BAGDÁ: O DIA SEGUINTE
por Robert Fisk
 

Foi o dia do saqueador. Eles esvaziaram a embaixada alemã e atiraram a mesa do embaixador para o pátio. Eu recuperei a bandeira da União Europeia - lançada numa poça de água do lado de fora da secção de vistos - enquanto uma multidão de homens de meia idade, mulheres com chadors e crianças berrando pilhavam o gabinete do cônsul e arremessavam discos de Mozart e livros de história alemã de uma janela no andar de cima. A embaixada eslovaca foi arrombada poucas horas depois.

No escritório da Unicef, que desde a década de 1980 tentava salvar e melhorar as vidas de milhões de crianças iraquianas, um exército de ladrões invadiu o edifício, empilhando fotocopiadoras novas em folha umas sobre as outras e jogando no chão cascatas de arquivos da ONU sobre doenças de crianças, taxas de mortalidade de mulheres grávidas e índices de nutrição.

Os americanos podem pensar que "libertaram" Bagdá, mas as dezenas de milhares de ladrões - eles vêm em famílias e cruzam a cidade em caminhes e carros à procura de botim - parecem ter uma ideia diferente do que significa libertação.

O controle americano da cidade é, na melhor das hipóteses, tênue - um fato sublinhado depois de vários marines terem sido assassinados na noite passada por um homem-bomba junto a uma esquadra onde uma estátua de Saddam Hussein foi derrubada na quarta-feira, na mais encenada foto-oportunidade desde Iwo Jima.

Ao longo do dia, as forças americanas travaram batalhas com forças leais a Saddam, declaradamente combatentes de outros países árabes. E, durante mais de quatro horas, marines estiveram trocando tiros na mesquita Imam al-Adham no distrito de Aadhamiya do centro de Bagdá depois de rumores, que mais tarde se verificaram inverídicos, de que Saddam Hussein e altos membros do seu regime haviam-se escondido ali.

Como poder ocupante, a América é responsável pela protecção de embaixadas e escritórios da ONU na sua área de controle. Mas ontem suas tropas estavam passando em frente à embaixada alemã no exato momento em que saqueadores carregavam mesas e cadeiras para fora do portão.

É um escândalo, uma espécie de doença, uma forma de cleptomania em massa que as tropas americanas estão alegremente ignorando. Num cruzamento da cidade vi atiradores da US Marine sobre os telhados de edifícios altos, esquadrinhando as ruas à procura de possíveis homens-bomba enquanto um congestionamento de tráfico de saqueadores - dois deles conduzindo ônibus de dois andares lotados de refrigeradores - bloqueavam a avenida mais abaixo.

Fora dos escritórios da ONU, um carro diminuiu a marcha junto de mim e um dos suarentos homens não barbeados disse-me em árabe que não valia a pena visitar porque "nós já levamos tudo". Compreensivelmente, os pobres e os oprimidos vingam-se nos lares dos homens do regime de Saddam que empobreceram e destruíram suas vidas, algumas vezes muito literalmente, durante mais de duas décadas.

Observei famílias inteiras à procuram na casa do Banco Tigre de Ibrahim al-Hassan, meio irmão de Saddam e antigo ministro do Interior, de um antigo ministro da Defesa, de Saadun Shakr, um dos mais próximos conselheiros de segurança de Saddam, de Ali Hussein Majid - o "Químico" Ali que comandou o ataque com gás aos curdos e foi morto na semana passada em Bassorá - e de Abed Moud, secretário privado de Saddam. Eles vieram com caminhões, contêineres, ônibus e até mesmo carrioças puxadas por burros mal alimentados para saquear os conteúdos destas villas enormes.

Isto também proporcionou um vislumbre do gosto chocante em matéria de mobiliário que os membros superiores do partido Baath obviamente ambicionavam: sofás de rosa barato e cadeiras ricamente bordadas, carrinhos de plástico para bebida e tapetes iranianos valiosos e tão pesados que foram precisos três ladrões musculosos para transportá-los. Do lado de fora do lar esvaziado de um antigo ministro do Interior, um homem gordo desfilava com uma cartola roubada, uma figura dickensiana que tentava dirigir o congestionamento de tráfego dos saqueadores.

Na ponte Saddam sobre o Tigre, um ladrão havia conduzido o seu caminhão de coisas roubadas a uma tal velocidade que havia sido esmagado contra a divisória central de concreto e ali jazia morto junto às rodas.

Mas nisto parecia haver uma espécie de lei dos saqueadores. Uma vez que um ladrão houvesse colocado a sua mão sobre uma cadeira ou um candelabro ou um batente de porta, aquilo lhe pertencia. Não vi discussões nem brigas. As dúzias de ladrões na embaixada alemã trabalhavam em silêncio, assistidos por um exército de crianças pequenas. As esposas apontavam os mobiliários que queriam, os maridos carregavam-nos escadas abaixo enquanto as crianças eram utilizadas para desaparafusar dobradiças de portas e - nos escritórios da ONU - para remover interruptores de luz. Uma delas estava de pé sobre a mesa do embaixador para retirar uma lâmpada do teto.

Do outro lado da ponte Saddam, uma cena ainda mais surrealista podia ser observada. Um caminhão carregado com cadeiras também levava os dois cães de caça brancos que pertenceram a Qusay, filho de Saddam, amarrados com duas cordas brancas, galopando fora junto ao veículo. Pela cidade, vi de relance quatro dos cavalos de Saddam - incluindo o garanhão branco que ele utilizava em alguns retratos presidenciais - sendo carregados num reboque. A villa de Tariq Aziz também foi saqueada e jogados fora os livros da sua biblioteca.

Todos os ministérios governamentais dentro da cidade estão agora destituídos dos seus arquivos, computadores, livros de referência, mobiliário e carros. Os americanos fingiram que não viram nada disso. Na verdade, declaram especificamente que não tinham intenção de impedir a "libertação" desta propriedade. Claro que não é fácil ser moralista acerca do espólio dos cúmplices de Saddam, mas como é que o governo do chamado pela América de "Novo Iraque" pretende operar agora que a propriedade do Estado foi tão completamente saqueada? E o que fazer quanto à cena de ontem na estrada Hillah onde descobri o proprietário de um silo de cereais e de uma fábrica ordenando aos seus guardas armados que disparassem sobre os saqueadores que tentavam roubar os seus caminhões. Esta tentativa desesperada e armada de preservar a base para o abastecimento de pão a Bagdá estava sendo observada a apenas 100 metros de distância por oito soldados da 3ª Divisão de Infantaria dos EUA, que estavam sentados sobre os seus tanques - sem fazer nada. Os escritórios da ONU que foram saqueados estão a 200 metros de um posto de controle da US Marine.

E o exército de "libertação" da América já começa a parecer um exército de ocupação. Observei centenas de civis iraquianos fazendo fila para atravessar uma ponte rodoviária em Daura na manhã de ontem. A cada homem era ordenado pelos soldados americanos que levantassem sua camisa e abaixassem suas calças - em frente a outros civis, incluindo mulheres - a fim de provar que não eram homens-bomba.

Depois de uma batalha na área de Adamiya durante a manhã, um atirador americano da Marine sentado em cima do portão do palácio feriu três civis, incluindo uma menina, que estavam num carro que não parou - a seguir atirou e matou um homem que ousou se aproximar na calçada para ver a fonte dos disparos. Poucos minutos depois, o mesmo atirador também matou o condutor de um outro carro e feriu mais dois passageiros naquele veículo, incluindo uma mulher jovem. Uma equipe da Channel 4 Television estava presente quando os assassinatos aconteceram.

Enquanto isso, no subúrbio de Daura, corpos de civis iraquianos - muitos deles mortos pelas tropas americanas na batalha anterior desta semana - seguiam apodrecendo nos seus carros ainda fumegantes. E ontem foi apenas o Dia Dois da "libertação" de Bagdá.
 


Robert Fisk é jornalista irlandês, e trabalha para The Independent. Este artigo foi publicado em 11/04/2003 e está disponível em http://argument.independent.co.uk/commentators/story.jsp?story=396051