O grande desfile patriótico
por Matheus Borges


Aos dez anos, marchei pela primeira vez no desfile de setembro que marcava os festejos da Independência, acompanhado de duzentas outras crianças. Alguns deles eram meus colegas e o resto, estudantes de outros colégios do município. Quem abria o cortejo era a banda marcial da minha escola, trinta garotos mais velhos em uniformes brancos de corte militar, um penacho vermelho no quepe. Eu vinha mais atrás, de mãos dadas com uma coleguinha, fantasiado de soldado patriota. Sorridente, fui inebriado pelo êxtase que desaguava das arquibancadas, onde vibravam professores e dentistas, advogados e corretores de imóveis. Amontoados nessa imensa vitrine de corpos, os cidadãos faziam tremular suas bandeirinhas e lançavam confete na avenida. A banda marcial perseverava, apesar do amadorismo. Triunfante, entoava o repertório de canções patrióticas, suas cornetas um tanto desafinadas, taróis e pratos repercutindo fora do tempo. Estar ali era, enfim, a realização de um sonho.

Desde muito pequeno, acompanhado de meu pai, eu assistia ao desfile da Independência. Comprávamos uma lata de guaraná e nos sentávamos nos compridos bancos de madeira em frente à prefeitura. Ele me oferecia um saco de confete e, engarupado em sua cabeça de cabelos que começavam a rarear, também eu vibrava naquele ritmo dissonante que irrompia na praça central. Tomava um gole do refrigerante e lançava um punhado de confete nos cavalos de pau, nas princesas com vestido de papel crepom e nos escravos acorrentados com papelão. Ansiava pelo dia em que eu próprio fosse uma daquelas crianças no meio do burburinho, marchando avenida abaixo, servindo de condutor no circuito de energia patriótica. Eu me imaginava em elaboradas fantasias de marechal e coronel, um herói nacional cuja efígie poderia estampar cédulas e selos.

Mais tarde, na adolescência, me tornei repórter no jornal da minha escola. O desfile da Independência era um dos pontos altos do calendário letivo, possivelmente a data mais importante do ano. Mobilizava, para além dos corpos docente e discente, pais e mães que costuravam fantasias, funcionários da prefeitura que acompanhavam os ensaios, emissários do governo estadual que inspecionavam o andamento das apresentações. Minha cobertura do evento começava no mês anterior ao desfile, quando tinha início o período de ensaios da banda marcial. Munido de papel e caneta, comparecia às sessões organizadas diariamente no ginásio de esportes, onde colhia depoimentos de instrumentistas e do professor de música.

O discurso, sempre o mesmo, era o de que davam seu melhor para executar as célebres canções patrióticas, que o próximo desfile superaria o do ano anterior, que as novas gerações se mostravam cada vez mais comprometidas com o espírito cívico, bússola moral de nossa nação. Permaneciam ali pelo restante do mês, ensimesmados com suas partituras, como se fizessem parte de uma operação isolada do resto da escola. Ao fim, eclodiam confiantes do ginásio, caracterizados em seus trajes festivos, como se estivessem prontos para empunhar suas armas e morrer lutando no campo de batalha.

O dia do desfile era mais agitado e eu deixava meu bloco de anotações em casa. Para que minha cobertura estivesse à altura da euforia dos eventos, pegava emprestado o gravador portátil do meu pai. Saía de casa bem cedinho e acompanhava os preparativos: o hasteamento da bandeira, a montagem dos estandes, o levantamento de penduricalhos, a formação das colunas. Assim que o desfile começava, subia ao palanque, onde entrevistava as autoridades que compareciam à solenidade.

Sacudindo uma bandeirinha pendurada num palito de churrasco, o prefeito dizia que o civismo era uma importante característica de nosso município, que ninguém investira tanto no desfile de setembro quanto sua administração, absolutamente comprometida com as tradições do nosso povo. O secretário de obras professava que o desfile patriótico só era possível graças à eliminação dos buracos na avenida principal. Isso sim era ato de civismo. Depois, conversava com o presidente da câmara municipal, que não perdia a oportunidade de atacar o prefeito. Aí vinham o pároco de nossa igreja e o juiz de nossa comarca, o comandante de polícia e o presidente da associação comercial. Ao chegar em casa, tinha dificuldades para transcrever os depoimentos, uma vez que a voz dos homens era encoberta pelo repertório estridente da banda marcial.

Os anos se passaram e meu entusiasmo arrefeceu. Aos vinte anos de idade, o desfile me provocava um aborrecimento terrível e eu preferia ficar em casa. Aos trinta, depois de me tornar professor de geografia, os festejos de setembro representavam um obstáculo incontornável ao meu trabalho. Nas semanas de ensaio que antecediam o evento, precisava liberar os alunos uma hora mais cedo, o que atrasava meus planos de aula. Aos quarenta anos, já não me importava em liberar os alunos, azar o deles. O que me causava irritação era o espetáculo em si. Detestava os símbolos pátrios, completamente vazios, o hinário ufanista, ainda mais quando executado pela banda de jovens amadores, o discurso das autoridades, que passavam o ano inteiro atravancando os procedimentos da escola e esperavam naquele feriado um sinal de gratidão incondicional. Irritava-me a procissão de crianças vestidas de mortos, as arquibancadas cheias de gente que ignorava o verdadeiro significado daquela festa. Provocava-me nojo o cheiro de pipoca e algodão-doce e eu já não era nem capaz de beber meu guaraná. Ainda assim, era preciso comparecer ao desfile, oferecer meu sorriso às autoridades, acompanhar meus alunos enquanto marchavam pela avenida.

Agora que me tornei diretor do colégio, sou um dos responsáveis pela organização do desfile. Para abrir os festejos do ano que vem, que já garanti ao prefeito será o maior e melhor de todos, solicitei uma verba adicional à secretaria de educação e mandei construir um imenso carro alegórico em formato de cavalo. Com o auxílio de um amigo engenheiro, elaboramos um explosivo à base de fertilizantes, que será implantado no peitoral do equino. A fim de manter a estabilidade da bomba e a continuidade do plano, o engenheiro sugeriu que construíssemos um dispositivo acionado por som. Para tanto, criou ele mesmo um complexo sistema de acionadores que só provoca a explosão ao serem detectados, em sequência, os quatorze primeiros acordes do hino nacional.

Em função disso, demiti o professor de música e contratei um maestro com quinze anos de experiência nesse tipo de apresentação. Para demonstrar meu compromisso com o espírito cívico, comentei em entrevista à rádio local, nossos ensaios começarão em abril.



Matheus Borges é escritor e roteirista, formado no Curso de Realização Audiovisual da Unisinos. Teve histórias publicadas em revistas literárias no Brasil (Subversa, Gueto, RelevO) e no exterior (Waccamaw, Entropy, Fiction International), bem como em coletâneas e antologias.