(Godard, com licença)
DUAS OU TRÊS COISAS QUE EU SEI DELA
(da refleqchão)
por Sérgio Lerrer
Publicado originalmente  no Não 31, de 28/06/78
 
 
O Giba tem razão. O "Não" algum dia poderia mudar o nome para TUTUZEI, que seria ótimo. E até não é porque eu mesmo inventei esse nome na doce infância. É porque no ar há inegavelmente um cheiro de geração tutuzei. A editora do jornal seria, ainda segundo a leveza de imaginação do Giba, a Malvina Cruela. A maldade dela para com os dálmatas é incrível e tem uma sujeira visual que falta nessa nossa coragem que tememos sujar. O espírito do jornal teria alguma coisa a ver com o 007, com o colorido das letras que sempre há em seus créditos, sempre aparecendo como se surgissem de dentro da água, compondo-se pouco a pouco na nossa frente. A mente do jornal deveria ter um local dedicado a uma outra parte do 007: às músicas dos seus filmes, ao "Live and let die" de Paul McCartney e a essa música de "O Espião que me amava" que a dona Carly Simon canta. O tom do jornal. Ah, o tom do jornal tinha que ser "a vontade de gritar Shazan e sair voando": atravessar Pedra Redonda, o Beira-Rio e aterrisar no Bom Fim. Virar super-herói, pois é... (Desculpe Flávio M. da Costa, mas aqui tive que modificar teu personagem.)

Os leitores não seriam leitores. Seriam almas flutuantes declamando o jornal às cinco da tarde na frente do monumento ao expedicionário. Conseguiuram relacionar-se bem com os desconhecidos, e viveriam amargurando a intimidade construída. Odiariam Woody Allen apesar de pensarem tudo o que Woody Allen pensa. Desejariam ser um pouco do que Janer Cristaldo é, nem que fosse somente por um dia. Assim deixariam de acreditar no amor e se libertariam. Se libertariam do quê? Não sei. Talvez do fascínio da imagem da decadência.

O ano. Nesse ano Ana Maria Taborda iria morrer. De câncer cerebral. O movimento estudantil ganharia corpo e passaria a viver, porque fisicamente passaria a sofrer. José Rubens Siqueira faria um outro "Amor e medo" e ganharia a Coruja de Ouro, mesmo que Jean-Claude não estivesse na comissão julgadora. Seria o ano da raposa e todos mentiriam dizendo estarem prontos para os novos dez mandamentos. Quem iria recebê-los de Deus no alto da montanha seria Oswald de Andrade. E Oswald trairia seu povo tomando o poder, cuja procedência era dos novos mandamentos. Sucederia outra praga de gafanhotos, outra praga de sapos e Glauber construiria uma enorme arca para salvar os primigênitos da condenação final. Glauber carregaria consigo seus filmes e à imagem deles tentaria criar um novo paraíso.

Mas sempre haveria um "A leste do Eden". E sempre haveria uma Jaqueline para transformar isso em um filme. Só que dessa vez seria impossível. James Dean está morto. Elia Kazan fez "Os Visitantes" sobre o Vietnam e "O Último magnata" sobre a sua ruína. Mas sempre haveria uma Jaqueline para maravilhar-se com "Vidas amargas" e uma Denise para chorar, séculos depois, com a farsamente trágica trajetória do homem que sentia o perfume das mulheres.

A esquina maldita se mudaria para uma next stop feita por um Larry Lapinsky que toma chopp e não capuccino. Nela, aos sábados e domingos, estaria José Onofre explicando o porquê do assassinato de Aldo Moro trinta anos atrás. Ele teria junto a si a Folha da Manhã e sua companheira maria Helena, filha do Cyro Martins e amiga de minha tia que hoje mora em Berkeley.

Raul Seixas seria o presidente do Brasil e poria o Euacho como jornal oficial. Das 19 às 20 horas, no rádio, só falariam aqueles que gostam de tomar banho de chuva. E na televisão só trabalhariam supeeroitistas. Domingos de Oliveira se irritaria. Maciel se aborreceria por não mais poder fazer "Ciranda cirandinha". Magalhães Pinto escreveria para o Pasquim, de Londres. Roberto Carlos ficaria como um novo Frank Sinatra, também na promessa de viajar aos EUA. O dia começaria às dez da manhã e as máquinas de escrever seriam jogadas fora pelas tigresas.
 
 



Sérgio Lerrer hoje mora em São Paulo e tem uma gráfica e uma filha.