Quarentenas para o Não
5 minicontos infantis + 5 minicontos adultos
por José Roberto Torero


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1

Depois de dar banho em Rita, sua mãe foi procurar uma calcinha para vesti-la. Mas não achou nenhuma.

- Rita, você sabe onde estão suas calcinhas?

- No meu hospital.

- Você tem um hospital?

- Tenho. Por causa da covid.

- Onde ele fica?

- Ali.

Então a mãe se abaixou e olhou embaixo da cama. Lá estavam todas as bonecas de Rita. E havia uma calcinha no rosto de cada uma.

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2

Os gêmeos Pedro e Paulo sempre tiveram jeitos muito parecidos. Às vezes até falavam as mesmas palavras ao mesmo tempo. Mas na quarentena estão bem diferentes.

Paulo corre pelado pela casa e grita: "Oba!, nunca mais vou para a escola!"

Pedro chora um pouquinho todo dia, mas não sabe explicar o porquê.

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3

O gato de Lucas trouxe um beija-flor na boca.

O pai pensou em jogar o passarinho no lixo, mas Lucas viu que ele ainda estava respirando e pediu para cuidar do bichinho. Colocou-o numa gaiola vazia que a mãe usava de enfeite, deu-lhe água, carinho e o nome de Beijoca.

No final do dia, o bicho começou a bater asas.

- Parece que você ganhou um amigo para a quarentena - disse o pai.

- Passarinho pega covid? - Lucas perguntou.

- Não, não pega.

- Então é melhor soltar o Beijoca. Ficar trancado é muito chato.

Lucas abriu a gaiola e o passarinho saiu voando.

Antes de sumir de vez, virou-se e mandou uma beijoca de despedida.

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4

Gelse gritou:

- Martim, o que são todas essas folhas de papel com barbante na ponta?

- São minhas pipas, mãe. Eu vou empinar elas quando acabar a quarentena.

- Mas a quarentena ainda pode demorar muito.

- Quanto?

- Não sei.

- Poxa, eu queria tanto empinar as minhas pipas...

Martim fica sem saber o que fazer. Mas, de madrugada, sonha com a solução e se levanta.

Quando Gelse acorda, vê que as pipas estão amarradas nos ventiladores da casa e dançam feito doidas no ar.

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5

A pequena Litz explicou com paciência:

"Pai, a brincadeira é assim: você é o coronavírus. E eu fiquei bem pequena, tipo uma miniminiatura, e vou lutar com você. Só que você se mexe bem devagar, que nem uma tartaruga, e eu me mexo bem rápido."

A seguir, o que se viu foi uma série de socos, chutes e almofadadas no pobre vírus, que lutou como se fosse um King King, um Godzilla, mas sempre como se estivesse em câmera lenta. Depois de muitas quedas, finalmente o monstruoso ser levou o golpe derradeiro, dado com o grande encosto do sofá.

E foi assim que o coronavírus morreu e a humanidade foi salva.

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I

Quando viu a patroa de cama, Elba deu prova de sua infinita fidelidade e cuidou de dona Mercedes como de uma filha. Fez-lhe canjas, comprou-lhe remédios, tirou-lhe a temperatura doze vezes por dia e acabou pegando a doença.

Dona Mercedes ficou inconsolável quando Elba morreu. Ela sabia que tinha trazido o vírus da Itália, depois de uma bela viagem pelos vinhedos da Toscana, e que contaminara a empregada. Não se pode dizer que não tenha sido generosa. Mandou coroa de flores e pagou caixão.

Mas o remorso continua torturando dona Mercedes. Tanto que, cada vez que ela passa a própria roupa, cada vez que ela faz a própria comida, cada vez que varre o próprio chão, dona Mercedes derrama uma grossa lágrima. E, entre soluços, pensa: "Será que a filha da Elba não pode vir dar uma ajudinha?"

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II

Mimi tinha visto na tevê que, na quarentena da Itália, as pessoas estavam cantando nas sacadas. E Mimi sempre quis ser cantora. Então preparou todos os detalhes com esmero: escolheu uma ária ("Sí, Mi Chiamano Mimí", da ópera "La Boheme", de Puccini), decorou a letra, ensaiou os gestos no banheiro, preparou o som, colocou seu melhor vestido e apertou o play.

Mimi ainda está em dúvida se os tomates, laranjas, pepinos, bananas e até latas de ervilha que foram atiradas em sua sacada foram um pagamento ou uma crítica.

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III

O marido de Regina é um dos 750 mil presos do país. Como as visitas estão proibidas, só lhes sobraram as cartas, como esta, que ela lê pela décima vez. A folha está salpicada de pingos de lágrimas e Regina a lê aos soluços, sem conseguir acabar as frases.

"Minha rainha, espero que você esteja bem. Aqui não está fá..."

"Todo mundo acha que vai morrer. Ontem, um cara da minha cela..."

"Até os funcionários estão chorando. Dois deles..."

"Nem advogado pode entrar. Aí não dá nem pra..."

"A enfermaria está lotada. Quem tá doente fica uns dias e depois volta para a cela. Só continua lá quem vai..."

"Aposto que tem gente dizendo: 'Bem feito. Tá na cadeia, tem que morrer. Por que não pensou antes de fazer coisa erra...'"

"Não sinto cheiro de nada. Estou há duas semanas com febre. E tusso que nem cachor..."

"Faltam poucos meses para eu sair daqui. Não vejo a hora de..."

"Manda um beijo para minha mãe e para..."

"Reza por mim. É só o que..."

"Se você não receber mais cartas minhas, fique sabendo que eu te...".

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IV

Um rapaz chora na janela. Uma semana atrás, ele gritou para o médico:

- Dá cloroquina pro meu pai!

- Não é assim - explicou o médico. - Nem sempre se deve usar cloroquina. Ela pode acelerar o coração e causar um enf...

- Papo furado! Você deve ser de esquerda. O pessoal de esquerda é contra a cloroquina porque o presidente é a favor. Tem que dar cloroquina pro meu pai. Você é um médico ou um assassino?

- Esse remédio não é uma panaceia, uma cura. Ainda faltam estud...

- Olha o meu pai. Olha! Pior do que ele está, só morrendo.

- Não vamos exagerar. Existem outros trata...

O rapaz perde a paciência e sai batendo a porta.

Uma hora depois, quando estava visitando o pai, deu-lhe uma grande dose de cloroquina que comprou na farmácia.

Agora o rapaz olha pela janela e chora de remorso. Ele pensa que, se tivesse começado a dar a cloroquina mais cedo, o pai ainda estaria vivo.

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V

O pastor Sales, da igreja pentecostal "Na Arca de Noé Sempre Cabe Mais Um", tosse outra vez. Ele está preocupado. De meia em meia hora tira a própria temperatura. A febre não passa.

"Será que peguei a coisa de algum fiel?"

Ele deita em sua cama e olha para o espelho do teto.

"E se eu desse uma benção em mim mesmo?"

Ele ri da própria piada por um segundo, mas logo volta a ficar tenso. Lembrou que Marilene, cabeleireira devota, estava muito pálida no último culto. O pior é que ela beijou seus dedos, lhe entregou um envelope com todo seu aviso-prévio e disse: "Se Deus está conosco, não há nada a temer".

O pastor Sales esfrega a mão na calça até ela ficar vermelha.



José Roberto Torero é cineasta ("Amor!", 1994; "Como fazer um filme de amor", 2004; etc.), escritor ("O Chalaça", 1994; "Xadrez, truco e outras guerras", 1998; "Dicionário santista, de A a Z, mas sem X", 2001; etc.) e colaborador do Não desde a segunda geração. Seu "Diário do Bolso" (2019), censurado no Facebook, está à venda na Amazon.