UMA BOA IDÉIA DE PORTO ALEGRE
 
por Giba Assis Brasil
 
 
Passados menos de quatro anos do lamentável episódio Collor-Ipojuca, poucos ainda discordam da necessidade de a cultura ser apoiada pela sociedade. Discursos demagógicos como o de que "num país de miseráveis e analfabetos, cultura é luxo dispensável" têm sido substituídos pelo mais civilizado conceito do "papel estratégico da cultura na geração de serviços, postos de trabalho e ofertas turísticas" - mais raramente na constatação de que sermos um país de miseráveis e analfabetos é também um fato cultural (mas isso já é outra história). A questão é: em que termos o Estado deve intervir na produção cultural?

O discurso oficial, assumido pelo Ministério da Cultura (MinC) e por boa parte da imprensa, tem sido o de que existem duas formas opostas de incentivo à cultura: o "investimento público direto", burocrático, centralizador, simbolizado pela extinta Embrafilme, em que é o Estado quem escolhe os projetos a serem financiados; e o sistema de incentivos fiscais, moderno, profissional, exemplificado pela Lei Rouanet e assemelhadas, em que os projetos viabilizam-se por decisão do Mercado, através de parcerias com a iniciativa privada, gerando o que os técnicos do MinC chamam de "seed money" ou "recurso que se investe e que tem a capacidade de gerar mais recursos". O raciocínio, embora atraente, é falacioso.

Em primeiro lugar, é bom lembrar que, nos dois casos, o dinheiro que paga a produção cultural é o mesmo: dinheiro público, nosso dinheiro. Em segundo lugar, nem Estado nem Mercado existem como consciência, logo não "escolhem" ou "decidem" coisa alguma. Num sistema ou no outro, quem assume a função de separar o joio do trigo (ou o que se supõe sejam o joio e o trigo) é um pequeno grupo de indivíduos: funcionários em cargo de decisão, empresários com orçamentos adequados.

Ora, sabemos todos que as decisões "dos" organismos centralizados, especialmente no Brasil, têm sido historicamente desastrosas, gerando favorecimentos pessoais, barrando a pluralidade e ampliando a apropriação do Público por interesses privados.

O que o discurso oficial omite, mas que já começa a ser discutido publicamente, é que as tais leis de incentivo fiscal, por outros meios, geram distorções bastante semelhantes. Tomem-se por exemplo os dados contidos na matéria da Folha de São Paulo do dia 2 de março, com o título LEI ROUANET FAVORECE A CONCENTRAÇÃO DE INCENTIVOS: 54% de todos os patrocínios gerados pela Lei Rouanet em 1995 beneficiaram apenas 10 grandes projetos; desses, só 2 significam a criação de novos "produtos" culturais (2 filmes de longa-metragem), enquanto 3 são eventos que contemplam a divulgação de produtos já existentes (festivais, mostras) e nada menos que 5 tratam da construção ou reforma de prédios que supostamente se tornarão centros culturais privados.

Nada contra os centros culturais privados, viva a divulgação de produtos culturais! Mas uma cultura realmente viva deve ou não guardar um espaço um pouquinho maior para o novo? E quem garante que os tais prédios não vão se tornar a médio prazo centros de encontros empresariais com pouquíssima relação com a cultura?

Mas o mais preocupante é que, daqueles 10 grandes projetos, 6 são de auto-aplicação de incentivos fiscais. Ou seja: o Banco Tal deixa de pagar imposto para investir (em cultura) no Instituto Cultural Tal, mantido e administrado pelo próprio banco. E o produtor cultural independente, como é que fica nessa "parceria" de cartas marcadas? É isso que o MinC chama de "seed money"? Pra quem não sabe, "seed" em inglês é semente, mas "to go to seed", na gíria norte-americana, significa simplesmente "ir à falência".

Porto Alegre não está alheia a esta discussão, mas tem uma resposta diferente. Cinco anos atrás, a idéia era criar, também aqui, uma lei municipal de incentivos fiscais. Mas uma ampla negociação iniciada pelo então vice-prefeito Tarso Genro, e envolvendo executivo, legislativo, entidades culturais e comunitárias, terminou resultando na criação do Fumproarte - Fundo de Apoio à Produção Cultural e Artística de Porto Alegre.

Ao invés de centralizar o processo de decisão "no Estado" ou transferi-lo "para o Mercado", optou-se por um terceiro sistema, estruturalmente semelhante ao Orçamento Participativo: investimento direto, mas com decisão compartilhada entre Estado e comunidade, e com participação amplamente majoritária da comunidade. No Fumproarte, como no Orçamento Participativo e em outras instâncias (inclusive a recém-criada Conferência Municipal de Cultura), Porto Alegre dá a sua resposta (cultural!) aos desafios para a construção da democracia do terceiro milênio: desprivatização do Estado, consolidação de mecanismos de participação direta, criação de espaços públicos não-estatais.

A lei que criou o Fumproarte foi aprovada na Câmara em setembro de 1993, e o primeiro edital foi aberto em março de 1994. Nesses dois anos, foram viabilizados 54 projetos: 15 CDs (sendo 10 com shows de lançamento), 7 livros, 9 espetáculos de teatro, 3 de dança e 2 de música, 4 séries de oficinas, 4 exposições de arte e 1 de acervo histórico, 1 vídeo, 1 song-book, 1 seminário internacional de música, 3 filmes de curta e 3 de média metragem.

Segundo o discurso oficial, tudo isso é "efetivamente muito pequeno para uma cidade do tamanho e da riqueza cultural de Porto Alegre". Talvez seja. Conforme dados publicados na Zero Hora de 16 de abril último, a Lei Rouanet em 1995 teria aplicado R$ 20 milhões, 25 vezes mais que os R$ 800 mil destinados ao Fumproarte em 1996. Mas a população atingida pela Lei Rouanet (a do país) é 100 vezes maior que a de Porto Alegre. Logo, por simples regra de três, chegamos à conclusão de que o Fumproarte é 4 vezes maior que a Lei Rouanet. Isso comparando as populações, não os orçamentos da União e do Município, o que daria ainda maior vantagem ao Fundo portoalegrense. E sem considerar que os recursos do Fumproarte são integral e efetivamente aplicados em projetos culturais, enquanto a Lei Rouanet lida com intermediários, que ficam com no mínimo 15% dos recursos contabilizados.

E há ainda o custo de mídia: matéria da Folha de São Paulo de 25 de abril com o título TEATRO ADERE AO MARKETING E ORÇAMENTOS EXPLODEM chama atenção para um novo fenômeno: "Entrada de patrocinadores e concorrência com opções de lazer fazem produtores teatrais gastarem mais com propaganda". Como exemplos, o espetáculo "Pérola", que custou R$ 710 mil (sendo 510 mil em mídia), e "A Quarta estação", com orçamento de R$ 600 mil (400 mil para a mídia). A Folha conclui que a responsabilidade é das "leis de incentivo": "As empresas que entram com recursos valorizam muito o plano de divulgação do produto cultural que vão patrocinar. Em alguns casos, bancam exclusivamente a mídia."

Não vamos negar que o fenômeno, independentemente de aumentar o faturamento da Rede Globo e da própria Folha com dinheiro público, tenha alguns aspectos positivos. Mas, desculpem, não tem nada a ver com cultura, ou ao menos com o conceito de cultura que justifica as leis de incentivo, e a própria existência de um ministério. Quem pergunta por que Porto Alegre ainda não tem a sua lei de incentivos fiscais à cultura talvez deva ser questionado pelo outro lado: por que o MinC ainda não tem um verdadeiro fundo de apoio à produção cultural?

Giba Assis Brasil
maio de 1996