O universo numa casca de pão
por Francisco Nunes Fontanive


Uma pessoa desavisada poderia passar os olhos pelo cardápio sem perceber que ali se encontrava aquela pequena cápsula de incertezas. Sem notar que, em meio àquelas palavras grafadas em comic sans, estava escrito "xis bagunça". Bagunça sendo apenas mais uma forma de nomear o caos. A entropia das pequenas coisas. Sei que esse é apenas mais um nome para o "xis tudo", mas se queda claro que "tudo" e "bagunça" possuem entre si uma equivalência. Não seria o universo uma enorme bagunça? Não seria tudo uma espécie de desordem deliberada, com pequenos núcleos não-balburdianos isolados pelas galáxias? Aquele prato de comida parecia admitir em si o estado natural e imprevisível das coisas. Parecia abdicar do esforço de fazer com que estivesse tudo (e aqui se reconhece mais uma congruência entre "tudo" e "bagunça") em seu devido lugar e passava a admitir que as coisas estão onde elas estão quando elas estão e, muitas vezes, não podemos fazer nada em relação a isso. Era um resultado sorteado. Quantas calabresas estariam entre os pães? Estariam elas do lado dos coraçõezinhos de galinha? Seria aquilo porco ou frango? Queijo ou ovo? Alface ou uma folha de bananeira? Não havia respostas concretas para essas perguntas. Deus pode até não jogar dados com o universo mas o chapista certamente jogava os pedaços de frango, porco e gado como se fossem dados sobre a chapa quente. Prensava tudo ao som de um modesto "tssss" e, depois, abria, vendo que ali restava o xis, mesmo tendo regurgitado um pouco das carnes para fora. Carnes que certamente não seriam desperdiçadas, é verdade. Essas mesmas participariam da confecção de ainda mais um ou dois xises bagunça. Não havia problema naquilo. Chegava o xis nas mesas das pessoas e era o garçom o responsável por trazer o agouro. Aquela fotografia do caos. Uma pequena constelação congelada no tempo entre dois pães, como um tarot prensado e com cheiro de pão tostado e ovo. E talvez a bagunça não seja do agrado de quem a recebe na mesa. Talvez o caos não seja aprazível ou agradável. Mas a essas desavisadas pessoas resta apontar para o cartaz da entrada do bar e ressaltar: aquilo não se trata de um laboratório. Se estivesse tudo sob controle o nome do prato não ressaltaria justamente o descontrole. Não endossaria o caos, que por vezes é confundido com a imprudência, e se chamaria "xis ordem" ou "xis austeridade". Mas não. Como um anjo da morte que não escolhe suas vítimas por critérios pessoais, os pedaços de carne se apaziguam sobre o pão, sem sabermos quantos foram os animais que tiveram que dar a vida para que aquilo se cumprisse. Sem sabermos as histórias que se diluíam naquele jazigo de farinha e gordura.

Há algo de poético em resignar à ordem. Em aceitar esse destino, não por ele fazer sentido ou por ser satisfatório, mas por ser o que nos é dado. Há algo de belo nos lábios alegres e gordurosos de quem morde um xis bagunça. Algo de absurdo, também. Pois é absurdo acreditar que o aleatório pode ser satisfatório e, quando o são, não chamamos aquilo de aleatório mas de destino. É absurdo pensar que os frutos menos esperados da existência nos reservam agradáveis surpresas. Que em meio ao turbilhão de carne se encontra um pedaço especialmente suculento de frango ou um pedaço de calabresa no ponto exato para o nosso paladar. Ou que, ainda, mesmo sem as certezas que normalmente nos garantem o bem-estar, do outro lado da mesa, enferrujada ou de madeira, há outra pessoa também com a boca engordurada e que compartilha conosco toda essa ingenuidade perante a entropia daquele sanduíche. Como dois desbravadores das estrelas com a língua estalando sobre um pedaço de carne não identificada enquanto se falam sobre outros acasos igualmente inesperados e absurdos. Sobre como, por coincidência, encontrara naquela mesma tarde o Flávio, aquele Flávio que foi colega deles na faculdade. Dizer que, não por um acaso, o Flávio está desempregado, que a vida, também não por um acaso, andava difícil. E seguir o fluxo dos acasos e dos descasos, em meio à desconfortável e inespecífica existência nesse tempo específico ou, ainda, revivendo os anos que se passaram, que também pareciam inespecíficos e desconfortáveis na época, mas que, agora, eram lembrados com certo carinho. Os sanduíches pela metade sobre os pratos, com mais alguns pedaços de carne que se denunciavam para fora do pão, uma calabresa perdida sobre a louça branca, evidenciando que ela de fato era uma calabresa e não qualquer outra coisa que não devesse estar ali. Um braço se ergue sobre a cabeça de seu dono, indicando ao garçom que quer mais uma cerveja. Como se todo aquele caos não bastasse por si só e precisasse embaralhar um pouco mais a mente. Diluir essa resiliência do pensamento em copos americanos. Não tentando mais resistir ao ciclone dos fatos mas apenas fazer parte deles, abraçar aquela sopa de letrinhas como sendo sua própria realidade e, então, dançar com todo o resto que compõe o todo.

Quando entramos no banho e vemos na parede de azulejo um fio de cabelo no formato da silhueta do pão de açúcar ou, ainda, se vemos em um pão tostado (seja esse pão o pão do xis bagunça ou qualquer outro pão) o rosto de Jesus isso não passa de uma projeção nossa sobre a expectativa da ordem no universo. Ora, se existisse essa vontade maior, se existisse essa ordem deliberada em meio ao caos, qual a razão de ela se manifestar para nós assim, do nada? Qual a razão de essa benção anti-baderna surgir logo no nosso pão torrado ou na parede de nosso banho? Não. A ordem é uma impressão de nossos olhos. Essa ordem é fruto da terraplanagem que a nossa mente faz na realidade. Não que não exista ordem. Ela existe. Mas só existe quando fruto de nós, quando fruto de nossos critérios que são deliberadamente colocados no mundo. Quando violentamos a terra de tamanha maneira que dela extraímos apenas aquilo que queremos. Quando dela extraímos o que chamamos de recursos. Quando estudamos a geologia do mundo como se aquilo fizesse sentido e não como se fosse só mais um planeta com suas particularidades. Como se fizesse sentido que o grafite virasse diamante com o tempo mas que, fosse a terra outro lugar, diamante poderia, também, virar grafite e isso não deixaria de fazer sentido. E existe algo muito violento nesse sentido que é visto por nós. Nessa ótica que passa pelas lentes do destino e do divino como se essa ordem fosse um estado de natureza e não o contrário, um estado antinatural, uma trincheira em meio à vastidão do universo. E sim, claro, a ordem é algo importante também. Pois é a partir do ponto de vista da ordem que vemos o caos. É a partir desse enfileiramento do pensamento, essa subsequência de palavras que forma os conceitos, que conseguimos estabelecer a nossa relação com o universo sensível e, portanto, conseguimos perceber que existe o caos pois existe a ordem e vice versa. Mas é nessa armadilha das palavras, nessa emboscada do pensamento, nessa corda bamba semântica que, por vezes, nos perdemos. A ordem, quando fruto da nossa própria força, força do homem, não deixa de ser ordem só porque é proveniente de nós. Pelo contrário. A ordem é ordem justamente por ser de nós que ela provém. Usar roupas como convenção social ou almoçar ao meio dia não deixa de ser verdade por ser social. Justamente pelo contrário, são verdades justamente porque são sociais. Diferentemente da bagunça ou do caos, que são verdades independentes de nós. Que são a realidade como dada. Que existe de forma indiferente. E tudo isso só torna a existência do xis bagunça ainda mais peculiar. Pois ele se encontra no seleto grupo de coisas que são deliberadamente caóticas. No seleto grupo de coisas cuja existência é fruto de uma aceitação ordeira do caos. De um caos fruto da austeridade das escolhas humanas.

E a chapa pode ser mais um dos objetos minuciosamente construídos para serem caóticos. Minuciosamente pensados para tirar de nossa mão a ordem. Como os dados ou a roleta em um cassino, a chapa da lancheria, de onde ecoam os estalos da clara do ovo, também refletem a nossa preferência e, portanto, escolha pela baderna. E essa nos satisfaz. Nos satisfaz principalmente quando nos atende justamente com aquilo que queremos e não sabíamos que queríamos até sermos contemplados pela aleatoriedade. Contemplados pela surpresa de encontrar, diante de nós, desejos inauditos de nosso coração. Ou, melhor, desejos inauditos de um coraçãozinho de galinha, seguido de um cubo perfeitamente esculpido de frango ou porco. E talvez seja o cansaço de repetir sempre na mesma ordem que queremos um sanduíche do dia em pão três queijos, com suíço, alface, azeitona, rúcula, tomate, molho parmesão e maionese que, pra variar um pouco, desejamos tão genuinamente que aquilo que se encontra dentro de nosso sanduíche mais pareça uma batalha campal. Mais pareça que tiveram baixas de todos os lados, seja lá quantos foram. E é com essa estética da brutalidade defuntuosa que se consolida o descontrole sobre nosso próprio destino. Nunca é o mesmo. Nunca é o que pensamos e justamente por isso é o que queremos. E, com o choque de realidade, interrompemos a palavra que sequer era proferida e que prontamente é retomada com um despretensioso "do que que a gente tava falando mesmo?". E, com todo esse desaviso, conseguimos lembrar daquilo que sequer teve a oportunidade de ser esquecido e emendar, então, três assuntos em um ou ainda um quarto que se relaciona com tudo aquilo e mais ainda uma quinta coisa que, por sua vez, se relaciona em particular com a primeira. E tudo isso se fala sob a trituração das fibras de qualquer que seja a carne.

Ainda há quem, em meio a isso tudo, complemente aquela indefinição com algo um pouco mais concreto. Que jogue por cima daquela pluralidade um ketchup, uma mostarda ou ainda uma maionese que se diz caseira mas que, na verdade, só tem uma procedência duvidosa. Afinal, o adjetivo "caseira" não é nada menos que indefinido. Nada menos que incerto e que, seja qual for o motivo, passa para a pasta certo tom de credibilidade que ela, por si só, fez pouco por merecer. Mas tudo bem. Isso, no entanto, se mostra tão eficiente quanto tentar pegar as rédeas de um cometa. Sim, sentimos que estamos no controle mas, no final de tudo, estamos, na verdade, apenas nos negando a aceitar que o caminho não foi traçado por nós. Não foi, aliás, traçado por ninguém se não aquilo que podemos chamar de destino. Como algo que está escrito nas estrelas. E não é por aquele xis ser tão gritantemente aleatório que seja só nele que residam as incertezas universais. Que a loteria das coisas se reduza ao seu interior. Não. Por mais interessante que possa ser a imagem de toda uma galáxia prensada em uma chapa entre dois pães, essa não é a nossa realidade. Muitas outras indefinições estão reservadas para nós e não adianta tentar soterrá-las com ketchup e maionese, como se um terrível deslizamento tivesse ocorrido logo abaixo de uma plantação de tomates e de um galinheiro. Por mais louvável que seja esse esforço de fazer com que as estrelas andem em fila, ele também revela a incapacidade do sujeito de contemplar o que foge ao nosso alcance, de entender que nem tudo que escapa nossa compreensão ordenada do universo é necessariamente ruim.

É quase natural que queiramos que o que nos cerca tenha ordem. Ora, se Deus é responsável por tudo isso, deve haver algum sentido, não? Aí é que nos enganamos. E não digo isso por desacreditar na existência de Deus, mas por reconhecer que ele ou ela, se existir, possui fetiches criativos muito difíceis de categorizar. E digo fetiches por falta de palavra melhor, afinal se um ser onipotente resolve criar algo, seja o que for, a partir do nada, esse algo sempre vai ser absurdo se comparado ao nada que o antecedeu. A partir da perspectiva da inexistência a existência, em si, já é absurda. E daí tudo nada mais é que um algo aleatório. Mas isso, muitas vezes, acaba passando despercebido. Resolvemos enumerar categorias e nos certificar de que as coisas seguem sendo afetadas pela gravidade. Quando na verdade a gravidade, enquanto regra (assim como todas as regras) só por existir já é mais absurda que a ausência dessa. Mas talvez isso seja muita viagem. Pode passar o ketchup?



Francisco Nunes Fontanive é escritor e cientista social formado pela UFRGS, se entretém longamente com a pequeneza das palavras e preza pelo cheiro de grama recém cortada. Acredita que mosquitos e louça suja põem em xeque a benevolência de Deus.