POLITIZANDO A TECNOLOGIA E A FEITURA DO CINEMA
por
Giba Assis Brasil
(fala apresentada no seminário "Além das redes de colaboração", Porto
Alegre, 15/10/2007)
Três
perguntas pra tentar começar uma discussão possível a respeito da
politização da tecnologia, especificamente em relação ao mundo
audiovisual e ao cinema. Primeira: quem inventou o cinema? Segunda:
quem faz o cinema? E terceira: quem assiste ao cinema?
Para a pergunta "quem inventou o cinema?", nós
temos duas respostas padrão. A mais comum, a mais difundida no mundo
inteiro, é a de que o cinema foi inventado pelos irmãos Lumière,
Auguste e Louis, dois engenheiros franceses nascidos em Besançon na
década de 1860, que dirigiam uma fábrica de instrumentos ópticos e
material fotográfico fundada pelo pai, Antoine Lumière, no final do
século XIX.
Outra resposta possível, também padrão, é a que
é dada pela maioria dos autores norte-americanos, de que quem inventou
o cinema foi o grande gênio do século XIX Thomas Alva Edison, detentor
de mais de mil e trezentas patentes, das quais parece que duzentas
realmente foram invenção dele (as outras ele comprou), e que ficou
conhecido até os nossos dias como o inventor da lâmpada de filamento,
do fonógrafo, da cadeira elétrica, enfim, de um grande números de
invenções, algumas benéficas para a humanidade, outras nem tanto.
É
claro que o cinema, como qualquer invenção, é o resultado do
desenvolvimento do trabalho de uma série de inventores, trabalho que se
dá por colaboração e também por competição, e isso em um período
particularmente rico do avanço tecnológico da humanidade que foi o
final do século XIX. Qualquer história da invenção do cinema vai ter
que mencionar nomes como os do francês Louis Le Prince, que conseguiu
realizar alguns filmes muito curtos já em 1888; do inglês Eadweard
Muybridge, que criou um método para fotografar de maneira muito veloz e
conseguiu fixar fotograficamente o movimento do galope do cavalo, o que
depois foi reconstituído na forma de pequenos filmes; de Leon Bouly,
que inventou o termo "cinematógrafo", depois adotado pelos irmãos
Lumière; de Émile Reynaud, que criou uma série de instrumentos ópticos
no começo da segunda metade do século XIX; de Étienne Marey, que foi o
primeiro a construir uma câmara de cinema; do escocês William Dickson,
que inventou o filme perfurado; etc.
Ainda
estamos muito longe do que viria a ser uma "rede de colaboração", que é
hoje a forma dominante de produção de conhecimento nas grandes
corporações e universidades, até porque no século XIX ainda não havia
tecnologia ou configuração social para isso. Mas, sem dúvida, a
colaboração já estava presente como forma de criar conhecimento técnico
e científico.
Se quisermos resumir todos esses inventores numa
figura padrão, poderíamos citar um personagem que virou uma espécie de
símbolo do cientista maluco do século XIX, uma época em que a ciência
se fazia em grande parte nos fundos de quintal, nos laboratórios
caseiros. Esse personagem é o famoso professor Pardal, ou Gyro
Gearloose, criado em 1952 por um talentoso desenhista norte-americano,
chamado... Walt Disney?
Não. O Professor Pardal, assim como o Tio
Patinhas e boa parte dos personagens de Patópolis, foi criado por Carl
Barks, desenhista e criador de quadrinhos, que foi durante décadas
empregado da Disney Corporation. É bem possível que agora, ao projetar
uma imagem do Professor Pardal nessa tela, eu esteja infringindo alguma
lei de direitos autorais, e devesse estar pagando alguma indenização -
não aos herdeiros do Carl Barks, que é o inventor do personagem, mas à
Disney Corporation, que é a proprietária da marca. O que nos diz muito
sobre a quem serve a atual legislação de direitos autorais.
Em
todo caso, o que interessa aqui não é tanto definir quem, afinal de
contas, foi o "Professor Pardal" do cinema, mas por que o modelo Edison
se contrapôs em um determinado momento ao modelo Lumière, e por que o
modelo Lumière foi o que terminou prevalecendo.
O
modelo Edison era, sem dúvida, um modelo engenhoso. Mas refletia a
personalidade de seu criador, Thomas Alva Edison, um inventor genial e
totalmente dinheirista, já que todas as suas invenções sempre foram
voltadas para a idéia de lucro, o que inclusive fez com que ele se
tornasse, ao longo de sua vida, um sujeito muito rico. Ao contrário dos
irmãos Lumière, que já nasceram ricos, herdeiros de uma grande empresa,
e que talvez por isso tivessem com relação às invenções uma posição
muito mais de desportista, de desbravador e não de empreendedor.
Edison criou uma câmara, que ele chamou de
Kinetógrafo, e que chegou a fazer filmes em 1893, dois anos antes dos
irmãos Lumiere. Só que nunca passou pela cabeça do Edison a
possibilidade de projetar esses fimes numa tela grande e fazer com que
eles fossem compartilhados pelas pessoas; ele sempre pensou numa forma
fechada, proprietária, para o desenvolvimento e a venda do produto
cinema. Por isso ele criou um outro aparelho, chamado kinetoscópio, que
era uma caixa fechada dentro da qual o filme rodava, e que tinha apenas
duas aberturas: uma para que fosse colocada uma moeda, sem o que o
filme não rodava; e outra para que um único olho de uma única pessoa,
possivelmente a ex-dona da moeda que fez o filme rodar, pudesse
enxergar o filme rodando. Cada caixa continha um único filme, com uma
duração de uns poucos segundos. Quem quisesse assistir de novo tinha
que colocar outra moeda. Vejam só: o kinetoscópio do Thomas Edison não
era a cara do Windows?
O kinetoscópio chegou a ser muito popular entre
1893 e 1895. Em diversas cidades dos Estados Unidos e mesmo na Europa,
foram abertos "kinetoscope parlours", ou salões de kinetoscópios, cada
um deles com dezenas de caixinhas como essas, e uma fila de
espectadores cheios de moedas nos bolsos. O cidadão entrava na fila,
esperava uma maquininha vazia, assistia individualmente a alguns filmes
e voltava pra casa com algumas moedas a menos.
Até que, no dia 28 de dezembro de 1895, em
Paris, os irmãos Lumière apresentaram ao mundo o que eles chamaram de
cinematógrafo, que era uma outra possibilidade de usufruir das imagens
em movimento. Apesar de as imagens serem potencialmente semelhantes às
de Edison, a proposta de exibição era radicalmente diferente: ao ser
projetado numa tela, dentro de uma sala escura, o cinema deixava de ser
uma caixinha de imagens em movimento para se tornar um espetáculo
público.
É claro que os Lumière também eram empresários,
também pensaram na possibilidade de ganhar dinheiro com o cinema -
tanto que cobraram ingressos na sessão de 28 de dezembro, e é
justamente o fato de a sessão ter sido paga que faz com que ela seja
reconhecida como a primeira sessão de cinema da história. Até porque
alguns meses antes, no dia 22 de março daquele mesmo ano de 1895, os
irmãos Lumière já tinham feito uma primeira exibição pública, mas
gratuita, do cinematógrafo, na Sociedade para o Desenvolvimento da
Ciência de Paris, quando o filme "A Saída dos operários da fábrica
Lumière" (ou simplesmente "A Saída da fábrica") foi mostrado pela
primeira vez. Ou seja: a oposição fundamental entre o sistema Edison e
o sistema Lumière não era pago versus gratuito, mas fechado versus
aberto, privado versus público.
E
não deixa de ser uma grande ironia perceber que o modelo fechado, que
só funcionava acionado por uma moeda, criado pelo mais profissional dos
inventores, tenha desaparecido em poucos anos; e que o modelo aberto,
compartilhado, de acesso público, engendrado por aqueles que viam a
ciência como esporte, tenha se tornado uma indústria e um modelo de
negócios que segue dando lucro mesmo depois de 11 décadas.
A segunda pergunta, "quem faz o cinema?", também
deve ser respondida de uma forma histórica. No começo, quem fazia o
cinema era o dono da câmara: a pessoa que detinha a tecnologia pegava a
sua câmara, escolhia um assunto, posicionava-se na frente do assunto e
colocava a câmara para rodar até que terminasse o rolo de filme. Assim
foram feitos os primeiros filmes, não só de Thomas Edison e dos irmãos
Lumière, mas também de outros pioneiros contemporâneos a eles.
Mas
logo em seguida, quando os próprios irmãos Lumière percebem que aquela
invenção pode dar dinheiro, passam a contratar pessoas para serem
cinegrafistas, ou seja, para irem até determinados lugares com as suas
câmaras, filmar imagens que possam despertar o interesse do público e
trazer essas imagens para serem exibidas nas suas salas, e até mesmo
para distribuir em outras salas ao redor do mundo. Pela primeira vez, o
cinema passa a ser feito em equipe, com divisão de trabalho. E a
primeira divisão de trabalho no cinema é essa, entre produtor e
cinegrafista.
Um pouco mais adiante, os produtores se dão
conta de que o cinema pode fazer mais do que apenas registrar imagens
ou reproduzir documentos interessantes. No momento em que se percebe
que o cinema pode contar histórias, e que essas histórias podem ser
encenadas, aí se busca toda uma linguagem que existia no teatro e
tenta-se adaptar essa linguagem pra esse novo meio de comunicação.
Surge então uma nova separação, agora dentro da equipe de filmagem: de
um lado permanece necessária a figura do cinegrafista, que é o cara que
conhece a câmara, que faz com que as imagens sejam registradas
corretamente pela câmara; mas por outro lado passa a haver também a
necessidade de alguém que faça com que os atores encenem aquilo de uma
maneira correta, agradável, adequada - que vem a ser o diretor.
A
figura do roteirista na verdade vai surgir um pouco mais adiante,
quando os filmes começam a ficar mais caros, e o produtor passa a
precisar de uma simulação prévia do que vai ser o filme. Uma coisa
interessante de se perceber é justamente que a idéia de roteiro surge
não de uma vontade de expressão dos roteiristas, que não existiam; nem
tampouco como apoio ao trabalho dos diretores, que não sentiam essa
necessidade; mas como uma exigência do produtor. Era o produtor quem
precisava ter uma previsão de como o filme ia ser, para saber se valia
a pena investir dinheiro naquele filme.
A partir daí, a divisão de trabalho no cinema
vai se especializando cada vez mais: surge o montador, surge o diretor
de arte, surgem funções cada vez mais específicas nesses cento e poucos
anos em que existe o cinema. Até chegarmos aos créditos de filmes
hollywoodianos recentes, em que vemos expressões como "key dimmer board
operator", "second company rigging grip", "additional costume
production assistant", "creature technical assistant director" ou
"digital model development and construction artist" - em que são
necessárias 4, 5, às vezes 6 palavras pra definir o que é a função.
Apenas para se ter uma idéia do grau de especialização a que chegaram
as equipes de cinema.
O
cinema, portanto, é feito cada vez mais em equipe, e essa equipe possui
dentro dela uma hierarquia, mas uma hierarquia que sofreu alterações ao
longo do tempo. Num determinado momento o produtor era em muitos
sentidos o "dono" do filme, depois o diretor passou a ser a figura mais
importante. Hoje, me parece que a tendência é em direção a um cinema
colaborativo, em que o diretor tem o papel preponderante, mas que
depende cada vez mais dos seus colaboradores diretos.
Portanto, a segunda pergunta poderia ser
alterada para "quem faz o cinema onde?" Hollywood, que domina o mercado
cinematográfico mundial desde por volta de 1915 (mais de 80% da
História do cinema), certamente deve ser o centro a partir do qual essa
questão deve ser pensada. Mas é bom lembrar que, ao longo desse perído,
a própria evolução da tecnologia fez com que, em determinados momentos
da história do cinema, houvesse uma desconcentração na produção, e em
outros momentos houvesse o contrário, uma concentrção cada vez maior.
Quando
o cinema surge, como invenção de um monte de "professores pardais" de
fundo de quintal, na virada do século XIX para o século XX, ele gera um
surto de produção no mundo inteiro, porque reproduzir aquele mecanismo
não era complicado: bastava conhecer um pouco da técnica que era "de
domínio público" no período, e se poderia fazer uma câmara, produzir
alguns metros de película, etc, e sair fazendo cinema.
Se pegarmos por exemplo a história do cinema
brasileiro, até a década de 1920 há pequenos ciclos de produção de
filmes em praticamente todas as grandes ou médias cidades do Brasil. A
partir da década de 1930, com a invenção do cinema sonoro e o aumento
de custos para produção de cada filme, isso não vai existir mais: o
cinema vai concentrar sua produção em determinados locais, os grandes
centros de produção do país. E isso não vai acontecer só no Brasil, mas
no mundo inteiro mais ou menos simultaneamente.
Nos
Estados Unidos, há inclusive um deslocamento do centro de produção, da
costa leste para a costa oeste, que tem uma história particularmente
interessante.
Assim
que Thomas Edison percebeu que o modelo do kinetoscópio, da caixinha
fechada, não tinha futuro, que o futuro do cinema certamente estaria
ligado à projeção em tela grande, o que ele faz? Ele se associa a
outros grandes industriais do ramo, como é o caso de George Eastman, o
dono da Kodak, e organiza um Trust, um grupo de empresas que detêm a
maioria das patentes relativas à realização de cinema: a patente da
câmara, do projetor, da película perfurada, do processo de revelação,
etc. E se organizam de tal forma em torno dessas patentes que passam a
proibir qualquer outra pessoa de fazer filmes. De acordo com o seu
entendimento das leis de direitos autorais, só os membros do Trust
detinham as patentes necessárias para a realização de filmes, portanto
só os membros do Trust (ou quem dispusesse a pagar ao Trust por esse
privilégio) poderiam realizar filmes nos Estados Unidos.
Nos primeiros anos dos século XX esse
entendimento é respaldado por uma série de decisões judiciais, e a
polícia norte-americana passa a auxiliar Edison e seu Trust a impedir
os produtores independentes de realizarem seus filmes em Nova York, em
Chicago, em Nova Jersey, etc. Então, entre 1909 e 1910, um grupo de
independentes, em sua maioria imigrantes judeus que queriam se tornar
produtores de cinema, deslocam-se para a Califórnia, em busca de
condições climáticas mais favoráveis para filmar 12 meses por ano, é
claro, mas também em busca de um local distante onde a polícia do Trust
não os perseguisse por filmar sem autorização. Hollywood surge,
portanto, contra o Trust de Edison, contra as restrições estabelecidas
pelos donos das patentes.
Com o surgimento do som sincronizado, entre 1927
e 1929, a produção de cinema se torna extremamente elitista. A nova
tecnologia que surge exige investimentos muito grandes, e isso vai
fazer com que boa parte da produção do cinema mundial se concentre em
Hollywood, coisa que já tinha começado a acontecer com a queda da
produção européia durante a Primeira Guerra Mundial. Com o som, o
cinema norte-americano se torna hegemônico no mundo inteiro, porque só
Hollywood dispõe do acúmulo de capital necessário para manter uma
produção constante.
Nos
outros países onde existe produção cinematográfica, essa produção vai
se concentrar cada vez mais em um único centro. No Brasil, por exemplo,
desaparecem os ciclos regionais que haviam caracterizado a década
anterior.
Um pouco mais adiante, na virada dos anos 1940
para os anos 1950, no pós-guerra, as novas tecnologias que surgem
voltam a ser democratizantes e descentralizadoras: câmaras mais leves
para filmar na rua, gravadores portáteis que permitem boa qualidade de
som mesmo fora dos estúdios, etc. São essas tecnologias que vão tornar
possível o Neo-realismo italiano e em seguida a Nouvelle Vague
francesa, influenciando indiretamente o surgimento de várias ondas de
"cinemas novos" em diversos países, inclusive no Brasil.
Ou
seja: em alguns momentos da história do cinema, as novas tecnologias
foram democratizantes; em outros, elas foram extremamente
concentradoras.
E
hoje? A tecnologia digital que está mudando o cinema desde a metade dos
anos 1990, e que certamente vai mudar ainda mais nos próximos anos,
teria um papel democratizante ou concentrador?
Por um lado, existe uma nova geração de alta
tecnologia de cinema que está fazendo Hollywood produzir filmes cada
vez mais caros e elevando até o infinito uma concepção de cinema, que
se pretende única e que permanece hegemônica, baseada no efeito
deslumbrante e na velocidade. Por outro lado, uma quantidade
inimaginável de pessoas, em sua maioria muito jovens, está tendo acesso
a tecnologias digitais básicas que permitem a realização de filmes e
outros produtos audiovisuais com equipes pequenas, custos muito baixos
e em qualquer região do planeta.
Feitas
as contas, parece que a tecnologia digital está com um saldo bastante
democrático e descentralizador. Mas, para que se chegue a uma
conclusão, é preciso encarar a terceira questão que eu formulei lá no
início: Quem assiste ao cinema?
Cada vez menos, quem assiste ao cinema é o seu
público tradicional, o espectador do cinematógrafo, que paga ingresso
para sentar-se, junto com uma multidão de desconhecidos, em uma sala
escura. Em 2005, pela primeira vez, Hollywood ganhou mais dinheiro
vendendo DVDs do que vendendo ingressos para cinema, e essa tendência
vem se acentuando nos últimos dois anos. A sala de cinema passa a ser
cada vez mais uma plataforma de lançamento para os produtos, mas os
produtos são basicamente vendidos através de outras mídias: o DVD e,
cada vez mais, também a internet.
Com
a expansão do Youtube e de outras ferramentas colaborativas em rede,
surge a perspectiva de se misturarem as questões: quem assiste cinema
também tem a possibilidade de fazê-lo. Ainda está muito longe o momento
em que os filmes produzidos pelos consumidores possam ter qualidades
técnicas e de comunicação comparáveis aos produtos produzidos pela
indústria. Mas o caminho já está desenhado.
O
cinema, e especificamente as grandes produtoras de Hollywood, continua
segurando seu modelo de negócios baseado numa legislação do século XIX,
cada vez mais anacrônica e fora da realidade, que diz assegurar os
direitos dos autores, mas na verdade só defende as grandes corporações
que são proprietárias das marcas. Mesmo assim, alguma coisa se move, e
a convergência das mídias aos poucos vai colocando em xeque os
raciocínios fechados, do Kinetoscópio ao Windows.
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