fizeram. Inventamos o forno de microondas para requentar uma
alimentação mundial baseada sempre em trigo, arroz, batata e carne.
Talvez a única criação tipicamente contemporânea em termos de modo de
vida tenha sido o estresse, mas ele é antes a desastrada consequência
da carência de novos modos de vida. Perguntamo-nos, assim, que formas
de ser e de pensar estão acompanhando todo o ineditismo da “nossa”
história, e se serão elas compatíveis com o grau de progresso de nossa
civilização. Em outras palavras, marxianas, quais são a mentalidade e a
imagem da sociedade que essas tecnologias estão produzindo? Terão
Imaginação os Computadores?
Por
isso talvez fiquemos com a sensação de actualmente não ter chegado a
ponto algum, seja um bom ou ruim. Lá do fundo da boleia, temos a
impressão de que perderam o mapa, ou nos enganaram sobre o tal mapa.
1984 já vai longe e o 1984 de Orwell não chegou nem perto de acontecer.
Em 2001, o 2001 de Clarke também parecia ficção futurista, só um pouco
demodê. Até o Expresso 2222, uma espécie de Magic Bus brasileiro, mal
passou do ano 2000 e buch: deu directo no World Trade Center. Sejamos
francos, chegamos em 2008 e não fazemos a menor ideia de para onde
vamos, e, pior, não o discutimos com alguma seriedade. Há uma analogia
excepcional de Marx que diz que a abelha é capaz de fazer favos como
nenhum homem o é, e a aranha tece sua teia com uma habilidade superior
à com que o faria qualquer ser humano: a diferença crucial, que faz do
homem o mais evoluído dos seres, é sua capacidade inerente de construir
mental e previamente o que ele pretende construir de facto.
Estranhamente, parece que estamos construindo nossa história como
abelhas ou aranhas.
As
ficções científicas de um modo geral têm a peculiaridade de tratar do
futuro, e a associação entre essas três coisas – ficção, ciência e
futuro – é das mais eloquentes. Primeiro, usar a tecno-ciência para
prever o futuro é sempre um exercício de pura ficção, isto é, a
tecnologia por si não nos diz muita coisa sobre as pessoas, e, a menos
que Asimov esteja certo, elas ainda serão o elemento decisivo. As
ficções científicas futuristas sempre tendem a fortalecer o domínio do
técnico sobre o humano pela facilidade relativa de fantasiar a respeito
do primeiro. Além disso, a tecno-ciência foi feita parcialmente à
semelhança de seus criadores. Não importa quanto ela se desenvolva
objectivamente, ela é sempre insuficiente: o que é fascinante não o que
existe, mas o que está para existir. Em sua realização, a tecnologia
depende do futuro, porque ela nunca se realiza no presente. As ficções
científicas são, pois, a sublimação desse anseio permanente: a
tecnologia é espiritualmente empreendedora.
Por
fim, é esse espírito que pode estar a nos fazer abelhas, aranhas.
Talvez o ordenador, em espanhol, esteja fornecendo a lógica por trás, a
ordem subjacente a nossos favos e nossas teias, cada vez mais
eficientes e práticos. Será que o “cérebro eletrônico comanda”? E então
será que ficção científica futurista consiste de facto em suprimir
nossa criatividade múltipla? E, completando o delírio cibernético, será
que, além do futuro, a realização da tecnologia empreendedora depende
de uma diminuição de nós, irregulares e criativos, para um mecanismo de
abelhas e aranhas bem orientadas?
Não,
Asimov. Não, Huxley, acho que não. E estamos em uma época boa para dar
substância a esse não!, o Maio de 2008. Agora que os soixant-huitards
estão atingindo os soixant-huit ans, cabe lembrar sua máxima: “sejamos
realistas, queremos o impossível”. Porque é essa resposta que podemos
dar aos ineditistas, pois aos seus olhos tudo já está no horizonte do
possível, do alcançável, do “nosso” futuro. O problema é que seus olhos
estão um pouco condicionados. Nós, germanófobos da caçamba da história,
queremos o impossível porque queremos o que está fora do seu campo de
visão. Queremos inovar em outro sentido, e em múltiplos sentidos. Por
isso, esses TICs não são suficientes, nem o número de bytes, nem a vida
cómoda (!?), prática e confortável que elas podem dar para quem as
puder comprar em seu ritmo frenético. Quanto à babilónia de novas
inovações inéditas, precisamos e exaltamos somente de um tipo de
tecnologia, as TSC-D, as únicas que oferecem caminhos abertos e
criativos. Tô de Saco Cheio. Tô de Saco Cheio Disso.
Nota
final: mudando como, Bob?
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