Dois mil e vinte / anos 90
por Álvaro Magalhães


O que poderá fazer uma prefeita a partir de 2021? Comecei a pensar nisso com as lembranças dos anos 1990 em Porto Alegre, em que trabalhei até 1996 na saudosa Administração Popular de Porto Alegre. Saídos da Constituição de 1988, não sabíamos o que mesmo poderia fazer uma prefeitura brasileira (o que nos deixava mais livres para encarar diferentes problemas) e também sobre o que o ambiente de competição política entre os partidos nos reservaria, mesmo em tempos de neoliberalismo.

2020 e 1990 têm em comum uma crise econômica anterior intensificada por um trauma. Hoje é o da pandemia - que é incomparável na sua dramaticidade. Mas em 1990, o Plano Collor sequestrou as poupanças privadas da noite para o dia em nome do combate à inflação e provocou uma recessão grande e aumentou ainda mais a pobreza e a exclusão social que "vinham de longe". Desemprego, quebradeira, informalidade, exclusão e queda na renda (sempre agravada pelos preconceitos de raça e gênero) foram agravadas pelo Plano Collor e hoje pela pandemia. Nisso, a situação é comparável, mesmo com as origens diferente dos traumas.

E, quando a crise econômica vem forte, não há como as prefeituras (e todos que lá estão) não sofrerem junto. (Só sendo psicopata mesmo). Nos 1990, quem estava sem grana ia pra rua tentar alguma coisa. Com a pandemia atual, imagino maior dramaticidade. Mesmo que hoje haja "novos informais" que andam de bicicleta e moto orientados por aplicativos, quem pode, e se importa com a vida, fica em casa, fazendo com que o dinheiro não circule nas ruas. Nem mesmo nos shoppings. Lembro muito bem das dificuldades em tratar o comércio ambulante nos 90, e a pressão da 'opinião pública" para a repressão pura e simples, em nome da ordem do comércio supostamente ordeiro. Hoje, com tantas desordens controlando os espaços urbanos, a situação é mais difícil, imagino.

Os anos 1990, além da Campanha contra a Fome, ficaram marcados pela criatividade das iniciativas das prefeituras brasileiras, agora com maior autonomia federativa e recursos. (As iniciativas de Porto Alegre que mais tenho vivas na memória vou colocar em nota de rodapé [1]). Uma das iniciativas municipais de maior sucesso desses anos 1990 foi criada em Campinas e Brasília: o Bolsa-Escola, que, federalizada e ampliada, acabou consagrando a transferência de renda num mecanismo de solidariedade social hoje consensual (até mais do que a combalida Previdência Social). Em 2020, o auxílio-emergencial mostrou que há de se conseguir espaço nos orçamentos públicos para garantir o suprimento das necessidades mínimas para quem está fora do mercado formal. E, como sabemos, essa transferência anima alguns circuitos locais. Não tira nenhuma nação do buraco, mas trata de uma chaga priorizada lá nos anos 1990: a fome.

Hoje, curiosamente, as prefeituras brasileiras atuam mais em algumas áreas sociais, como educação básica, saúde ou assistência, mas estão menos capazes para ofertar os serviços tipicamente urbanos e promover soluções em áreas como planejamento urbano, transporte, moradia popular e saneamento básico do que nos anos 1990. E também para coordenar projetos que envolvam grandes obras. (Conhecendo o de Porto Alegre, o estoque de obras "paradas" no país deve ser incrível.) Mas é justamente a partir desses serviços urbanos e estimulando as atividades chamadas "criativas", inovadoras, sustentáveis e solidárias (observando também critérios de promoção de igualdade de gênero e raça) é que as cidades brasileiras podem dar um salto de qualidade e tornarem-se mais atraentes. As tarefas dos anos 2020 são gigantes, para todos, a começar por debelar a peste. Oxalá dê tudo certo.

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[1] Desde o Orçamento Participativo, às políticas de descentralização e intercâmbio cultural, ou das feiras ou estímulo à produção agroecológica e à distribuição de alimentos, da qualificação do Mercado Público. Também recordo com carinho que montamos uma agenda estratégica que combinava descentralização da cidade, através de mudanças no Plano Diretor e construção da III Perimetral, entre outras iniciativas, como a Coleta Seletiva, a despoluição da Praia do Lami ou da Incubadora Tecnológica ou do Porto Alegre Tecnópole. Sustentabilidade, inovação, conectividade e solidariedade continuam na ordem do dia.


Álvaro Magalhães: do grupo criador do NAO e assíduo colaborador. Especialista em políticas públicas. Fez o show do João Gilberto no Araújo Vianna, que todo mundo lembra com carinho.