Imagens e Palavras
por Jorge Furtado 12/06/99 12:46
Por sugestão do Alan (Assim Rasteja a
Humanidade) volto aos quadrinhos. Aviso que não sou nem
de longe um conhecedor do assunto. Sei o nome de bem pouca gente
e detesto a maioria dos novos gibis que estão nas bancas, quase
todos envolvendo heroínas modelo barbie (peitudas de cintura
fina) enfiadas em roupas colantes de borracha, saltando de nada
para lugar nenhum enquanto disparam armas ridículas e dizem
coisas que eu nem cheguei a ler mas aposto que são bobagem. Me
interesso pelos quadrinhos pelo mesmo motivo que me interesso por
cinema, literatura, artes plásticas ou qualquer forma de
expressão dos nossos medos e desejos: o prazer de entrar em
contato com o que os seres humanos tem de melhor e me sentir
menos estranho numa terra estranha.
Quadrinhos só são tratados como arte de segunda categoria por quem: a) não teve a curiosidade intelectual de conhecê-los; b) ao conhecê-los, não teve a sensibilidade ou paciência para distingui-los; c) é ignorante mesmo. Para quem não gosta e se enquadra nas categorias a ou b, sugiro a leitura de "Desvendando os Quadrinhos", de Scott McCloud, um estudo ainda mais abrangente que o clássico "Quadrinhos e Arte Sequencial", do Will Eisner. É um curso completo, melhor que a maioria dos livros sobre cinema que eu conheço. McCloud analisa com perfeição o nascimento simultâneo da representação pictórica e da palavra escrita no teto das cavernas. Imagem e palavra nasceram juntas, representando um homem, um boi ou uma arma de caça. Lentamente o ícone se afasta da imagem que o gerou e o homenzinho vira a letra T ou A, e o boizinho vira Mu e logo ninguém lembra mais porque e surgem as escolas de alfabetização. Pobre do Ivo, vê a uva mas não sabe como se escreve.
Cinema e quadrinhos são formas de expressão muito semelhantes, pelo uso simultâneo de imagens e palavras. (Na manipulação de ritmos e no fazer sentir o passar do tempo, cinema se parece mais com música. E na construção dramática, com o teatro.) Detesto usar a palavra arte, mais gasta que corrimão de asilo, para definir qualquer coisa, mas partindo da definição de Gombrich de que "não há arte, só há artistas", acho que há cada vez mais arte nos quadrinhos e menos no cinema. O cinema é cada vez mais (sempre foi) uma forma de expressão coletiva. O cinema é cada vez mais (nem sempre foi) um negócio. O artista, antena e cloaca da raça, raramente convive bem com as dezenas de filtros que a indústria coloca entre intenção e gesto. Seria impossível para Robert Crumb sobreviver a uma série de reuniões com agentes, produtores e patrocinadores para fazer seu primeiro filme. Bem mais fácil para ele foi abrir um caderno e riscar com um lápis. Que depois tenha virado capa de disco da Janis Joplin ou freqüentasse milhares de pára-lamas dos caminhões americanos foi conseqüência do seu talento, óbvio até para vendedores de escovas. O mercado absorve tudo que vende, estou esperando para qualquer momento o piercing da Tiazinha. Ainda não tem?
Quadrinho também vende muito e na imensa maioria é lixo industrial, como no cinema. Sorte nossa que, vez por outra, um jovem acabrunhado, cheio de conflitos e espinhas, trancado em seu quarto, rabisca alguns traços de humanidade. Ele não tem que convencer ninguém que aquilo daria um bom filme. O quadrinho já existe. Se será visto ou não, depende se sorte, talento e persistência. Algumas trutas sobrevivem subindo este rio, mas a maioria desiste e volta para o lago. (Alguns são apanhados por ursos nas cachoeiras e viram publicitários).
"Comic Book, O Novo Quadrinho Americano", editado pela Conrad, traz alguns exemplos dos que conseguiram subir a montanha, alguns até o alto como Daniel Clowes. O cara is up dried beef (está por cima da carne seca nos Estados Unidos) já faz tempo. Edita a revista Eightball, que é um sucesso (isto é, vende muito). Ele é o autor da primeira e melhor história do livro, "Caricatura" (a única que eu já tinha lido antes da sugestão do Alan). O desenho, uma mistura do poder crítico do Crumb com a clareza visual do Dave Gibbons, retrata com perfeição a sordidez espiritual das pequenas cidades do interior americano, assustadoras e ingênuas como só os jecas conseguem ser. O texto vai direto ao ponto, seguindo a tradição cantada por Hammet: "concentre-se no essencial e corte fora todo o lixo". Os personagens principais, um cartunista de feira, meia-idade e levemente calvo, e uma adolescente estranha (há que não seja?) filha de artistas performáticos. O enredo oscila entre um Bukovski abstêmio e um Joe Fante ateu. Triste pra cachorro. Gibi do bom.
A segunda história é "Cabeça de Cera" (alô Conrad, cera sem acento) de Dame Darcy. Fantasmas urbanos e riscalhada tipo Crepax, também acho um saco. Mas o desenho é bom e a história curtinha e indolor. O editor informa que Darcy é cantora de blues e apresentadora de televisão. Deve ser apanhada por um urso em breve.
A terceira é "Substitutos", de Richard Sala. O desenho é legal, mas os enquadramentos e o roteiro são melhores. Uma história de terror em tom realista, com viradas e um final engenhoso, do tipo que as pessoas costumam classificar como "daria um bom curta". Espero que ninguém faça, não precisa.
A quarta é muito engraçada, "Rei da Televisão", de Peter Bagge. Apresentador de programa é substituído, a pedido dos telespectadores, por sua namorada, uma feminista que desconhece seu principal apelo televisivo: suas coxas. A única da antologia que justifica a palavra comics.
A quinta e sexta são dos irmão Jaime e Gilbert Hernandez. Pelo que eu entendi, pela primeira vez um está desenhando os personagens criados pelo outro. Como não conheço os antecedentes das histórias, sobrei um pouco. Mas os desenhos são ótimos. "Pintura de Guerra", do Jaime, tem crianças cruéis e mulheres peitudas. "Satyricon", do Gilbert, se passa num futuro distante onde coisas estranhas acontecem. Enfim, um paraíso dos desenhistas. Quando o cara é bom, como é o caso, rende.
"Visitas na Noite", de Debbie Drechsler é um chocante relato auto-biográfico sobre abuso sexual na infância. Ótimo desenho e roteiro, barra pesada.
Larguei no meio o "Natal Karadzic", de Joe Sacco. Não gostei da disposição gráfica do texto (excessivo) e me irrito com desenho sombreado (aqui talvez resultado da transposição do original colorido para o preto e branco do livro). História grande e com referências políticas. Saco.
Com "Doce Demais", de Lloyd Dangle, estamos de volta ao mundo real, onde o criador expõe sua visão de mundo, fala de um universo que parece conhecer a fundo. É a história de um adolescente criado para ser doce e gentil que sofre pela incapacidade de enfrentar os idiotas de plantão. O desenho é eficiente, apesar de exagerar as vezes na riscaria.
Os editores escolheram começar com o melhor (Cloves) e terminar com o vice-melhor, "Dylan e Donovan", de Adrian Tomine. O desenho é claro, preciso e eficiente. Os personagens, irmãs gêmeas de 20 anos, milagrosamente escapam dos clichês do adolescente. A história é narrada por Dylan, torturada por sentimentos que é incapaz de dividir. É literatura da melhor qualidade. O livro informa que Tomine é vizinho de rua do Cloves e do Sala. O bar da esquina deve ser divertido.
"Comik Book" é o segundo lançamento da Conrad, que veio com tudo. (O primeiro é Gen, já comentei no Não 62). Outra boa editora de quadrinhos é a Via Lettera. Não percam "O Homem Ideal", de Ralf Köning, o hilário cotidiano da veadagem alemã e, principalmente, "Bone", de Jeff Smith. Falo sobre ele no Não 64.
Todos os gibis aqui citados pode ser encontrados na Planeta
Proibido, na Riachuelo. Perdi outra vez o cartão, mas agora eles
têm uma página na internet (sem vendas): http://www.planetaproibido.com.br.