GUERRA CRIARÁ AMEAÇA MAIOR
entrevista com o sociólogo italiano Pino Arlacchi
por Plínio Fraga, Folha de São Paulo, 23/02/2003
 

A guerra contra o Iraque ajuda o terrorismo e, ao alimentar o antiocidentalismo no Oriente Médio, criará uma ameaça imensamente maior do que a representada pelo ditador iraquiano, Saddam Hussein. A avaliação do sociólogo italiano Pino Arlacchi, 52, é respaldada por informações que acumulou entre 1997 e 2002, quando, como subsecretário-geral da Organizações das Nações Unidas (ONU), comandou o comitê de combate ao terrorismo.

"Os ataques terroristas são só o começo do problema", declara.

Arlacchi, ex-senador pelo PDS italiano (Partido Democrático de Esquerda, antigo partido comunista), acredita que a ONU só será fortalecida após a segunda Guerra do Golfo se forem concedidos meios, como a formação de um Exército permanente.

Um dos criadores da divisão antimáfia que atuou na Itália e especialista no crime organizado internacional, Arlacchi comparece na terça-feira ao Congresso Nacional, em Brasília, para relatar suas experiências. Mas o tema que mais o preocupa no momento é a guerra, e o fato de os americanos tornarem-se a única força mediadora no mundo: "Assim, vou fazer campanha para votar para presidente dos EUA", brinca.

Folha - O sr. concorda com acusação do governo norte-americano de que há ligações entre grupos terroristas como Al Qaeda e Saddam Hussein - o argumento principal para o ataque ao Iraque?

Pino Arlacchi - Os especialistas sabem muito bem que não há relações significativas entre Al Qaeda e o regime de Saddam Hussein. Al Qaeda é uma rede terrorista baseada em valores e idéias fundamentalistas. O regime de Saddam não é um Estado religioso. O terrorismo é um problema muito mais sério e verdadeiro do que Saddam. Esta guerra tirará a atenção do mundo do terrorismo, a verdadeira ameaça e razão de luta de uma coalizão internacional.

Folha - A guerra ajudaria os terroristas de alguma forma?

Arlacchi- A guerra ajuda o terrorismo, porque leva árabes e muçulmanos à radicalização. Leva jovens e desempregados para as redes terroristas. Os ataques terroristas são só o começo do problema. Tenho muito mais medo de um processo de radicalização no Oriente Médio, que afetaria milhares ou mesmo milhões de pessoas. A ação dos EUA levará ao aumento do antiamericanismo na região, com maior fanatismo e ódio e o crescimento do fundamentalismo. Eles não precisam do terrorismo, mas vencer eleições democráticas e legítimas. Ou seja, governos eleitos em processos democráticos, mas com forte ódio aos Estados Unidos e ao Ocidente. Governos que podem produzir armas nucleares e de destruição em massa. O Paquistão caminha nessa direção. Todas as eleições naquele país após a guerra do Afeganistão foram vencidas pelos fundamentalistas. Hoje eles controlam quase metade do país.

O Irã deve ser o próximo. Neste momento, no Irã, há um governo [do presidente Mohamad Khatami], que, com apoio dos reformistas, teve 70% dos votos. A maioria da população votou por mudanças democráticas, abertura para o Ocidente, democracia e paz.

Mas há Ali Khamenei [líder supremo iraniano], que controla a polícia, o Exército, os serviços de segurança, os meios de comunicação. Foram convocadas eleições, e os conservadores venceram. É um país com 70 milhões de habitantes - não apenas 22 milhões como o Iraque - e com tecnologia para construir armas nucleares. Esse olhar falta na análise desta guerra. A responsabilidade de [George W.] Bush será imensa.

Folha - O sr. acredita que, em curto e médio prazo, possam se repetir ataques terroristas em grau próximo aos de 11 de setembro de 2001?

Arlacchi - Podem ocorrer novos atentados. Esses ataques não precisam de grandes recursos. Quanto custou o 11 de setembro? Meio milhão de dólares? Para destruir fábricas, aeroportos e vizinhanças de uma cidade não é preciso muito dinheiro. Às vezes são coisas simples, sem alta tecnologia.

Folha - O que acontecerá no futuro próximo com as Nações Unidas, após o ataque americano sem uma expressa autorização para tal?

Arlacchi - A ONU será o que os países mais poderosos quiserem. Os Estados Unidos ameaçam deixar a ONU e, talvez, construir uma nova organização. Isso pode significar o fim das Nações Unidas ou a chance de reconstruí-la mais forte. Por exemplo, permitindo que tenha um exército profissional e que responda a comandantes da ONU, em ações aprovadas pelo Conselho de Segurança. Não se trata de tropas humanitárias, como hoje, nas quais cada país contribui com centenas de soldados, sem responder a um comando único. Seria um Exército para cumprir um mandado da ONU. Poderia, se existisse, ter atuado no Iraque. Um ano antes da crise, seriam enviados os inspetores com o respaldo do Exército. Com tecnologia e determinação, desarma-se o Iraque ou qualquer outro país.

No atual momento, só parece haver duas opções: anarquia ou todo o poder nas mãos dos EUA. Caminhando-se para o segundo caso, vou iniciar uma campanha para poder votar para presidente dos EUA [Rindo]... Eu quero votar para presidente dos EUA .

Folha - Como o sr. analisa o apoio dado à guerra e aos Estados Unidos pelo Reino Unido, Espanha e Itália?

Arlacchi - No caso de Reino Unido e Espanha, há primeiros-ministros sérios que tomaram decisões sérias contra a maioria de seus cidadãos. Mas defendem e explicam suas decisões. Na Itália, ninguém sabe a posição do primeiro-ministro [Silvio Berlusconi]. Apoiou a guerra inicialmente, mas se escondeu depois de pesquisas mostrarem que quase 90% dos italianos, sob a liderança do papa, são contra a guerra.
 


Artigo publicado na Folha de São Paulo, 23/03/2003. Original aqui, mas só para assinantes do UOL.